As diferenças de psicologias existentes entre as várias regiões do Brasil não causam fricções devido ao bom gênio brasileiro. A expansão populacional do país deu-se por um processo natural, mas sobretudo providencial em que Deus foi pondo em ordem todas as coisas.
Para exemplificar as teorias sobre organicidade que vimos desenvolvendo, tomemos o Brasil como ele é constituído hoje em dia.
Interpenetração por osmose
Um bom observador notará haver mais diferenças de psicologias entre os Estados brasileiros do que parece à primeira vista. E que se essas diferenças não se transformam em fricções, ou, quando ocorrem, constituem atritos mínimos, é por causa do bom gênio brasileiro.
Todo o jogo planetário tem a sua vida natural, mas existem Anjos que o regem, sem que deixe de ser um fenômeno natural, porém com intercorrências e apoios sobrenaturais que entram para completar isso.
No que resultam essas diferenças? Há, por exemplo, um Rio Grande do Sul que difunde sua própria influência sobre os dois outros Estados vizinhos, que são, em ordem geográfica, Santa Catarina e Paraná. Esses três Estados, no seu conjunto, têm uma espécie de mentalidade e modo de ser que vão se tornando menos parecidos com o Rio Grande e mais parecidos com São Paulo, à medida que se aproximam deste último Estado. Mas, até o momento de entrarem 100 ou 150 quilômetros em São Paulo, ainda se sente certo “cheiro” de Rio Grande do Sul.
Depois, avança-se em São Paulo e toca-se nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Mato Grosso. Nota-se que Rio de Janeiro e Minas Gerais têm, em alguns pontos, uma interinfluência muito grande. Por exemplo, entre o campista e o mineiro existe uma interinfluência enorme, que eu poderia mostrar no que consiste, mas não o faço por brevidade.
Nos limites entre Minas e Espírito Santo notaremos haver sempre um fenômeno semelhante ao existente, por exemplo, nos limites da Alemanha com a França: cidades da Alemanha que falam francês, cidades da França que falam alemão; nomes franceses na Alemanha, nomes alemães na França. É uma espécie de interpenetração, por osmose, ao longo de toda a fronteira, mas depois, em certo momento, começa propriamente a Alemanha e a França. Isso se dá mais ou menos com todos os Estados brasileiros.
Mentalidade una
O que determinou essas circunstâncias diferenciadoras? Poderíamos alinhar mil fatores, e quando se alinham mil, quer dizer que nada é decisivo. Mas há uma resultante daí chamada Brasil. Esta resultante constitui um unum, há uma mentalidade una, e um todo que seria simplificador chamar de síntese, pela seguinte razão:
Vemos se abrirem novos Estados no Brasil, lá na zona da Amazônia. O Acre, por exemplo, foi antigamente um território dependente do Governo Federal, hoje é um Estado. Há outras regiões assim, que ficam pelo Norte do país, onde se nota uma coisa curiosa: são povoados por adventícios de outros lugares, mas que chegam nessas regiões e formam um conjunto capaz de “esticar” psicologicamente o Brasil até lá, e é o mesmo Brasil com outra mentalidade; é um fenômeno muito parecido, em ponto republicano, com o processo de fundação que se deu, em ponto feudal e monárquico, com os vários reinos que constituíram a Espanha. Muito mais parecido ainda com as várias regiões de Portugal: cada região forma um paisinho, e assim se compõe Portugal.
Como cada coisa dessas se constitui e como o todo se forma? Creio que é um processo natural, mas especialmente providencial, que a Providência teve em vista quando ordenou as coisas de maneira que as causas segundas rolassem nesse sentido, e que há nisso uma espécie de superior sabedoria como a que põe em ordem, por exemplo, o reino vegetal, o reino animal, etc., uma manifestação do poder de Deus que excede a inteligência humana e onde entra um plano muito superior.
A meu ver, quando a unidade das nações regionalizadas é feita sem apego e nas proporções devidas, é tocada por forças e instintos naturais dos homens, que convém descrever e explicar em alguma medida, mas não até ao fim, porque há uma ordem superior dentro disso.
O processo natural unido ao sobrenatural
Há nos vegetais uma força pela qual a planta puxa os nutrientes da terra que chegam, por diversas transformações, até as capilaridades do vegetal.
Assim também na formação das elites há uma pressão para cima que faz com que o nobre vá aparecendo e, depois do convívio dos nobres, vai surgindo no mais alto grau o rei. Para usar outra metáfora, as nações produzem seu rei como as abelhas, o mel.
Contudo, como na sociedade orgânica os fenômenos se passam com homens e não com bichos nem com plantas, entra também, na ponta do processo natural — não é sempre, mas com alguma frequência —, algo que é uma interferência de Deus, com uma gota de sobrenatural em que há uma instauração de Deus. Daí a necessidade da intervenção da Igreja.
Porque para agir conforme a natureza, portanto de acordo com a vontade de Deus, o homem concebido no pecado original tem cem tendências contra; e se a graça não está continuamente amparando-o, bem sabemos que besteiras ele faz.
Quando desce uma bênção sobre uma dinastia, a tendência geral de todos para o bem produz um movimento subconsciente, que destila uma família que a ordem natural indicou. Mas por detrás da ordem natural está a Providência.
Então, para esse próprio processo natural correr segundo a natureza, o Anjo da Guarda, o sobrenatural, a graça estão juntos, mais ou menos como há Anjos regendo cada corpo celeste. Todo o jogo planetário tem a sua vida natural, mas existem Anjos que o regem, sem que deixe de ser um fenômeno natural, porém com intercorrências e apoios sobrenaturais que entram para completar isso.
