jueves, noviembre 21, 2024

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Ordenação e desregramento do instinto de sociabilidade – I

A Religião Católica tem o poder incomparável de promover o relacionamento ideal entre os homens. A Revolução, entretanto, deturpando o instinto de sociabilidade, leva as pessoas a cair nos piores vícios e a praticar pecados coletivos.

O senso do ser, com o qual todos nascem, seria mutilado se não tivesse originariamente uma espécie de embocadura, de abertura para uma noção global, embora o intelecto da criança não tenha, por exemplo, ideia da humanidade como um todo dentro da Criação. Apesar de a criança não ter essa noção, há não só uma aptidão para adquiri-la, mas uma espécie de matriz dessa noção dentro da ideia primeira de ser.

A hipertrofia da fruição e a chacina dos inocentes

Essa matriz existe à maneira de um discernimento muito elevado do lumen que paira sobre o mundinho que ela conhece, juntamente com a ideia instintiva de que esse lumen é próprio ao universo inteiro. E, por amar esse lumen, a criança ficaria desolada se soubesse que ele não existe assim para todos os homens. Portanto, esse lumen traz consigo uma noção da globalidade.

Quando na própria criança se dá um desequilíbrio, por onde ela toma essa luz mais como um elemento de fruição do que de amor e admiração, acaba acontecendo que ela vai restringindo o seu horizonte a si própria, donde vêm todas as más consequências e subversões.

Esse é o caminho mais frequente da quebra da inocência: antes mesmo de vir o problema da pureza, transformar tudo numa fruição. Neste sentido, a educação que se dá para as crianças procurando, para agradá-las, hipertrofiar nelas o sentido da fruição, é a mais errada possível. É a chacina dos inocentes.

Por exemplo, a alegria de Natal é muito íntegra porque tem por objeto Nosso Senhor, que é causa de nossa alegria; Alguém que é adorável baixou à Terra e nos enche de gáudio.

É diferente do gáudio pelo pão de mel que se vai comer depois. Portanto, a alegria de Natal não pode ser transformada numa festa opulenta, que tem como principal razão o presente e a festa.

O relacionamento ideal entre os homens

O instinto de sociabilidade, no Paraíso, se apresentava tão perfeito quanto o estado de prova admite. Esse instinto deveria levar ao auge a sua própria perfeição quando nascesse Aquele que seria a chave de cúpula da ordem do universo e o Homem por excelência, hipostaticamente unido à segunda Pessoa da Santíssima Trindade; seria um de nós, que ao mesmo tempo é Deus, em função do qual tudo se torna admirável, que transcende a tudo e cuja presença tornaria inefavelmente doces todas as interarticulações da sociabilidade humana, porque Ele estaria presente como denominador comum dos homens.

É por causa disso que a Religião Católica tem o poder incomparável de promover o relacionamento ideal entre os homens.

Tendo Nosso Senhor remido os homens e morrido por todos nós na Cruz, essa realidade ainda toma uma nota especialmente admirável e pungente, porque se Ele chegou a dar-Se a tal ponto, pela abertura que a bondade opera em nós, somos chamados a nos doar também.

Tudo isso, passando através de Nossa Senhora, vem com uma abundância e uma carga de perdão incomparável, porque a Medianeira que Deus quis que fosse necessária atuou nisso.

Por esse motivo não se pode compreender a verdadeira sociabilidade ou o instinto de sociabilidade inteiramente bem tratado na sociedade pagã. Aliás, não houve, é a lei da selva.

Essa explicitação é um elemento integrante indispensável do conceito de Cristandade. E ela é também a explicação da intransigência, porque leva o instinto de sociabilidade a só admitir como inteiramente normal o relacionamento assim.

A visão exclusivamente fraterna do instinto de sociabilidade conduz à ideia de que o homem em sociedade é igual ao outro. É uma decorrência do socialismo: uma sociedade onde há só iguais, todos irmãos. Daí a tal fraternidade que insinua haver somente irmãos, não há pai. É uma afirmação indireta do ateísmo.

Enquanto que na concepção verdadeira, mais do que a fraternidade, há a relação pai-filho que encontra, na fraternidade, sua consequência normal: os filhos do mesmo pai são irmãos. Percebe-se bem, assim, a carga revolucionária do termo fraternité, no lema da Revolução Francesa.

No relacionamento, cada um deve contribuir com seu sacrifício

Poderíamos, agora, aprofundar o tema, tratando dos estados de doença do relacionamento humano.

Quando o relacionamento entre pessoas que pertencem a Nosso Senhor Jesus Cristo entra em estado de doença, ou seja, passa a ser defectivo, acontece como se a juntura dos ossos num corpo fosse malfeita, porque a ordem posta por Nosso Senhor é que todos se amem. Os que estão num relacionamento malfeito devem tomar em linha de conta que sempre que o relacionamento range, dói n’Ele, assim como quando os ossos rangem no corpo fazem padecer o corpo inteiro.

