Dentro da vida comum de uma dona de casa, o semblante, o porte e as atitudes de Dona Lucilia manifestavam a calma e a glória de quem vencera as batalhas da existência deixando intacto o tabernáculo interior, e conseguira provar que é possível, mesmo em nossos dias, o verdadeiro afeto.
Certa ocasião — tinha eu 21 anos de idade e sentia-me muito cansado — um amigo ofereceu-me de irmos à fazenda dele, em Botucatu, para descansarmos um pouco. Chegando lá, resolvemos, como todos os rapazes fazem, andar a cavalo.
O jovem Plinio cai do cavalo
Mas o caipira que preparou os animais apertou mal a barrigueira do meu cavalo. Eu não percebi, montei e, antes mesmo de sairmos, fiz um movimento meio brusco, virei e tomei uma queda muito forte; bati com a espinha numa pedra e passei dois ou três meses andando de bengala.
Não dei maior importância à coisa. Voltei a São Paulo e mamãe também não se preocupou com o fato.
Certa noite, meu amigo veio à minha casa e disse a Dona Lucilia: “Olha, estive com meu tio — era um dos melhores clínicos de São Paulo naquele tempo — e ele mandou dizer à senhora que vale a pena mandar tirar uma radiografia da espinha do Plinio, porque às vezes não há sinal de perda de imobilidade das pernas; mas, quando ele tiver 40, 50 anos, se manifesta uma lesão que pode ser muito ruim. Era melhor tirar uma radiografia.”
Ela ficou muito alarmada.
Resolvemos no dia seguinte ir a um hospital, no qual havia um parque enorme, chamado Instituto Paulista. Mamãe quis ir junto. Fomos ela, meu amigo e eu; andamos por todo aquele jardim, etc., e eu me apoiando na bengala. Depois eu quis ir à capela desse instituto, onde tinha recebido uma graça e uma consolação colossal anos atrás, e fui rezar lá. Eu nem estava pensando no negócio da espinha…
Quando afinal voltei, encontrei mamãe sentada num local perto da sala das radiografias, rezando o rosário durante todo o tempo, e com os olhos úmidos de lágrimas. Eu disse: “Mas mãezinha, o que é isso?” Ela continuou a rezar e não respondeu. Continuei:
— Mas me explique um pouco…
— Eu estou muito apreensiva, afirmou ela.
— Mas por que a senhora está apreensiva?
— Conforme for o resultado, você verá.
Daí a algum tempo veio o médico, que era conhecido nosso, com a radiografia, e disse a ela:
— Não tem nada.
Ela perguntou:
— Mas Doutor, o senhor garante que não tem nada mesmo?
Ele a tranquilizou:
— Dona Lucilia, a senhora não vai entender, mas posso mostrar um pouco nesta radiografia que está tudo perfeito.
Notei que ela teve um desafogo.
Dia da formatura na Faculdade do Largo São Francisco
Outro momento no qual ela passou por grande aflição foi quando cheguei quase atrasado à minha formatura na Faculdade de Direito. Aí ela fez um drama comigo que nunca fizera em outra ocasião. Chamou-me para irmos ao quarto dela, que era longe, no outro lado da casa. Entramos, era dia de formatura e pensei que ela fosse me dizer alguma coisa agradável; ela passou a chave na porta, coisa que nunca havia feito, e pôs-se de joelhos diante de mim.
Eu disse:
— Mas mãezinha, o que é isso?!
Ela respondeu:
— Você não sabe o que eu sofri durante esse tempo, e você vai me prometer que nunca mais repetirá isso.
Então percebi o que era. Dei risada, ajudei-a a levantar-se. Ela afirmou:
— Não, você não está tomando a sério o que estou dizendo e a coisa é seríssima.
— Está bem, eu prometo tudo o que a senhora quiser…
Passamos, então, à sala onde estavam as outras pessoas. Foram as duas vezes que a vi assim.