Assim, quando desce uma bênção sobre uma dinastia, por exemplo, a tendência geral de todos para o bem produz um movimento subconsciente, que destila uma família que a ordem natural indicou. Mas por detrás da ordem natural está a Providência.
Humildade e flexibilidade
A dinastia é, no alto de um país, mais ou menos como as duas torres de Notre-Dame, tendo ao fundo aquela espécie de flecha. Elas ordenam e explicam a catedral, e a levam à sua mais alta expressão, mas não são propriamente o edifício. Também não são estranhas a ele; elas são uma magnífica protuberância do edifício.
Assim também, o rei é uma magnífica protuberância da nação.
Vou dizer uma coisa um tanto ousada, mas que parece deduzir-se do até aqui exposto. A situação do rei é, debaixo de vários pontos de vista, parecida com a do religioso: ou ele tende continuamente para a perfeição, ou é um demolidor da ordem da qual ele é, ao mesmo tempo, o princípio ordenador e explicador perfeito, e o símbolo máximo. De onde, então, a necessidade de haver muitos reis santos para que todo esse prédio não caia no chão.
Dou um exemplo que pode ajudar-nos a compreender a humildade e a flexibilidade exigidas de um monarca.
Luís XV, Luís XVI são fenômenos de cansaço desse arquiprofessor que foi Luís XIV
Um professor pode ser tão plenamente um mestre, que ele estimule todas as energias intelectuais dos discípulos a produzirem tudo quanto podiam e até mais. O problema seria encontrar um professor que tivesse este talento, mas seria também de conseguir que o professor não incentivasse no aluno uma ambição maior do que a capacidade dele. De maneira que em nenhum momento da formação quisesse que o menino fosse um mocinho, que o moço fosse um homem maduro, etc., mas respeitasse os limites naturais de cada etapa. Do contrário, esgotaria o sujeito e o transformaria em fogo de artifício gasto, não valendo mais nada.
Quando um homem que lidera uma nação consegue levá-la a dar tudo, mas não procura fazê-la dar demais, deixa “gasolina” para os séculos futuros. Mas quando o líder a faz andar demais, ela decai durante o governo dos sucessores dele.
A meu ver, um dos grandes erros de Luís XIV foi que ele quis fazer a França progredir demasiadamente rápido. Versailles deveria ter sido construído cem ou duzentos anos mais tarde. Ele procurou esticar a França e, como resultado, veio o cansaço. Luís XV, Luís XVI são fenômenos de cansaço desse arquiprofessor que foi Luís XIV.
O “vovosão” Dom Pedro II
No Brasil deu-se um fenômeno diverso. A família imperial brasileira estava colocada numa posição muito singular, porque tomava um país muito atrasado que se encontrava sob a direção de uma nação decadente, e com a influência da luta contra uma selva habitada por índios e dotada de uma natureza tão pujante que o homem, em certos momentos, fica semidesnorteado, sentindo-se meio pequenino. Tanto mais que se a pujança fosse sempre a do belo, seria uma coisa; mas muitas vezes é a pujança do grotesco.
Então, parece-me que sob esse ponto de vista, D. Pedro II e Dona Teresa Cristina foram de um ajuste muito profundo e acertado, não intencional, porque o intencional nunca acerta tanto. Creio que D. Pedro II conseguiu ser o que o Brasil queria: o “vovosão” do país; e Dona Teresa Cristina a avó bem-amada do Brasil, querida e respeitada por todos. Havia uma espécie de ligação que, numa monarquia europeia, pessoas da mesma dinastia não teriam.
Por exemplo, a cena que Dona Lucilia contava: D. Pedro II, visitando o interior, parou em Pirassununga, desceu do trem e foi para a casa de meu avô, onde estava preparada a recepção municipal. O Imperador sentou-se no sofá e minha mãe, muito menina ainda, foi-lhe apresentada por meu avô como sua filha mais velha. D. Pedro II olhou-a e disse-lhe: “Vem cá.”
Ela foi, e ele colocou-a junto de si. Ela ficou muito agradada por estar sendo assim tratada pelo Imperador.
Mas a mãe dela tinha-lhe feito um penteado ultracuidadoso, daqueles que, segundo o estilo do século XIX, se faziam para meninas, com cachos, fita e toda espécie de coisas. E enquanto conversava com senhores que estavam ali, todos de pé, o Imperador, distraidamente, começou a passar a mão nos cabelos da pequena Lucilia.
Meu avô percebeu imediatamente qual seria a reação de menina: “Estão estragando meu penteado!” Ela olhou para ele como pedindo socorro. E ele fitou-a, como quem diz: “Não se mova…” Várias vezes saiu esse S.O.S. de parte a parte.
No fim, quando o Imperador terminou a visita, o penteado estava uma ruína. Mas ela nunca mais se esqueceu desse episódio, que ela gostava de contar.
Notem a familiaridade do Imperador alisando assim a cabeça de uma menina. Isso não aconteceria em outros países. Mas ele sentia que ali era preciso, e deve ter feito isso em vários outros lugares. É o Brasil!
Vamos dizer que tivesse entrado ali Luís XIV, sublime e irrepreensível: “Monsieurs et Dames, le roi va s’asseoir”1 O rei se senta… Poderia ocasionar uma frieza geral, é outra questão. Todos sabem quanto admiro a etiqueta francesa, a um grau paroxístico. Pois bem, mas tem o seu lugar, não é para cá. Por quê? Porque precisaria levar muito tempo até ela ser possível aqui, e teria de ser à maneira do Brasil.
(Extraído de conferência de 12/11/1991)
1) Do francês: Senhores e Senhoras, o rei vai se sentar.