Uma das principais características da alma de Dr. Plinio era a sacralidade. Seu modo de ser, de pensar, querer, agir, em suma, a visão que ele possuía do universo era sacral. Mas o que significa propriamente a sacralidade? Esse é o tema que ele desenvolve, com muitos exemplos, na conferência que a seguir transcrevemos.
A noção de sacralidade é uma das mais difíceis de explicitar, e não se deve dar apenas uma ideia teórica, mas apresentar exemplos, fatos concretos, circunstâncias, situações por onde as pessoas sintam e apalpem com a mão o tema. Portanto, não oferecer somente uma definição filosófica, que tem um grande valor, mas não passa de blá-blá-blá enquanto o indivíduo não sabe aplicá-la à realidade.
A naveta
Imaginemos um pobre cego de nascença, o qual não tem noção do que é cor, porém manda alguém ler para ele o que São Tomás diz sobre esse assunto. E, tomando um desses dicionários de tomismo, o leitor lê tudo quanto o Doutor Angélico fala a respeito de cor, para esse coitado ouvir. Esse cego forma então uma ideia teórica de cor. Pode adiantar alguma coisa, mas dá pena! Porque de tal maneira a visão direta da cor é mais do que a definição, que esta interessa, mas a visão direta é brutalmente insubstituível.
Também no que diz respeito à sacralidade há algo que é preciso ter visto; não basta a definição para compreendermos no que consiste a sacralidade das coisas. E isso é muito difícil explicar.
Tomemos aquele utensílio litúrgico em forma de nave, feito para conter o incenso para o turíbulo: a naveta. Ela é bonitinha; em geral, com suas formas, procura representar uma nau elegante, imprimindo um pouco de fantasia no objeto. Se alguém for estudar um livro sobre o assunto, verá que provavelmente é por causa de uma tradição antiga que se deu a forma de nau a esse utensílio.
E há toda uma estrutura de fantasias, de ideias, de metáforas em torno da naveta, para indicar que o conter um incenso, destinado a ser queimado em honra de Deus, é de utilidade muito elevada, tem alguma coisa de sacral.
Suponho tornar claro o quanto é adequada a palavra sacral, no emprego que lhe dei nesse caso. O que quer dizer aqui “sacral”?
É uma referência que a forma da naveta tem a um ente infinitamente superior a ela. E quem desenhou daquela maneira a naveta aplicou a inteligência, dilatou o senso poético de maneira a poder fazer, daquele instrumento comum e inteiramente prático — em última análise, uma caixa com duas tampas, cuja forma é calculada para se poder pegar bem o incenso —, um objeto que, ao mesmo tempo e principalmente, remete nosso espírito para uma realidade não idêntica, mas análoga à naveta, e que põe o nosso pensamento muito mais alto.
O que há nisso de sacral? É o fato de que essa realidade é tão mais alta, que ela chega a ser suprema, é o próprio Deus. É alguma coisa da dignidade do serviço divino que está lembrada nesse esforço de afeto, de fantasia poética e de raciocínio em fazer da naveta uma obra-prima.
Entretanto, imaginemos uma naveta substituída por uma caixa qualquer, retangular, sem ornato, que se abre, se pega o incenso com os dedos e lança-se no turíbulo. Perdeu a sacralidade. Porque a forma não tem algo do sublimado que lembra a Deus.
A espada e a guerra mecânica
Outra coisa. Há muito a espada deixou de ser uma arma de guerra. Mas creio eu que, em quase todos os exércitos do mundo, a espada ainda é usada como um distintivo dos oficiais.
Ora, acontece que sem ser uma arma de guerra a espada, por uma porção de circunstâncias, de tal maneira simboliza o heroísmo, pelo qual o homem dá a vida por alguma coisa, que passou a ser um símbolo sem o qual o oficial não se apresenta, porque se duvida que ele seja oficial.