Daí essa calma que vemos nesta fotografia. É uma pessoa que viveu sua vida e tem a sensação de que os vagalhões todos vieram, mas não penetraram nem desarranjaram em nada esse tabernáculo interior, e que, portanto, a vida estava feita. Alguma coisa que nessa idade ainda viesse não era mais nada. Ela estava se preparando para o Céu.
A calma e a glória
Ela possuía uma gaveta na mesa de toilette dela, onde guardava papéis. Algum tempo antes de morrer, vi que ela andava remexendo aquilo e rasgando muitos papéis. Uns dias depois da morte dela, fomos verificar o que havia na gaveta, e vimos que ela guardou o essencial; e que fizera aquilo para não termos trabalho com os papéis dela, quando ela tivesse morrido.
Observei, então, que ela mandou jogar fora coisas que eu teria gostado enormemente de conservar. Mamãe fazia as contas da casa — era uma empresa que fornecia aos fregueses uma espécie de notas, formando um caderno com todos os dias do ano —, e escrevia, a cada dia, as despesas. Tudo isso ela jogou fora, pela preocupação de não dar trabalho a ninguém. Vemos, assim, a serenidade no transpor a morte, com a tendência ainda de dar com isso uma prova de amor e receber uma prova de amor, que era o carinho dela até onde chegava. Mas na calma, vivendo a existência de todos os dias.
De maneira que quando ela adoeceu, foi uma coisa completamente inopinada. Ao cabo de dois, três dias, estava morta.
Nesta fotografia se nota, em nível modesto, doméstico, tanto quanto uma dona de casa pode ter, a glória e a calma convivendo. A vida passou, mas ela está inteiramente tranquila , com a sensação de que aguentou tudo.
E, depois, tão afável, tão amável, tão pacífica… Mas há um pouquinho de glória do Céu que recende aí. Não existe só esse sentimento terreno de que estou falando. Há alguma coisa de celeste, que é incomparavelmente mais, e se exprimiria assim: a Providência está protegendo-a, ela tem um misterioso sentir de que não vai suceder também mais nada. Só acontecerá a morte, para a qual ela está preparada. Deixe-a vir, já está tudo em ordem.
O Sinal da Cruz que ela fez ao falecer indica bem isso. Ela se recostou, ergueu-se um pouco mais, fez o “Nome do Padre” grande e caiu morta. É a calma e a glória no Céu, no plano natural e no sobrenatural.
Afagos que desfazem um penteado
Quando ela morreu, lembro-me de que chorei até em altos brados. Depois entrei para o meu quarto a fim de fazer a toilette e começar a vida. Recordo-me até de que me deitei na cama para fazer um curativo no meu pé, que tinha sofrido uma amputação. De repente, uma alegria tomou conta de mim, sem nenhum propósito, e passei o dia inteiro sereno. Triste, evidentemente, mas calmo.
Eu tinha resolvido ir, no dia seguinte, a uma fazenda de amigos meus, para espairecer um pouco. Meu médico, que estava em São Paulo, resolveu tirar minha pressão para ver se, com a emoção da morte, não tinha levado algum abalo, o que seria normal. Ele mediu a pressão e notou que tinha subido de um grau só, o que é completamente irrelevante. Por causa do dia tranquilo, sereno, que passei.
Eu poderia contar cem coisas, em todas as idades.
Por exemplo, lembro-me de que quando fizeram a inauguração do Teatro Municipal em São Paulo, mamãe — como todas as senhoras da sociedade paulista— deveriam vestir-se de grande gala. Ela, então, mandou fazer um vestido fino.
Para a criança, ver a mãe vestida de gala é um acontecimento. E Rosée, muito viva e inteligente, um pouquinho mais velha do que eu, compreendeu logo que não podia abraçá-la e beijá-la sem certa proporção. O temperamento feminino é mais intuitivo para isso. Ela beijou e abraçou mamãe, com cuidado.
