Dr. Plinio não tinha uma mentalidade livresca, mas analisava detalhada e profundamente a realidade, para depois elevar-se à teoria. Comentando diversos aspectos de regiões da Espanha, ele tira luminosas conclusões a respeito da sociedade, a qual, assim como o corpo humano, deve ser organizada feudalmente.
Para considerarmos os diversos regionalismos espanhóis, tomemos como exemplo a Galícia. No meu modo de entender, existe uma forma de ser, uma espécie de alma galega, distinta da alma espanhola. Nessa espécie de espírito regional de um órgão da Espanha, chamada Galícia, existe uma mentalidade, uma peculiaridade própria feita para se desenvolver de um modo incompleto com vistas a se fundir num todo maior denominado Espanha.
Galícia, Catalunha, Guipúscoa
Qual o valor, o alcance ontológico da autonomia dessa região? É uma vida própria de um povo que deveria, normalmente, ter chegado a ser independente e autônomo, e sobre o qual a Espanha pesa como um manto de chumbo?
Ou, pelo contrário, a Espanha é um rio do qual a Galícia é um confluente? E esse confluente é feito para morrer no rio principal, fundir-se com ele? Então estes regionalismos não seriam feitos para ter todo o seu desenvolvimento, mas para possuírem uma vida meramente local, fundida numa vida geral?
Todo o problema das autonomias na Espanha tem sua raiz nesta questão. E quando isso não é devidamente considerado, nascem os mal-entendidos.
É possível que alguns desses regionalismos tivessem se desenvolvido quase a nível nacional, fazendo de certas regiões quase nações, e outras que realmente não tendiam a isso. Por exemplo, a Catalunha tem, mais do que a Galícia, ares de uma nação que não chegou a se realizar inteiramente.
Há, portanto, regiões da Espanha que dão a impressão de que talvez, no curso normal da História, deveriam ter tido um desenvolvimento para se tornarem quase completamente nações independentes, com cultura, vida, autonomia quase próprias. Quanto a outras regiões, entretanto, tem-se a impressão de que dariam para uma coisa menor, com formas ou graus de vitalidade diversos.
Por exemplo, Guipúscoa1, uma região tão pequena, mas com autonomias próprias. Quem julgasse que isso não deve ser assim, faria o papel de alguém que achasse feio o miosótis. Esta é uma flor naturalmente pequena, o que é muito diferente de uma flor que por natureza deveria ser grande, mas nasceu doente. A saúde do miosótis consiste em ter aquele tamanho, com aquele azul forte por onde ele afirma sua presença na ordem do real, de um modo encantador.
Guipúscoa é um miosótis dentro do jardim que é a Espanha.
A alma de uma nação
Essas considerações nos colocam diante do seguinte problema:
Aquilo que nós chamamos a alma de uma nação, ligada à sua psicologia, constitui um todo. A língua e a cultura dessa nação são a expressão da existência real desse todo. Essa alma não existe no sentido pampsiquista ou panteísta da palavra, mas também não se trata de uma mera figura. Há algo próprio a todos os espanhóis no sentido físico, e até étnico da palavra, que constitui um traço comum, orgânico, formando uma psicologia comum.
Essa alma formaria uma cultura, uma civilização, e tem diante de Deus um quê de comum pelo qual ela é capaz de pecar ou praticar virtudes. E isso se deve ao fato, não de que há uma alma ontologicamente distinta das outras, mas é porque esse traço comum existente em toda a nação faz com que esta, às vezes, pratique solidariamente uma virtude ou um pecado. E haja então uma punição ou um prêmio para a nação nesta Terra, pois esse todo não vai ser premiado nem castigado na eternidade.
Temos, assim, a ideia de um certo modo de encaixe da vida. Seria muito útil, debaixo do ponto de vista didático, se pudéssemos mostrar que algo de análogo se dá entre as células e os órgãos, e entre estes e o organismo, porque convenceria muito mais as pessoas da realidade do quadro que acabo de traçar.
Creio que levaria até mesmo os cientistas a explicarem melhor as inter-relações existentes entre as células, órgãos e organismo, e chegaríamos a uma explicação melhor do feudalismo, e do que teve de errado o Estado unitário inaugurado pela monarquia absoluta no Ancien Régime2.
Duas sinfonias
Existe um principium vitæ3 próprio a cada célula. Este princípio corresponde a uma alma, não espiritual, mas biológica. Assim, um órgão seria uma “sinfonia” de milhões de princípios de vida menores, autônomos que, criados por Deus de um modo especial, fazem uma “sinfonia” correspondente ao tipo de vida próprio do órgão, que não é inteiramente o mesmo tipo de vida próprio ao organismo. Este, por sua vez, tem uma espécie de principium vitæ atuando em cada célula. De maneira que cada célula seria portadora de seu próprio princípio de vida e de algo do principium vitæ do organismo.
Aliás, a possibilidade de se fazerem transplantes de órgãos e de se conservar com vida um membro amputado, por algum tempo, fora do corpo, depõe a favor da existência desse outro principium vitæ, além da alma espiritual. Um princípio de uma qualidade tão inferior que o membro ou o órgão não resiste muito tempo fora do organismo, mas este princípio existe.
Isto serve para exemplificar como é o feudalismo e a sua necessidade, pois sendo a natureza tão bem constituída por Deus e havendo no corpo humano tantos elementos análogos à sociedade humana, é compreensível que esta peça para ser organizada feudalmente, por uma razão científica semelhante àquela pela qual o corpo humano constitui um sistema feudal.
Erraria quem visse o feudalismo apenas nobiliarquicamente. Sem dúvida, ele é um conjunto que possui a sua parte nobiliárquica como um componente muito importante, mas contém um mundo de outros corpos, mais ou menos autônomos, com vida própria. Por exemplo, as universidades.
A Igreja é a vida dos Estados
O grande organismo que permanece fora, acima e no fundo dessa estrutura, é a Igreja com sua influência. Ela é uma entidade tão soberana quanto o Estado, mas de uma soberania mais augusta, porque sobrenatural, enquanto a soberania do Estado vem de Deus, mas por ordem da natureza, e não da graça.
A Igreja vive dentro de todos os Estados ao mesmo tempo, e o Estado, enquanto tal, não vive dentro da Igreja, embora possa ser um Estado católico. Por exemplo, não posso dizer: a Espanha é membro da Santa Igreja Católica. Enquanto nação, não é. Os espanhóis, sim, são membros da Santa Igreja Católica.
Então, os Estados não vivem na Igreja, mas esta vive nos Estados e é a vida dos Estados. E a Igreja, que bem compreendida é inimiga da República Universal, é, entretanto, uma sociedade internacional sobrenatural imensa que realiza a mais radical e perfeita universalidade que se possa e se deva desejar. Daí o fato de toda a estrutura hierárquica da Igreja não estar sujeita às leis penais do Estado.
Contudo, isso é assim em certos pontos, em outros não. Por exemplo, numa igreja em torno da qual haja um jardim onde, de vez em quando, se faça uma festa beneficente e outros atos do gênero, o Estado tem o direito de exigir da Igreja que mantenha limpo, decoroso e belo esse jardim. Nesse pormenor, a Igreja não é independente. É uma das razões pelas quais o clero fazia parte dos Estados Gerais4. É uma complexidade lindíssima, e que é preciso saber admirar.
(Extraído de conferência de 8/8/1991)
1) Província do País Basco, localizada no Norte da Espanha.
2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.
3) Do latim: princípio de vida.
4) Órgão político de caráter consultivo e deliberativo constituído por representantes do clero, da nobreza e do povo.