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O tesouro da vida

A Revolução, instigando a desordem nas almas, procurou destruir o verdadeiro vínculo entre os homens. A virtude da temperança cria o clima em que esse vínculo se afirma; onde há apegos surgem as fricções e inimizades.

A propósito da doutrina sobre a sustentação dos seres1, pediram-me que estabelecesse uma distinção entre os conceitos de causa, participação, sustentação e semelhança.

Seres materiais e seres espirituais

Tomando em seu sentido corrente — e não na acepção dos quatro tipos de causas classificados por Aristóteles —, a causa é aquilo em virtude de cuja ação algo existe.

Poder-se-ia perguntar se a ação causadora não supõe certa sustentação, ou seja, se tal ação, ao produzir algo, não o faz de tal maneira que continua a sustentá-lo necessariamente.

Em relação a Deus e os seres por Ele criados isso se pode dizer. Sendo perfeitíssimo, em princípio, ao criar os seres mais elevados, Ele os causa para sempre. Evidentemente, há muitas criaturas que Deus causa e, posteriormente, faz cessar ou deixa de sustentar. Na ordem da matéria há incontáveis exemplos. Toda matéria viva está nessa linha. Portanto, essa sustentação não se aplica necessariamente para todas as criaturas, mas está na ordem dos seres espirituais. Estes, sim, uma vez que Ele os criou, não poderia deixar de causar. Esta ação de causar reiteradamente se chama sustentação. Vista por este lado, a sustentação seria uma causação ininterrupta e eterna.

A sustentação, entretanto, não é só um efeito da causa. Tomemos como exemplo uma cabra. A causa imediata dela foi o casal caprino que a gerou. Mas este morreu, desapareceu. Contudo, essa causação continua, a seu modo, por meio de uma sustentação da parte das outras cabras.

Aqui já não se pode dizer que é a causa, senão num sentido mais remoto pelo qual aquilo que chamaríamos de “capricidade” — ou seja, um atributo exclusivo desta espécie — corresponde a um modelo ideal em Deus, criado para refleti-Lo e que Ele quer que se mantenha por uma espécie de ação a qual, enquanto produzida reciprocamente pelos vários seres, não é causada por Deus, mas que Ele deseja que os seres exerçam uns sobre os outros.

Causa e sustentação colateral; semelhança e participação

Nessa ação se dá o que nós poderíamos chamar de sustentação num sentido mais familiar, que é o por onde seres que não são causas uns dos outros, entretanto, pela participação numa mesma natureza, sustentam-se mutuamente.

Naturalmente, há uma analogia entre causa e sustentação colateral, uma vez que a vida cessaria se tal sustentação desaparecesse. Contudo, enquanto a causa propriamente dita é prévia ao ser, a sustentação colateral é concomitante com ele, e nisto se distingue da causa.

Aqui se vê bem um conceito acessível de participação, pois dessa “capricidade” todos participam. O que quer dizer aí participar? Evidentemente, é ter parte. Mas o que isso significa neste exemplo concreto?

A “capricidade” pode ser concebida, de modo abstrato, distintamente de todos os seres, como um possível em Deus. Mas ela, criada, vive e se realiza nas cabras e nunca fora das cabras, em qualquer outro ser. O fato de o ser de todas elas ter em comum um mesmo princípio se chama “participação”.

Essa participação torna os seres análogos e, ao mesmo tempo, a analogia ajuda a participação.

Portanto, analogia não se confunde com participação, são conceitos distintos. A analogia, ou seja, a semelhança, é meio causa e meio efeito da participação. Como as cabras têm a mesma “capricidade”, tornam-se análogas. Então a analogia aparece como fruto da “capricidade” participada. Mas, enquanto auxiliar da participação, é meio causa desta.

Carlos Magno, de fato, no mais fundo de sua alma queria o que desabrochou. No consciente, ele queria o romano; no subconsciente ele tendia, germinativamente, para o feudal, e nisso ele foi original.