Depois chegou minha vez…
Mamãe usava os cabelos longos, e os tinha arrumado especialmente para aquela ocasião. Com meus agrados, comecei a desfazer todo o penteado.
Os circunstantes falavam:
— Lucilia, diga para ele parar, porque estraga seu penteado!
E ela, me afagando, dizia:
— Filhinho, etc….
Sem me dar conta, pus aquilo tudo em desordem. Ela, entretanto, não consentiu em que me fizessem cessar. E a ouvi dizer em certo momento: “Nunca farei cessar um agrado de meu filho.”
Alguém afirmará: “Não é um martírio ter que refazer um penteado.” Mas é muito desagradável. Depois, não custava nada dizer: “Meu filho, agora não…” Entretanto, o princípio foi mantido: “Nunca farei cessar um agrado de meu filho.”
Um hematoma no pulso
Quando menino, meus afagos para ela eram torrenciais, mas desajeitados. E eu, para agradá-la, batia no braço dela, etc. Recordo-me de que estávamos almoçando todos em casa de minha avó, numa mesa muito grande, e mamãe portava um vestido em que a manga não chegava até o punho, deixando aparecer uma pulseira de marfim que ela usava.
De repente, alguém lhe perguntou:
— Lucilia, o que é esse hematoma que você tem aí no pulso?
Ela, um tanto ingenuamente, respondeu:
— Foi um agrado do Plinio.
Todos os convivas caíram na gargalhada. Eu, também sentado à mesa, não compreendi o que aquilo tinha de risível.
— Mas Lucilia — continuou a pessoa —, onde é que se viu isso?!
Ela manteve-se séria, sem azedume, e disse:
— Não sendo o mal, Plinio pode fazer o que quiser.
Necessidade do verdadeiro afeto
Eu tive todas as doenças que em criança se possa ter, exceto varíola: mil gripes, caxumba, catapora, rubéola… Eu era um menino forte, mas apanhava essas enfermidades. Lembro-me de que, quando tive caxumba, minha avó, que era senhora do interior, quis curar a doença com um processo antigo, o qual consistia em pegar uma colher de pau, introduzi-la em não sei que óleo ou sebo quente, e aplicar na caxumba.
Mamãe, que já conhecia meu modo de ser, sentou-se na minha cama — correndo o risco de contrair a doença que ela nunca tivera — e me disse:
— Filhão, sua avó está querendo que você faça um tratamento antigo para essa sua caxumba, que está demorando tanto para curar. Se der certo, sara mais depressa e você levanta logo da cama. Você quer fazer?
E eu interroguei:
— Mas o que é?
Quando ela me falou da tal colher de pau com sebo, eu disse:
— Isso nunca! Não quero essa coisa comigo. Diga para vovó que não, de nenhum modo.
Deu-me a ideia de sujeira. Aplicar em cima da caxumba — que já se me afigurava como uma coisa suja — uma colher de pau, metida num sebo qualquer, é grotesco; fica aquela sujeira em cima. Isso não!
Mamãe não insistiu e a coisa passou. Ela tinha esperança no tratamento, mas como eu não queria, e não havia um mal nisso, respeitou minha vontade.
Quem foi objeto desse afeto materno acredita que na vida é possível o afeto. Pelo contrário, quem não o teve, fica como navio sem leme, porque julga que na vida esse afeto não existe, e fica desgarrado, porque a existência perde um dos seus sentidos.
Considerando o caos no qual vamos afundando, é preciso ter uma confiança em quem, do Céu, é mãe para nós. Antes de tudo, Nossa Senhora, mas depois alguém mais próximo, em quem possamos confiar ao nos metermos nessa barafunda, onde tudo é um entremorder-se de feras dentro de uma confusão horrorosa, em que ninguém pode confiar em ninguém. Essa disposição de alma confiante é indispensável para nós, ao longo de toda a vida.
(Extraído de conferência de 21/4/1990)
Medication Therapy Management: Pharmaceutical spending, Insurance Coverage, And The Guid