Dona Lucilia possuía um profundo conhecimento da Doutrina Católica, não tanto devido à leitura de livros, mas a suas observações e meditações a respeito de fatos da vida. A fim de formar seus filhos e instruí-los sobre os Novíssimos, ela narrava casos impressionantes ocorridos com pessoas relacionadas com sua família.
Em Dona Lucilia eu via grande seriedade e profundidade, e seu amor para com todas as verdades ensinadas pela Igreja Católica, entre as quais os Novíssimos do homem.
Amor à seriedade
Naquela fotografia tirada em Paris, ela está vestida com certa pompa, certa distinção que as senhoras daquele tempo, quer dizer, imediatamente antes da Primeira Guerra Mundial — 1914, portanto —, usavam quando iam para uma reunião social. E mamãe, com certeza, estava vestida para uma reunião social.
Se bem que ela se encontrasse com uma preocupação de se fazer fotografar de um modo condigno e respeitável, e de outro lado tivesse diante de si a perspectiva de uma reunião social, na qual uma senhora cônscia de suas responsabilidades compreende que tem um papel a representar, que deve absolutamente ter realce, destaque, saber conversar, apesar de tudo isso ela está com o melhor do seu espírito voltado para paragens muito mais altas, e numa atitude de quem, contemplando verdades sérias, se põe numa posição de alma séria; e ama muito a seriedade.
Quer dizer, há um bem-estar dela na seriedade que se nota no fundo do seu olhar.
Eu percebo isso até por um pequeno pormenor que aqueles que não a conheceram não podem notar. Ela tinha os olhos, como a maior parte das senhoras brasileiras, de cor castanho-médio, comum. Mas quando ela considerava qualquer coisa com mais seriedade, mais atenção, a tonalidade de seus olhos mudava um pouco, e aquela cor castanha se tornava castanho-escuro, indicando o esforço visual que estava atrás do esforço da reflexão.
Confiança na salvação eterna, pela bondade de Nossa Senhora
É bem como o olhar dela está nessa fotografia. Sua atitude é de senhora de sociedade, mas muito decidida. Naquilo que ela crê, ela crê; aquilo que ela sabe, ela sabe; para aquilo que está disposta a fazer sacrifícios a fim de homenagear e propugnar, quer dizer, a Santa Igreja Católica, ela fará o esforço necessário.
Toda a educação que ela me deu está em germe naquela atitude de alma.
E essa atitude torna a pessoa muito propensa a refletir a respeito dos Novíssimos. Porque uma pessoa que está colocada diante de coisas sérias, mas não gosta das coisas sérias e sim da brincadeirada, da malandragem, da bobice, toma um ar enfadado, enfarado, aborrecido, de quem está querendo escapar daquelas ideias para cair na folia habitual.
Não havia nada disso com ela. Dona Lucilia sentia-se inteiramente à vontade naquela contemplação, naquela meditação, e a firmeza de sua vontade lhe dá uma espécie de segurança e de certeza de que, com confiança em Nossa Senhora, ela chegará até ao Céu; essas são as notas dominantes de sua vida.
A chama que se desprende de uma lamparina…
Mamãe também contava, de vez em quando, casos a respeito do Inferno. Não tanto tirados de livros de piedade, que no tempo dela no Brasil não eram muito difundidos, mas de fatos que se narravam nas rodas familiares dela e das famílias amigas.
Por exemplo, o caso de uma fazendeira muito rica, cujo marido tinha oito fazendas, mais ou menos próximas uma das outras; o que formava um latifúndio colossal.
Esse homem, naturalmente para fiscalizar essas propriedades, tinha que ir de uma fazenda para outra com alguma frequência. E nessas viagens ele muitas vezes dormia — essas fazendas tinham casas — ora numa casa, ora numa outra e depois voltava para a residência dele.
Quando havia essas viagens, essa senhora, cujas filhas já estavam casadas, pedia para uma sobrinha solteira fazer-lhe companhia, principalmente durante a noite. O que era uma coisa compreensível na solidão do sertão daquele tempo, sem policiamento. E certa noite ela acordou a sobrinha e lhe disse: “Minha filha, você está vendo?”
A sobrinha olhou e percebeu que de uma lamparina que estava lá, uma chama se desprendeu, deu a volta por todo o quarto e se apagou. E elas ficaram muito impressionadas com aquilo.
Qual não foi a sensação que elas tiveram quando, de manhã bem cedinho, veio um empregado de uma das fazendas dele, a cavalo, a toda a pressa, contar que o fazendeiro fora encontrado morto no cafezal!