Michail (CC3.0)
Ao lado, coroação de Carlos Magno Museus Vaticanos. Abaixo, símbolo do Sacro Império Romano-Alemão com seus principados

Entrelaçamento de almas

Para aplicar esta doutrina ao âmbito humano, consideremos a instituição do Sacro Império. Houve várias épocas em que ele esteve reduzido a um símbolo, porque tal era o tumulto entre aquelas nações que o constituíam, e, dentro dessas nações, entre os feudos e seus respectivos senhores feudais, que a autoridade imperial ficou um mero símbolo.

Mas, assim que as circunstâncias o propiciavam, a autoridade imperial tomava novamente sua densidade para tender a ser aquilo que naturalmente todos sabiam, em tese, que ela deveria ser e que nunca se tentou abolir. Quem extinguiu o Sacro Império foi Napoleão, mas antes disso jamais se procurou aboli-lo, embora muitas vezes se tenha atentado, concretamente, contra a autoridade dos imperadores.

Como se explica que esse símbolo tenha sobrenadado, quase sem razões explicáveis de sobrevivência, senão por esse entrelaçamento de almas que fazia com que todos compreendessem que esse símbolo representava uma união de fundo mais ou menos inefável, e que era necessário haver, pairando no ar, uma representação simbólica como uma esperança de dias melhores?

Entretanto, isso só é possível por meio de vínculo de homem a homem que a Revolução, com suas desordens, procurou destruir, pois esse vínculo só existe onde há certa dose de temperança. Ele não é mero fruto da temperança, mas este é o clima no qual ele se afirma. Porque desde que comecem os apegos, surgem as fricções e inimizades.

Na elaboração de um ideal de império cristão deu-se uma coisa muito curiosa: desde o tempo das catacumbas, os católicos começaram a ver o Império Romano — que tinha apenas uns traços de semelhança com essa representação simbólica — com o olhar imbuído de espírito católico. E a lembrança desse império foi sendo enriquecida pelos católicos com dados que ele não tinha.

Foi sendo composta, dessa forma, uma suprema ordem em que a graça, o sangue católico, por assim dizer, foram tecendo essa relação humana, de maneira que quando o Império do Ocidente caiu, o melhor dele estava de pé, que era o ideal de uma ordem perfeita de relacionamento entre os homens. E isto foi o que alimentou a esperança dos católicos e a sofreguidão com que o Papa São Leão III coroou Carlos Magno.

Carlos Magno quis fazer o Império Romano e saiu o feudal, porque não distinguia bem uma coisa da outra. Ele, de fato, no mais fundo de sua alma queria o que desabrochou. No consciente, ele queria o romano; no subconsciente ele tendia, germinativamente, para o feudal, e nisso ele foi original.

O pariato

Encontram-se na Idade Média umas manifestações dessa vinculação de alma particularmente nobres, densas, como, por exemplo, a ideia do pariato. A noção de par tem alguma coisa disso. É uma determinada vinculação, um determinado comércio de almas que faz com que o par, sendo semelhante a outro, se deleita nessa semelhança, sem ter vontade de aproveitar-se do outro para subir, porque ele se deleita nessa semelhança e nessa paridade, e dela se nutre mais do que se ele fosse superior.

Um político tipo César Borgia, do século XVI, já é um que quer subir, que não compreende o pariato a não ser como os cavalos numa corrida que estão todos juntos: abre aquela cancela e saem para a corrida. Tais políticos entendem o pariato como uma coisa destrutiva de si própria. E o pariato não é isto. É o deleite de ter comércio com seu igual, de sustentá-lo e sustentar-se na recíproca contemplação, sem ambição de destruição. E na subordinação a um superior, que era o suserano, que preenchia o vácuo e tornava a ambição da emulação impossível.

Rick Morais (CC 3.0)
Henrique de Borgonha recebe a investidura do Condado Portucalense, em 1096, das mãos de Afonso VI de Leão e Castela – Palácio de Versailles, França

Havia tal noção da força desse pariato, que, quando um dos pares fazia algo que superava os outros, todos se sentiam honrados e eram levados a empurrar para a frente a honra coletiva, dando outra contribuição e mantendo essa semelhança nutritiva.

Isso foi destruído pela Revolução, e hoje não se compreende mais.