O brilho niquelado, a linha reta, o ligeiramente afilado, o punho, tudo da espada lembra alguma coisa da espadachinada. E, queiram ou não queiram, na sensibilidade dos homens a batalha com a espada e a lança acabou sendo a batalha por excelência. A bomba atômica é incomparavelmente mais mortífera, mas uma batalha não é só matar, nem apenas vencer. Uma batalha é expor-se, fazer força, ter agilidade e bastante amor para fazer a proeza de um duelador.
Numa batalha mecânica, um homem posto num ministério recebe instruções do Presidente da República: “Aperte o botão vermelho!” Ele sabe que vai deflagrar a guerra mundial, fazer explodir Moscou ou Washington. Aperta o botão: plum! Ninguém dirá: “Que guerreiro! Ele pôs por terra uma cidade!” Não! Ele é um datilógrafo!
Assim como o datilógrafo pode ser levado pelo ofício a escrever a palavra “dedo” e, portanto, pôr duas vezes o dedo na letra “d”, assim aquele indivíduo teve que colocar o dedo numa tecla e, com duas pressões no botão vermelho, explodiu uma cidade; portanto é um datilógrafo. Ele foi mais eficaz do que todos os guerreiros do mundo, mas a guerra não se restringe à eficácia. Por algum lado, a guerra é, sobretudo, holocausto. É o homem dar-se, mas dar-se com sua força, em que ele entra, permanece e se afunda no perigo. Então ele é propriamente herói, não porque venceu, mas porque se expôs ao risco por uma coisa mais alta.
Participação no supremo
E essa coisa mais alta, o que é?
Não é simplesmente uma coisa mais alta, mas é algo de supremo. Enquanto essa ideia de meta suprema — não podendo haver nenhuma outra acima dela — não for alcançada, a noção de sacral também não está atingida.
Imaginemos, por exemplo, que num país qualquer dois municípios declarem guerra um ao outro, por causa da posse de um riacho e das suas margens que correm na divisa entre os dois municípios. Então os caçadores que possa haver nos dois municípios formam duas pequenas brigadas, que vão entrar em luta uma com a outra. Meta: garantir a posse do riacho para o município.
Aqueles homens vão fazer o sacrifício da vida. Mas é sublime que eles façam o sacrifício da vida, ou é ridículo? Perfeitamente ridículo! E eu diria: “Por esse riacho não dou uma gota do meu sangue! Vocês cozinhem e fervam essa coisa como quiserem, mas não contem comigo! Vou mudar de município e ver a besteira de vocês de longe!”
Enquanto não há a mais alta meta, a respeito da qual a pessoa possa dizer: “Na escalada dos ideais nada chegou tão alto”, a noção de sacralidade não está presente. É necessária uma certa participação no supremo. Enquanto não houver essa participação no supremo, podem existir outras coisas, mas sacralidade propriamente não há.
Suponhamos que um oficial de justiça fosse levar uma notificação judicial para determinada pessoa que, enfurecida com a intimação, desse um tiro no oficial. E este, enquanto estivesse sendo conduzido para o hospital, pensasse: “Que miserável profissão eu tive que adotar! Mas, o que posso fazer? Foi o único meio que encontrei para assegurar a minha vida tranquila. Se morrer, morri…”
Seria uma morte sublime? Evidentemente, não.
Mas se um oficial de justiça refletisse: “Estou morrendo no cumprimento de um mandato judicial. Se não houvesse oficiais de justiça no mundo, os juízes não poderiam julgar e a ordem da sociedade humana estaria convulsionada. E assim, o próprio desígnio do Criador, estabelecendo homens na Terra, não se realizaria inteiramente. Eu morro certo de que estava executando uma parte mínima do plano de Deus. Mas eu adoro esse Deus, a Quem eu tive que carregar o pequeno grão de areia de minha profissão. Por isso, morro contente!” Eu poria no epitáfio desse homem: “Morreu com fidelidade.”
Semelhança especial com Deus
Nos exemplos acima mencionados mostrei que, vistos por um ângulo, naveta, guerra e oficial de justiça apresentam uma chispada de sacralidade; vistos de outro ângulo, não.