Ela contava isso com uma seriedade que fazia com que a pessoa sentisse a realidade e a gravidade da Morte, do Juízo e do risco de se cair no Inferno.
Mas Dona Lucilia também gostava muito de narrar fatos relacionados com o Céu, sobre almas que estavam glorificadas no Paraíso porque tinham sido muito boas na Terra.
Um homem que caluniava Dr. Antônio Ribeiro dos Santos…
Ela falava com alguma frequência da Morte, sobretudo fazendo sentir a solidão da Morte. Quer dizer, quando a pessoa estava para falecer, apesar de ter o quarto cheio de parentes, amigos, etc., há alguma coisa que a separa de todo o mundo. Ela está morrendo aos poucos e se aproximando do instante em que vai estar sozinha em face de Deus, será julgada e terá de prestar contas de sua vida; e naquela hora será precipitada no Inferno, ou mandada para o Purgatório, ou irá diretamente para o Paraíso. E mamãe exprimia isso muito bem.
Dona Lucilia contava fatos bonitos a respeito da morte. Por exemplo, o caso de um homem que fora grande inimigo do pai dela. Era um chefe político daquela zona de Pirassununga, onde ela nascera, um homem de boa família de São Paulo, mas que tinha em relação ao pai dela um ódio gratuito, sem razão.
Várias vezes, esse homem pregou calúnias contra o meu avô, o qual teve que se defender e sempre conseguiu provar que ele estava sendo caluniado, e que o caluniador era aquele indivíduo, etc.
…é preso e pede a Dr. Antônio que o defenda
Meu avô era muito bom advogado e, estando em Pirassununga, recebeu certo dia um telegrama desse inimigo dele, que morava em São Paulo, dizendo o seguinte:
“Eu estou preso porque fui acusado de tal crime. E devo ser julgado no dia tanto perante o tribunal do júri de tal cidade — uma localidade próxima a Pirassununga. Como eu não confio em ninguém tanto quanto no senhor, peço que aceite defender-me.”
Era uma sem-vergonhice desse homem pedir, sem mais nem menos, que tivesse como advogado aquele que ele caluniou. Ele deveria começar por dizer: “Eu reconheço que tais coisas assim foram calúnias, peço perdão e misericórdia. A misericórdia consiste em consentir em me defender.” Aí estaria bem. Mas, antes desse pedido de perdão e de misericórdia, não se concebia.
Mas meu avô era um homem — segundo ela contava, porque não o conheci — muito paciente e misericordioso, e mandou telegrafar-lhe dizendo o seguinte: “Esperá-lo-ei na estação quando o senhor descer do trem, e aceito o encargo que me confia.”
Em cidadezinha do interior, máxime naquele tempo, esses fatos tinham uma importância enorme, todo mundo queria ver a notabilidade chegar, com os soldados de um lado e de outro, presa com algemas e ir para a cadeia. E era uma coisa horrível o que o povo fazia, mas se a cadeia não era longe da estação, o prisioneiro ia a pé até a prisão e com todo o povo acompanhando. E naturalmente os inimigos dele dizendo coisas horríveis, contra as quais ele não podia se defender porque estava manietado.
Quando meu avô chegou à estação para receber o homem, percebeu que o local estava cheio de inimigos do cliente dele. Então meu avô disse uma coisa mais ou menos desse gênero, falando bem alto para todas as pessoas ouvirem:
“Todos sabem que aqui chegará preso Doutor Fulano de Tal, mas nem todos têm conhecimento de que ele vem como meu cliente. E sendo meu cliente está sob a minha proteção; por causa disso qualquer ultraje feito a ele é uma ofensa contra mim. A honra dele está sob o meu amparo, e eu quero saber quem vai por esta forma me agredir.”
O homem desceu do trem, meu avô mandou embora os soldados e passou o braço por debaixo do braço dele. Cumprimentou-o amavelmente, perguntou se tinha feito boa viagem; tudo isso na presença de todos que lá se encontravam, que ficaram pasmos, porque era conhecida a inimizade entre o réu e o advogado.
Depois disse: “Vamos então!” E começou a atravessar a multidão, que abriu fileiras, e ele foi até a cadeia, onde o homem ficou preso.
Dominado pelo vício da inveja
Aí meu avô foi estudar o caso, porque os papéis todos vinham de São Paulo. E ele achou o seguinte: não estava provado que o homem era inocente, e nem que era culpado. Tratava-se de um caso nebuloso. E quando não está provado que um indivíduo é culpado, se deve soltá-lo. Uma pessoa não pode ser presa por uma suspeita.