Essa relação de pariato — estável, digna, uma flor do convívio humano — é o mútuo respeito entre iguais. É uma coisa que me deleita: ver iguais que se encontram e fazem reverência um para o outro. Em certo sentido, a mera reverência do inferior ao superior não tem a beleza da reverência entre iguais.

Eu ainda peguei algo disso nas maneiras antigas, no trato entre amigos de uma geração que ficava entre a de meus pais e de meus avós. Encontravam-se na rua, por exemplo, cumprimentavam-se com certa solenidade. Exatamente tinha algo daquele mútuo apreço carregado de respeito, em que entrava uma das coisas mais nobres da alma do homem, que é o respeito por si mesmo, e que não é a visão vaidosa, não tem nada de comum com a vanglória. É o respeito de si por ser quem é. Dois iguais se encontram, se deleitam, se respeitam: é o festim da sustentação mútua.

A compagnonnage

Como eu dizia há pouco, não desejando romper isso para ser mais do que o outro — o que é fruto da Revolução —, mas querendo manter-se iguais; e um, elevando-se, procurar elevar o outro consigo.

Quando alguém da categoria se sobressaía, todos se sentiam convidados a se elevar também. Assim se passava na classe nobre do pariato, mas que tinha na classe plebeia uma expressão muito bonita, que era a compagnonnage, que se traduz hoje inadequadamente por companheirismo, camaradagem.

O termo, em português, se deteriorou ao máximo, mas a compagnonnage se verificava entre dois cujo gáudio mútuo era o de serem companheiros, iguais, e de se considerarem, embora sem tanta nobreza, com muita autenticidade, com muita amizade, com verdadeira fraternidade, e se apoiarem.

Reprodução
Tomada de Beirute pelos Cruzados, em 1197 – Palácio de Versailles, França

Eis a grande virtude católica que se exprime no gáudio do pariato, no encontro cheio de respeito de dois que são iguais, na noção de que quando, numa classe de iguais, alguém sobe, tende a levar consigo toda a classe, não a usurpar a chefia dentro da classe porque subiu, e que se exprimia na nobreza pela lealdade feudal.

Antecâmera do Céu

Neste aspecto da vida da Igreja ou da Civilização Cristã vê-se uma fulguração: a santidade, a bondade, a verdade, a ordenação daquilo refulge com uma beleza extraordinária!

Por exemplo, as Cruzadas de um modo geral, sobretudo no que elas têm mais de mítico do que de real, de histórico, quer dizer, como os cruzados imaginaram a Cruzada, como o medieval imaginou o cavaleiro, são ideais que têm um relampaguear próprio, uma beleza peculiar e fulgurante, e que faz a pessoa ver com muita clareza, em primeiro lugar, até que ponto a natureza humana se realiza inteiramente ali e é elevada acima de si mesma. É qualquer coisa que supera o homem.

Isto produz um respeito, uma emoção e uma vontade de se colocar dentro daquele fluxo, daquele nexo, ser daquilo que a pessoa tem certa noção, sobretudo se alguém toma iniciativa de dizer, de fazer ver que resulta da Fé católica, do fato de ser católico e que é um influxo do espírito da Igreja, ou seja, do Espírito Santo naquela instituição.

E a pessoa, vendo aquela instituição, compreende que é por uma carência explicável dela que ela não vê a Igreja inteira assim, mas que se ela se aplicar perceberá lampejos destes em tudo quanto é verdadeiramente da Igreja e da Civilização Cristã.

Mas também fica habilitada a ver isso nas almas com que convive. E, de repente, vê numa alma ou noutra certo lampejo que produz um fenômeno de vinculação, e que às vezes até pode dar-se em relação a uma coisa não católica, mas que é da natureza, que ruma, aponta para a Religião católica.

Esta forma de união que teríamos com um cruzado ideal que conhecêssemos, esse afeto cheio de veneração que temos por Godofredo de Bouillon, por Santa Joana d’Arc, são aperçus2 desta vinculação de almas — então no terreno experimental, psicológico — que se entendêssemos bem validamente o que isso representa, compreenderíamos que é uma antecâmara do Céu e o tesouro da vida.

(Extraído de conferência de 18/7/1984)

1) Ver Revista Dr. Plinio, n. 206, p. 22-25.

2) Do francês: visões de conjunto.

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