Em consequência, esse relacionamento pede que cada um contribua com uma cota de sacrifício própria, para que esse estado doentio cesse por amor a Nosso Senhor. Quem dá mais é o que ama mais a Ele.

Então, há uma função supletiva daquele que é menos tentado, menos provado, que tem menos dificuldade; ele entra suprindo o que possa faltar àquele que tem mais dificuldades, está mais tentado, mais provado. Por esta forma, cedendo, diminui a dor em Nosso Senhor e, assim, abranda indiretamente o fundo da dor naquele com quem ele trata.

Entretanto, é preciso não considerar Nosso Senhor como um estranho nessa relação. Ele está presente e, como Ele é o liame entre todos os homens, pela razão que eu acabo de dizer, se entre homens há uma fricção, o liame sofre.

Posto de lado qualquer assunto que diga respeito ao sexto ou ao nono Mandamento, o principal entretenimento do homem na vida são os outros homens. Daí aquele princípio de que não é bom o homem estar sozinho1, por isso precisava ter uma companheira, e também ter filhos e viver em sociedade.

Se os homens não se voltam para Deus, nessa perspectiva que apresentei, os principais apegos acabam sendo, no fundo, relativos aos outros homens. E o relacionamento dos indivíduos com a sociedade na qual se encontram é o grande tema de suas vidas.

Compreende-se por aí que os melhores prêmios dados por Deus sejam também nessa linha, assim como as expiações mais tremendas, e os atos de reparação e de generosidade mais estupendos.

Sofrimentos de Santa Teresinha

Dou um exemplo: Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela viveu com um instinto de sociabilidade, a meu ver, perfeitamente atendido, arquetipicamente atendido até o momento de entrar para o Carmelo. Porque se vê que ela não aspirava outra coisa a não ser entrar para o Carmelo. Portanto, tudo quanto estava fora não lhe interessava, exceto a família Martin e a família Guérin, muito chegada, e que formavam mais ou menos um todo; e Santa Teresinha com as irmãs constituíam aquele “bandinho” em torno do pai.

Arquivo Revista
Santa Teresinha do Menino Jesus com as demais freiras do Carmelo de Lisieux

Ora, aquilo tudo perfeitamente bem arranjado, ordenado, equilibrado, era para ela um “céuzinho” do instinto de sociabilidade. As fotografias dela em menina dão muito essa ideia. Uma pessoa que vive num ambiente sem arranhões, não tem nenhum irmão bêbado que volta tarde da noite para casa, quebrando a baixela preferida, os vasos prediletos da mãe, ou outro irmão que deixou o pai em claro porque a polícia deitou a mão nele; Santa Teresinha não teve nenhum drama assim. Vê-se que cenas dessas não passaram sequer por aquele olhar puro e sereno dela, nem de longe. E ela toda está com uma calma, uma ordenação que vem da perfeita instalação desse princípio de sociabilidade nas condições da vida.

O primeiro grande trauma é que Nosso Senhor passa e, de acordo com o que ela desejava, pede o sacrifício do esquartejamento daquela unidade. Todas as filhas vão para o convento e fica só o Monsieur Martin em casa.

E na solidão do Monsieur Martin, que é bem evidente que não se casaria novamente, começa a circular a calúnia, que com certeza até então não havia sido usada contra elas: começa-se a falar que fizeram mal em deixar o velho sozinho.

Certa ocasião, quando elas passaram horas inteiras à espera do pai aparecer, Santa Teresinha deixou transparecer que nessa demora uma das preocupações dela era a dor da injustiça que sofreriam com as calúnias.

É o instinto de sociabilidade, não na sua faceirice ou vaidade, mas na sua inocência, até então bem tratado pelos outros e que passa a ser maltratado.

Depois, dentro do convento, a incompreensão de todas as freiras a respeito dela, e a Santa que provavelmente veria as imperfeições de todas as religiosas, e tudo o mais, levá-la-ia a uma situação onde ela ficava completamente isolada. E com a sua afetividade, que afinal de contas é uma expressão do instinto de sociabilidade, atingida a fundo.

A doença contagiosa afastando-a do contato das outras, sendo posta numa seção do sanatório, e ali sofrendo, sofrendo, sofrendo…

Aparecem ainda as tentações contra a Fé que a isolam, por assim dizer, do lado sensível, em certo sentido até mesmo do próprio Deus.

É um longo padecimento do instinto de sociabilidade que vai se desenvolvendo.

O drama do instinto de sociabilidade de Nosso Senhor

Isso não é nada, se comparado com o que se passou com Nosso Senhor. Vê-se que Ele, na sua humanidade, começou o contato com os homens, benevolente, alegre, aberto, conseguindo resultados evidentes, com um relacionamento magnífico, as turbas que O seguiam, etc.

Depois, nota-se que aquele entusiasmo todo resultava num élan apenas medíocre, que não dava aquilo que deveria dar. Além disso, essa mediocridade se tornava invejosa, malévola, cética, ao sopro dos adversários que não tinham querido se render a Ele. Então a batalha que começa e a divisão, tudo isso era um drama na humanidade santíssima de Nosso Senhor. Mas um drama do instinto de sociabilidade, no afeto que Ele tem. O amor d’Ele, em larga medida, está ligado ao instinto de sociabilidade.

