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Dignidade e senhorio

Movidas pelo espírito revolucionário, muitas pessoas se tratam de modo igualitário, favorecendo assim a perda da dignidade e da autoridade. Dona Lucilia velava pela hierarquia, possuía muito senhorio e grande dignidade materna; honrava todos aqueles que se aproximavam dela, e sabia tratar a todos incomparavelmente bem.

Quando minha irmã e eu fizemos, mais ou menos, entre dez e treze anos, mamãe começou a nos contar histórias extraídas da literatura francesa, que ela lia e nos transmitia, suprimindo o que havia de ruim. Por exemplo, “Os três mosqueteiros” Dona Lucilia narrava muito bem. Então, os filhos e sobrinhos formavam um bolo para ouvi-la.

As crianças tinham intenso desejo de ouvir as histórias

A parentela toda ia jantar em casa, e os mais velhos comiam na sala de jantar principal. Havia também uma sala de jantar só para as crianças, e ali nos servíamos. Nossa sala de jantar era bagunça, fala-fala. É preciso dizer que eu era grande bagunceiro nessa sala; falava muito, pois sou muito expansivo. Mamãe, evidentemente, ceava com os mais velhos.

Mas nós jantávamos com uma pressa louca para ouvir a história que ela ia contar depois. O jantar dela demorava muito mais do que o nosso, porque os mais velhos comiam devagar, ela mesma o fazia lentamente; então, nós começávamos a bater na porta para entrar na sala de jantar e levá-la embora, antes de seu jantar terminar.

Mamãe cortou esse procedimento muito amavelmente, dizendo que deveríamos respeitar os mais velhos, não entrar na sala de jantar deles, e não podíamos apressar o jantar dela. Era uma pessoa doente, estava se tratando, precisava jantar devagar, e que nós esperássemos, pois havia tempo para tudo.

Ficávamos na porta do corredor, esperando. Mas, de vez em quando, mandávamos uma menina — porque com a menina se é menos severo do que com o menino — abrir a porta. E uma sobrinha dela fazia isso, porque se era mais amável com os sobrinhos; entrava, olhava… E mamãe, com calma, fingia não perceber e, após terminar de jantar, conversava mais um pouquinho com os mais velhos para nos domesticar.

Quando se levantava, abría­mos a porta e caminhávamos com ela para o escritório de meu pai. Ali a cercávamos, todos procuravam pegar em sua mão. Ela ficava recostada no sofá e começava a contar histórias. E nós espichávamos a narração, querendo saber os pormenores. Eram nomes franceses e ingleses e, quando os pronunciávamos de modo errado, ela parava e nos obrigava a pronunciar direito.

Com uma paciência sem fim, ela ensinava desse modo a adquirirmos calma, e nos entretinha muito agradavelmente; era o melhor entretenimento da semana. E, ao mesmo tempo, ela nos ia ensinando a boa pronúncia francesa e inglesa, e uma porção de outras coisas.

A nobre condição da família de Dona Lucilia

Ao chegarmos a certa idade, ela começou a nos contar histórias antigas da sua família, os homens importantes que nela houve, o que fizeram, como viviam, como adquiriram as propriedades, enfim, todo o passado da família.

Falava bastante também a respeito da família de meu pai, que pertencia a uma estirpe de muito destaque em Pernambuco. Quando se casaram, ela foi visitar a família de meu pai naquele Estado. Então, nos contava como eram, que papel desempenhavam, etc., explicando tudo muito comprazida.

Mamãe narrava essas recordações, sobretudo, para deduzir delas lições de ordem moral, mas, em paralelo, vinha a condição da família.

O Brasil nunca teve uma aristocracia propriamente organizada, como na Europa, quer dizer, com títulos de nobreza hereditários. Durante o Império houve títulos de nobreza, mas não eram hereditários. Então no Brasil não se constituiu propriamente uma nobreza, como há na Europa.

Mas havia uma coisa que equivalia a isso e era o seguinte: as famílias com muitas gerações na condição de fazendeiros tinham mais ou menos a situação de famílias nobres, e constituíam uma verdadeira nobreza no País.

Dona Lucilia era de uma dessas famílias e gostava disso, mas não por razões mundanas, como quem dissesse: “Olhe como, por ser nobre, sou mais do que você que não o é.” Mas era como alguém que ama os dons de Deus. Assim ela amava sua situação, pois se tratava de um dom conexo a ela por seu nascimento.

Nunca notei que mamãe desejasse ser mais do que era, mas certamente ela recusaria ser menos do que era. Sem dúvida, defenderia sua posição com muita firmeza e não abriria mão.

Se ela, por exemplo, perdesse todo dinheiro e ficasse reduzida a uma condição de mendiga, mesma nessa situa­ção portar-se-ia como uma senhora nobre, sem dúvida nenhuma, cônscia daquilo que ela era.

Mamãe tinha muito empenho em que os filhos dela estivessem bem conscientes disso, e prestava muita atenção em ver com quem minha irmã e eu nos relacionávamos; e quando queria designar uma pessoa cuja amizade não nos convinha, ela usava uma palavra muito expressiva da língua portuguesa: chinfrim.

Amor à hierarquia

Ela velava muito pela hierarquia, e era muito respeitosa com quem possuísse categoria superior à dela. Por exemplo, respeitava muito a Família Imperial, tratando-a com toda consideração, com toda atenção, como se a monarquia estivesse vigente no Brasil.

Respeitava muito o episcopado, o que se notava no modo atencioso de ela tratar dois bispos que frequentavam minha casa.

Para Dona Lucilia não era tão importante ocupar esse ou aquele lugar na escala hierárquica. Ela amava propriamente a hierarquia, e o que lhe importava era que esta existisse. Isso me parece muito direito.

Embora totalmente sem amor-próprio, mamãe era uma pessoa de uma grande dignidade, e possuía muito senhorio. Vê-se no Quadrinho1 que Dona Lucilia sabia quem ela era. Quer dizer, não era nem um pouco uma senhora boba. Porém, possuía uma dignidade tão materna, que ela honrava aquele que se aproximava dela, não o rebaixava; ela sabia tratar incomparavelmente bem.

Aconteceu-me de vê-la fazer o que nenhuma patroa, no tempo dela, fazia: parada na rua, conversando com uma antiga criada de quarto que estava doente, a qual tinha saído de nossa casa por necessitar tratar-se de sua enfermidade. Mamãe encontrou-se com a antiga criada na rua, e parou para conversar com ela. Os automóveis e as pessoas conhecidas passando, e ela conversando com tanta distinção que a criada estava encantada. Não eram duas amigas, mas a patroa católica que ama a criada católica. Era uma coisa diferente.

Assim, em tudo ela punha medidas, mas sabia tornar essas medidas amáveis, agradáveis.

Por vezes, há pessoas que têm amor-próprio e ficam amarguradas: “Não me reconhecem, não me amam, vou mostrar quem eu sou!” E ela amansava, diluía, derramava um unguento em cima do amor-próprio: “Eu estou tão aberta a ver, e tão disposta a reconhecer com alegria o que você é… venha falar comigo!”

(Extraído de conferências de 2/8/1982 e 21/1/1983)

1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Ver Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.

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