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A vitalidade da sociedade orgânica

À maneira de um organismo, a sociedade orgânica é composta de órgãos e células, com vitalidade própria, que devem atuar em harmonia como os instrumentos de uma orquestra sob o comando de um maestro.

A fim de bem estudarmos a sociedade orgânica, é preciso definir o que é órgão para assim conceituar o que é orgânico.

O órgão está para o organismo mais ou menos como uma província para um país ou, sobretudo numa federação, um Estado para a federação.

Órgão, organismo e alma

Quer dizer, o órgão tem uma entidade própria, distinta do todo, mas não é tão diferente que possa viver fora do todo; pelo contrário, ele é uma parte do todo.

Entretanto é uma parte não como, por exemplo, o gargalo de uma garrafa é uma parte dela. O todo depende de uma certa vitalidade do conjunto dos órgãos, e os órgãos dependem de uma certa vitalidade do todo. De maneira que há uma espécie de recinto de vida própria dentro do próprio órgão e, de outro lado, algo de vital que o órgão recebe do todo.

E na sociedade orgânica, o feudo é isso. Mas as outras entidades, como o município, a região, etc., também são isso. E, a vários outros títulos, existem unidades dentro de uma sociedade orgânica que estão para com o conjunto da sociedade numa posição como o órgão está para o organismo.

Isso levanta uma questão que é a seguinte: o principium vitæ de todo esse organismo é a alma, a qual é uma só para todo o organismo.

Quando ouço certas afirmações, no campo da Medicina, vejo evidentemente que são verdadeiras, pois a Ciência apurou. Mas tenho a impressão de ouvi-las como se uma pessoa dissesse: “Ficou demonstrado que a capacidade de um piano tocar determinada harmonia resulta das teclas, porque, tiradas estas, a música não sai”, abstraindo, portanto, do pianista. Eu compreendo que a alma possa servir-se de tais ou quais células para realizar tal ou qual tarefa, mas não acho que a célula seja dona da capacidade de fazer aquilo; ela é um instrumento da alma.

Duas formas de vitalidade

O que nos toca especialmente no problema da sociedade orgânica é a seguinte questão: Numa célula ou num organismo tem-se a impressão de haver duas vitalidades diferentes; uma é a vitalidade grande, pujante, abarcante do organismo; e depois cada célula tem uma vitalidadezinha própria, coexistente e harmônica com a vitalidade geral, mas sem dúvida dotada de uma certa forma de autonomia.

E a organicidade de todo o mecanismo humano provém exatamente dessa autonomia local, restrita, das células, e da receptividade, mais ainda, da participação delas, ao mesmo tempo, na vida geral. Talvez haja, até fisiologicamente, um campo próprio para a vida geral, enquanto se exercendo na célula; e outro campo próprio da vida celular enquanto se exercendo na vida geral. Isso representa, com muita analogia, o sistema feudal ou o federativo.

Dir-se-ia haver, portanto, certos movimentos, certas ações e reações da célula que nascem dela ou nela, e entram como uma espécie de característica própria dentro do organismo, como se a célula fosse um indivíduo agindo no conjunto do organismo do qual procede e no qual está encaixado.

E, depois, há outras coisas que são a interação do conjunto orgânico sobre as células e das células sobre o conjunto orgânico. Dir-se-ia que a célula é trabalhada por duas vidas: uma vidinha regional característica e própria, a qual seríamos levados a achar — sei que não é — ser independente da “vidona”, mas que funciona na mais estrita harmonia com esta, pelo menos nos casos não patológicos. Isso faz com que a vidinha e a “vidona” constituam mais ou menos algo à maneira de uma orquestra tocando: cada instrumento executa sua melodia, mas há o talento do compositor e a capacidade do maestro que, não só fazem o encaixe de todos aqueles sons tocados pelos instrumentos, mas formam um ser comum.

Seria preciso distinguir bem qual é essa vidinha e qual a “vidona”, para se compreender organicamente como é que a “vidona” não pode abafar e nem extinguir as vidinhas, mas deve estimulá-las todas até um limite próprio a cada uma; e cada uma também não pode viver além de seu limite próprio, porque estraga todo o jogo.

A tangerina com seus gomos e ”garrafinhas”

Essa conjunção de ações vitais constitui propriamente a organicidade. Porque, nesse sentido, a organicidade é um equilíbrio o qual se mantém exatamente na medida em que cada um fica na sua esfera e colabora com o outro.

A organicidade tem, portanto, duas originalidades: as micro-originalidades de cada pequena célula, e depois uma grande originalidade própria ao conjunto. E esse concerto de originalidades minores e da originalidade maior forma a organicidade completa.

Não sei o que na matéria médica, ou biológica, possa servir de analogia exata para isto. Seria muito precioso que se conseguissem alguns dados nesse sentido.

Do lado filosófico, o ponto mais difícil é explicar a essência dessa vidinha e dessa “vidona”, em termos que não deem em panteísmo, em pampsiquismo, mas também não resultem numa espécie de individualismo exagerado.

Por exemplo, os gêmeos xifópagos têm princípios vitais diferentes e, se assim não fosse, produzir-se-iam desastres em ambos os organismos, pois são feitos para serem fechados.

Não é o que se dá na vidinha com a “vidona”, mas é uma coisa diferente que poderia ser comparada mais ou menos aos gomos de uma tangerina. Quando abrimos a tangerina, encontramos os gomos; se abrirmos os gomos veremos como que milhares de “garrafinhas” de uma cor muito bonita. Essas “garrafinhas”, por sua vez, estão para o gomo como este para a tangerina. E cada uma dessas “garrafinhas” tem uma como que vidinha própria, e o conjunto das vidas dessas garrafinhas é a condição de existência do gomo. Porém, dir-se-ia que o gomo tem uma vitalidade maior, recebida do conjunto da tangerina, e que, por sua vez, nutre as “garrafinhas”.