Durante a Paixão, o sofrimento d’Ele chega ao auge. Enfim, está tudo dito, não tenho que acrescentar nada.

Uma Missa na Sainte-Chapelle, durante a Idade Média

Compreende-se, então, que a Revolução procure trabalhar para que todo esse elemento propulsor, tão profundo no homem e tão capaz de arrastá-lo, esteja nas mãos dela. E ela fez o seguinte jogo:

No começo, tomando o homem normal, medieval, inocente, cheio de apetência pelas verdades metafísicas, com aspectos terra a terra ao mesmo tempo.

Podemos imaginar num domingo uma Missa na Sainte-Chapelle com o acesso livre à população de Paris. Tilinta a sineta e vão entrando as famílias, os casais, para assistirem à Missa.

Um é pequeno nobre do interior que foi tratar de negócios, ou descansar, ou participar da festa de um santo padroeiro, e que está hospedado em Paris. Outro é um casal de mercadores com uma lojinha ali perto. Outro ainda é, por exemplo, um estudante cuja família está no interior e que vai sozinho à Missa.

Estou imaginando todos eles no estado de equilíbrio: calmos, tranquilos, gozando o sossego do domingo, uma unção dominical que havia antigamente, e um pouco antevendo o descanso que eles deverão ter à tarde. Entram na Sainte-Chapelle, sem nenhum choque, com uma espécie de continuidade com a vida que levam, contemplam a maravilha da Sainte-Chapelle e se enchem de tudo aquilo.

Vamos imaginar que São Luís apareça para assistir à Missa também. Ao sair, um deles comenta: “Estava bem disposto hoje o nosso bom Rei Luís!”

Wilwarin (CC 3.0)
Portal da Sainte-Chapelle – Paris, França

Entram noivos também. Como são esses noivos? Residem, em geral, no mesmo bairro, às vezes pertencem a ramos mais ou menos distantes de uma mesma família, conhecem-se há muito tempo. Conduzem o noivado sem aflição, sem apoteose, sem torcida; sabem que vão se casar mesmo, estão marcando o dia, têm seus planos. Esses planos não são deliciosos, embora tenham grandes esperanças. Eles se tratam com respeito, com distância, e esperam fundar uma família que seja a continuidade da família calma e sacral à qual pertencem. O noivado e o casamento são dois lances a mais de uma determinada ordem de coisas normal.

Relacionamento com base no egoísmo

Diante desse quadro, sentimos melhor o papel dos trovadores e das cortes de amor que fizeram as pessoas se desgostar dessa normalidade. Entra aqui a tal náusea da normalidade.

É um defeito do homem, concebido no pecado original, que quer encontrar nas coisas desta Terra certas formas de auge e de gáudio próprias exclusivamente do Céu. E que então começa a imaginar coisas nesta Terra à maneira carnal e humana, que lhe deem alegrias que ele nesta Terra não tem. Mas ele fica fechado para o gáudio da Sainte-Chapelle, naquele domingo.

A fruta do demônio é essa. O demônio oferece essa porcaria mesmo, e não outra coisa.

O homem tem, no fundo, uma apetência de gáudios que ele não pode alcançar porque se fechou ao maravilhoso, ao sobrenatural e até ao natural em ordem à Fé. Então vem a sugestão: “Que mundo difícil, que domingo pesado, que pai obeso, que mãe banal, que irmãos comuns! Oh, preciso sair, passear, conhecer coisas novas, viajar! Procuro alguém com quem eu possa viver esta vida, mas que seja uma Isolda, uma Dulcineia, ou algo assim, em cuja experiência psicológica vou viver uma existência completamente diferente.”

Seria mais ou menos como se a bem-amada fosse uma lâmpada que se acendesse na vida dele, e que desse um colorido maravilhoso às realidades banais da existência. Ele viveria olhando para a lâmpada e não para a vida, como uma mariposa para o fogo.

Vamos dizer que na hora de irem para a Missa, eles se vejam pela primeira vez. A Sainte-Chapelle não tem beleza, a Missa é enfadonha, o recolhimento insuportável, a oração se faz para com um Deus distante a Quem não sentem ter acesso, nem que tenha continuidade com eles, a Comunhão é uma rotina, o convívio dos outros se torna insuportável. Ele só quer aquela Dulcineia, e ela só aquele Dom Quixote.

Nessa perspectiva, fica criada a saciedade, e o relacionamento é deslocado de seu centro de gravidade e de sua rota. A pessoa que se engaje nisso vai travar um relacionamento com base no egoísmo: são agradáveis as pessoas conexas ou afins com esse sonho; são enfadonhas todas as outras; é inimigo todo aquele que cria dificuldade para a realização desse sonho.

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 5/1/1984)

1) Cf. Gn 2, 18.

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