Então meu avô compareceu como seu advogado no júri e fez a defesa dele nesses termos. Quer dizer, não declarou que era inocente — porque ainda não estava provada sua inocência —, mas disse que quando não se provou que uma pessoa era culpada de um crime, ela não podia ser condenada, nem ser, portanto, objeto de vaias, de apupos. O crime de que aquele homem era acusado não estava provado, logo se supunha que ele era inocente.
Com isso o indivíduo foi solto e já aquela noite não dormiu na cadeia, mas numa casa qualquer dele ou de outrem. E começou a levar a vida de um homem livre.
A senhora dele, que estava na cidadezinha, foi a Pirassununga visitar minha avó para agradecer toda a bondade que meu avô tinha tido, porque ela não afirmava que o marido fosse criminoso, mas reconhecia que o mau trato que ele tinha dado ao meu avô anteriormente não lhe concedia o direito de recorrer aos seus serviços. Seu esposo podia ter pedido a qualquer outro advogado que o defendesse, mas foi logo solicitar ao meu avô.
E na conversa essa senhora disse à minha avó:
“Meu esposo é um invejoso e tem uma inveja medonha do Dr. Ribeiro; quando vê o Dr. Ribeiro ter triunfos como advogado e fazer dinheiro, ele que não consegue o mesmo começa a caluniar o seu marido. Eu reconheço que é malfeito, mas ele é meu esposo; estou ligada a ele para a vida e para a morte, e tenho que seguir o caminho junto com ele.”
Atingido por grave doença, pede auxílio em altas horas da noite
Anos depois — eles não se viram mais —, já em São Paulo, tarde da noite, garoando, para um carro, ainda era o tempo dos carros puxados a cavalo, na porta da casa de meu avô e o cocheiro entrega um bilhete. Era daquele homem.
“Dr. Ribeiro, eu me encontro reduzido ao extremo, condenado a morrer porque estou passando muito mal, com tal doença; além do mais não tenho dinheiro para me tratar, e então quero saber se o senhor poderia vir aqui em casa, arranjar um médico para mim e me dar de presente o dinheiro necessário para eu comprar os remédios. E mais ainda, passar de carro por uma farmácia, mandar que seja aberta e conseguir os remédios. Porque se não for isso eu morro.”
Uma pessoa de minha família, que estava em casa do meu avô quando chegou esse bilhete, disse-lhe:
— Totó — meu avô chamava-se Antônio, mas no trato de casa comum era Totó — não atenda, faça esse homem agora sofrer tudo que ele quis que você padecesse. Chegou a hora de você se regozijar, a hora da justiça de Deus.
— Não, esse homem bateu à minha porta, e vou ter misericórdia para com ele; eu quero que Deus tenha misericórdia comigo quando chegar a minha vez.
— Mas você está doente, e ainda com essa garoa aí fora!
— Não tem conversa, eu vou.
Cobriu-se com agasalhos, etc., e lá foi meu avô para a casa do homem, que ficava num bairro afastado.
Lição de misericórdia
Afinal, meu avô chegou à residência do indivíduo, bateu na porta, entrou e encontrou esta cena: o quarto em que esse homem estava não tinha nenhum móvel, mas apenas uma cama com um colchão encostado na parede, de maneira que esta servia de cabeceira para apoiar o travesseiro.
Ele disse, arfando: “Dr. Ribeiro, muito obrigado.”
— Mas o que o senhor tem?
— Estou tuberculoso em alto grau, e às portas da morte.
Meu avô, sentado na cama dele e sujeito a contágio, tomou nota do que ele sentia para explicar ao médico, e tentaria que este fosse àquela hora da noite à casa dele; depois iria comprar os remédios numa farmácia.
Após algum tempo, meu avô retornou à casa do homem, deu-lhe todos os remédios, e mandou reservar uma passagem especial para o enfermo e sua senhora, num trem que devia ir no dia seguinte para a cidade do interior do Estado, onde ele queria morrer. Os dois embarcaram, tendo o meu avô pago tudo.
Era uma lição de misericórdia que mamãe dava, lição esta acompanhada da ideia de que quem não tem misericórdia não receberá misericórdia. E que a clemência de Deus e de Nossa Senhora, no Juízo, é reservada especialmente para os clementes.
Naturalmente, um menino, como era eu, se impressionava muito com esse fato narrado por Dona Lucilia, e as ideias sobre o Céu, o Inferno, o Juízo, a Morte, se radicavam muito no meu espírito.
(Extraído de conferência de 11/10/1993)