A sacralidade é, pois, aquilo por onde se nota mais facilmente, em determinada atitude, pessoa ou coisa, seu relacionamento com Deus, através de sua inserção no plano divino e de sua semelhança com o Altíssimo. Portanto, sacral é tudo aquilo que tem especiais qualidades para lembrar os supremos atributos de Deus.
Um diamante, como o Koh-I-Noor que está na coroa da Rainha da Inglaterra, pode ser considerado sacral porque tem um brilho, uma beleza que facilmente lembram, por exemplo, a rutilância da inteligência divina.
Entretanto, uma torre de uma igreja ou de castelo góticos pode ser sacral porque, muito melhor do que simplesmente uma pedra preciosa, lembra a alma cheia de sagrado que compôs aquele edifício. E, através da alma sacral que ama a sacralidade, chega-se muito mais próximo de Deus. Aquilo que traz consigo uma certa semelhança especial com Deus, a qualquer título, é sacral.
Dir-se-ia que um grão de areia não é sacral, pois é feito para ser pisado. Sem embargo, quem o analisa com finura percebe que, como tudo quanto existe, também ele tem um lado sacral. Não há um lado saliente, protuberante, principal, é preciso procurar para encontrar; mas procurando, encontra-se mesmo. Tudo quanto existe tem um lado sacral.
Por isso, por exemplo, vendo-se passar numa procissão o clero nota-se mais sacralidade do que se observando caminhar o povo. Porque o clérigo se dá a Deus, é consagrado. O padre, quando dá a absolvição, não é ele quem fala, mas Nosso Senhor Jesus Cristo que Se serve da laringe dele para perdoar.
E se o bispo está presente na procissão aumenta a sacralidade, porque o padre tem apenas uma participação na plenitude do sacerdócio, pode consagrar o pão e o vinho, dar os Sacramentos; mas o bispo ministra um Sacramento que o padre não pode dar: o bispo ordena padres. E se nessa procissão caminhasse o Papa, não havia palavras para dizer, porque ele é a chave de cúpula da Igreja; por assim dizer, toca em Deus com as mãos.
Quem ama verdadeiramente a Deus está continuamente analisando as coisas conforme elas representem o Criador ou não, sejam sacrais ou não. E as ama de acordo com a dose de sacralidade que têm.
Civilização sacral e civilizações mecânicas
Uma civilização é autenticamente civilização na medida em que faça brotar de dentro de todas as coisas toda a sacralidade de que elas são capazes. Quer dizer, pela arte, pela literatura, pela conformidade dos espíritos, por tudo, faça realçar o caráter sacral constantemente; essa é uma grande civilização.
Há um conceito corrente de civilização que é o de fazer com que as pessoas deixem a barbárie. Esse conceito contém algo de verdadeiro, nesse sentido de que quanto mais selvagem, mais o homem se distancia do modelo divino que ele deveria seguir, e se apresenta parecido com o demônio.
Mas essa definição negativa é pobre. A definição positiva é muito mais rica e apresenta uma analogia. A civilização sacral é a que faz o homem encontrar em tudo analogias com Deus Nosso Senhor. Não porque ele as fabrique, mas porque elas existem. Não se trata de inventar, trata-se de encontrar, que é uma coisa muito diferente.
Daí decorre que as civilizações laicas são fundamentalmente cafajestes porque elas tendem só para o prático. E um homem que, por exemplo, diga: “Essa naveta pode ser posta de lado, porque encontrei uma caixa que, uma vez apertada, lança um spray de incenso.” Até talvez seja mais prático, mas eu responderia a esse homem o seguinte: “Realmente, isso é mais prático, mas não vale de nada porque não tem nenhum sentido de sacralidade.”
O inconveniente das civilizações muito mecânicas é que elas são repletas de coisas que não têm sacralidade. Por exemplo, o telefone não tem nada que lembre algo de divino. Por isso, querer dar a ele uma forma sacral é completamente artificial. Porque o telefone foi concebido numa época em que o mundo estava saindo do não mecânico e entrando para o mecânico, com a maior voragem e o maior desejo possível. E em consequência não considerou o telefone com o espírito sacral que acabaria por moldá-lo, mas tão somente pela sua finalidade ou sua forma prática.