Existe, portanto, um unum chamado “tangerina” com uma forma de vitalidade participativa de cima para baixo; e há depois, no mesmo unum, uma participação de baixo para cima. Na circulação dessa vitalidade, com suas peculiaridades e autonomias, está a organicidade.

O principium vitæ

Segundo a Filosofia escolástica, cada ser tem um princípio de vida que é uno. Portanto, creio ser contrário à Doutrina Católica admitir que, além desse principium vitæ que é unum, existe para a célula um principium vitæ autônomo, tão distinto do principium vitæ geral, gregário, que constitui como que um ser independente. A meu ver, trata-se de um tipo de relação que não é nem a independência, nem a fusão, e que representa o sentido mais palpável da palavra “autonomia”, que é diferente da soberania.

É conhecida, em Direito, a distinção entre soberania e autonomia. Por exemplo, um Estado, como São Paulo, é autônomo; o Brasil é soberano. São coisas diferentes.

Deve haver na própria Escolástica bem estudada um conceito de princípio de vida, que é apresentado muito simploriamente quando se diz que o principium vitæ é unum. Porque ele é verdadeiramente unum, mas comporta riquezas que se poderiam exprimir assim: Quando esse princípio uno de vida vivifica várias partes do todo, ele sofre uma influência dessas várias partes que faz com que, em cada uma delas, ele proceda de um modo distinto. De onde haver, em cada parte, uma reatividade individual e própria que é, no fundo, a grande vitalidade geral, mas atuando como se fosse uma pequena vitalidade individual.

Jean-Pierre Lavoie
Vista panorâmica de Paris, França
Ancely
Município de Irun, Guipúscoa (Espanha)
Sporti
Zidani Most, Eslovênia

Voltando ao exemplo da tangerina, as condições em que o principium vitæ atua em uma determinada “garrafinha”, não são as mesmas com que atua em outra. Então, há um concerto de condições diferentes nas quais entram torrentes do mesmo princípio vital, que anima a todas, mas de todas recebe uma morfologia, e quase uma fisiologia diferente.

Há, pois, dois jogos procedentes do mesmo princípio: enquanto generalizante, ele une; e enquanto embebendo as partes, ele distingue. Neste misto de unidade e variedade consiste o mais profundo da ordem.

Eu seria propenso a achar que, havendo no homem a vida espiritual, a animal e a vegetal, isso forma como três rios paralelos cujas águas correm no mesmo leito. Cada uma dessas vidas atua, a seu modo, numa mesma célula, mas como se fosse um todo. E, condicionado pela célula, esse todo produz estes ou aqueles efeitos.

O sadio e o doentio regionalismo

A organicidade seria o fato de cada célula ter paredes que, por assim dizer, imprimissem a um líquido que nelas penetrasse determinadas propriedades.

Essa seria a hipótese a considerar a propósito de um sadio regionalismo.

Por outro lado, o totalitarismo seria proibir a célula de condicionar o líquido que nela penetra, de maneira que, ao sair dessa célula, ele estivesse o mesmo; e houvesse apenas um qualificador do líquido que fosse o emissor central e o receptor final.

Tomemos um exemplo do regionalismo espanhol: Guipúscoa, a menor província continental espanhola. Digamos que ela tenha sido constituída pelos vestígios de um antigo povo ignoto que ali viveu, um povo no sentido completo da palavra.

Depois, penetraram ali os visigodos que dominaram a região, e essa vida típica, regional, de Guipúscoa foi se extinguindo por superfluidade; ela foi recebendo tantos elementos da “vidona” visigótica que só conservou algumas peculiaridades. Mas essas peculiaridades não têm raiz no que entrou de visigótico, de maneira que ela as conserva com altaneria. Isso seria, a meu ver, o arquétipo do regionalismo espanhol.

Numa outra ordem de ideias, consideremos a Iugoslávia. Essa história que se lê nos jornais: a Croácia não quer que a Eslovênia faça não sei o quê… São fenômenos desta natureza transpostos para a vida dos povos e das sociedades. Mas podem existir duas coisas: uma seria a vida geral se extinguir completamente ou restar elementos sem importância, caminhando visivelmente para a morte; outra seria uma vida local ficar, e não haver quem a liquide.

O regionalismo francês é do primeiro tipo. Paris liquidou e “comeu” o resto da França. Nutriu-se disso. Os regionalismos que ficaram são insignificantes.

Já na Iugoslávia é o extremo oposto.

Isso que eu digo a respeito das relações entre as partes de um país parece-me que se pode afirmar das relações entre uma classe e o país. Por exemplo, a classe judiciária ou a sacerdotal, ou a guerreira. Mas esse assunto é muito complicado e tenho a impressão de que não vale a pena tratar dele.

A título de estudo, podemos admitir até no corpo humano formas de federalismo diferentes. Em alguns órgãos a “vidona” age de uma maneira; em outros órgãos, de outra. Assim teremos o espírito bastante desenvolto para observar uma nação, compreender bem suas várias características, e justificar as mil autonomias nacionais, geográficas, de classes ou de culturas, de maneira a entendermos que coisa riquíssima, fortemente unida e prodigiosamente desenvolvida é cada parte que constitui a nação.

Mais do que um indivíduo, é a família a célula da sociedade. É um vasinho no qual entra a grande vida geral e recebe uma marca. Mas por quê? Porque de algum modo cada família tem elementos vitais que são distintos do elemento geral.

(Extraído de conferência de 25/7/1991)

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