Algo que poderia comunicar sacralidade ao telefone seria encontrar, em sua história, algum episódio em que ele serviu para transmitir uma determinada mensagem a um santo que, ao receber o telefonema, levantou-se e cantou o Magnificat com o aparelho na mão. E disso se faria um quadro de São Fulano com as mãos elevadas e, por distração, com o telefone em uma das mãos. Daí viria uma relação do telefone com os Anjos que transmitem boas notícias para os homens. O Arcanjo São Gabriel que levou a Nossa Senhora a notícia da Anunciação, por exemplo. Ele foi, até certo ponto, o “telefone” angélico e vivo de Deus.
Poderia surgir, então, uma forma, algum elemento que desse ao telefone certa poesia, pois estaria vinculado à história de um lance muito poético da vida humana.
A Idade Média e o mundo da Revolução
O que há de mais sacral na Terra? É o Santíssimo Sacramento. Por mais que procurem, nada pode comparar-se em sacralidade com Ele. Mas Nosso Senhor está oculto sob as espécies eucarísticas. De maneira que em torno do Santíssimo Sacramento a Igreja constitui todo o culto eucarístico, que é um universo de sacralidade; porém Ele, considerado em Si, é sacral porque é o próprio Deus que está oculto ali sob aquelas aparências. Mas Ele não dá a sensação dessa realidade.
Depois do Santíssimo Sacramento, a realidade mais sacral é a alma de um santo. E o que torna sacral uma civilização é ter muitos homens que admiram a santidade mais do que tudo, e se não chegam até a santidade, ao menos tendem para ela com todo o seu ser.
Na vida civil, aquilo que fala de sacrifício, de holocausto, de generosidade, de esforço heroico é mais sacral do que o que fala de lucro, de conforto, de bem-estar.
A época que mais alto levou a sacralidade foi, evidentemente, a Idade Média. E a época que mais se distanciou da sacralidade, manifestamente, é o mundo da Revolução.
O cantochão
Qual é a relação que há entre a alma sacral e o cantochão?
Toda alma verdadeiramente sacral apresenta isto de próprio: tratando com ela, e depois ouvindo alguma coisa de música sacra, tem-se a impressão de que aquela música é a musicalização daquela alma.
Não há música, a meu ver, que melhor exprima a atitude que o homem tomaria se estivesse em presença de Deus do que o cantochão.
O cantochão tem algo de especial que é a presença de um misto equilibrado de serena e vigorosa alegria, com comedida e bem suportada tristeza. Mesmo quando ele canta coisas alegres, vê-se que o homem que canta tem consciência de que ele está dentro de um mundo marcado pelo pecado, sofre o castigo do pecado e está sujeito a qualquer hora à desventura. E, pior do que tudo, à possibilidade de pecar, de ofender a Deus e de perder-se. E isso põe nele uma nota contínua de sofrimento, por onde ele olha as coisas seriamente, como trazendo perigos, riscos, mas com força, como quem diz: “É verdade, mas com a graça de Deus isso eu aguentarei, e chegarei até o fim no cumprimento da vontade do Altíssimo, no equilíbrio de minha alma.”
Alguém objetaria:
— Dr. Plinio, sinto falta de ar! Estou habituado a uma ordem de coisas mais arejada, que não esteja referindo ao sagrado continuamente, mas à coisa considerada em si mesma, sem referência a Deus. Esse seu Deus me persegue na ponta de todas as coisas.
Eu diria:
Você não entendeu nada. Pelo contrário, no sacral descansa-se do que não é sacral. O que não é sacral é que cansa, nauseia. Para mim, descansar é sacralizar.
Eu quisera que cada um de nós estivesse constantemente olhando para os mais altos píncaros, e para os aspectos mais sacrais que as coisas podem ter. E ao olhar as coisas, observá-las sempre pelo lado sacral.
(Extraído de conferência de 4/1/1989)