Dona Lucilia tinha grande respeito pelas pessoas superiores a ela. E também muita consideração pelos inferiores, respeitando neles a sua própria natureza, e reverenciando, desta maneira, o Verbo de Deus que Se fez carne e habitou entre nós.
Quando contemplamos o Quadrinho1, vemos que Dona Lucilia estava no fim de sua vida. Ela não sabia disso, mas alguns meses depois ela morreria, estando por completar 92 anos de idade. É uma belíssima idade!
Alegria em ajudar um mendigo
No Quadrinho a lucidez dela aparece inteiramente, e encontramos algo naquela atitude, naquele olhar, naquele modo de analisar as coisas, por onde se aparecesse diante dela um mendigo, o mais pobre, o mais carente de educação e de categoria, ela jamais faria a seguinte reflexão: “Como esse sujeito é nada, como eu sou mais do que ele! Não era próprio que ele estivesse na minha presença.”
É evidente que a alma dela voava para esta outra posição: “Coitado, ele é uma criatura humana como eu, é batizado, foi resgatado pelo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e Nossa Senhora o tem como filho. Olhe como ele está precisando de um auxílio! Tenho pena dele e vou ajudá-lo!”
Não seria uma postura igualitária, como quem dissesse: “Esse mendigo é igual a mim, vem cá, dá-me um aperto de mão!” Não. Ele é um mendigo, mas uma criatura humana e um filho de Deus; e enquanto tal, por certo aspecto, é igual a mim. Então, embora ele permaneça na sua posição de mendigo, vou prestar-lhe todo o auxílio que eu puder. Se me for possível dar-lhe dinheiro, emprego, instalação para ele se lavar e se arranjar, roupa, de maneira que ele saia daqui outro, farei isso na hora, e com muita alegria. Embora essa roupa não fosse a de um ministro e sim de um homem do povo, mas digna e distinta, própria de uma pessoa de condição modesta; mas esta eu daria para ele.
Isso seria para Dona Lucilia um regalo. Porém, prazer maior seria se ela pudesse dar o mesmo para toda a família do mendigo. E naquela noite o mendigo e sua família jantariam vestidos, cobertos, à vontade, com o dia seguinte garantido, com trabalho para todos. Seria uma satisfação, e mamãe contaria isso para todo mundo, não para mostrar que ela fez, mas para manifestar a alegria que ela e os beneficiados tiveram, o que eles disseram, etc.
Dir-se-ia que na primeira atitude hipotética — que Dona Lucilia não tomaria — ela demonstraria muito respeito a si porque estaria olhando para o mendigo com superioridade. Mas este seria um respeito superficial porque, substancialmente, ela é uma criatura humana e todo o resto são acidentes. O mendigo é uma criatura humana também e, embora os acidentes sejam desiguais, a natureza é a mesma. Assim sendo, ela não se respeita desprezando sua própria natureza.
A este propósito na Escritura há uma frase que, quando li, me agradou muito: “Não desprezes a tua própria carne…”2
”Aceite esta medalha de Nossa Senhora das Graças!”
Na atitude de mamãe entrava fundamentalmente um respeito à dignidade humana e, eventualmente, à dignidade de católico do mendigo.
Não há dúvida de que, se o indivíduo demonstrasse ser um ímpio, a atitude dela mudava. Se ela julgasse haver alguma perspectiva de converter o homem, ela faria de tudo para convertê-lo. Mas se visse que era um desses como que inconversíveis, ela o atenderia e trataria bem, na medida em que não lhe facilitasse fazer propaganda da impiedade dele. Ao se despedirem, diria a ele: “O senhor quer fazer-me um favor? Aceite também esta medalha de Nossa Senhora das Graças, e use em lembrança desta velha senhora que lhe quer bem!”
Este é o modo cristão pelo qual ela, catolicamente, praticava o respeito ao inferior, respeitando nele a sua própria natureza, e reverenciando, desta maneira, o Verbo de Deus que Se fez carne e habitou entre nós.
Essa forma de respeitar pode-se aplicar ainda mais facilmente à pessoa de uma mesma categoria.
Mútuo respeito que deve haver entre professores
Abro um parêntese para verem o mecanismo curioso, a fundamentação desse respeito.
Tomem, por exemplo, professores universitários de um país onde haja universidades sérias, em que o título de professor universitário suponha necessariamente estudos profundos, difíceis, que representam — em certo sentido muito elástico da palavra — um “martírio” para a alma, embora sejam também um regalo para o espírito. Como fruto desses estudos, formam-se depois gerações inteiras de profissionais. Esses professores universitários devem, portanto, tratar-se com respeito.
Professores primários devem se tratar com respeito também? Sim, mas com matizes diversos. Os professores universitários devem reverenciar-se um ao outro, mais do que os professores primários entre si.
Qual é o fundamento desse respeito? É que o professor exerce certa jurisdição e certo poder sobre os alunos. Mais do que desempenhar um poder de mando, ele exerce a influência intelectual, cultural, que vale mais do que o poder de mandar, por exemplo, fechar uma janela da sala de aula.
Contribuir para modelar a alma de alguém, dando um determinado traço à sua mentalidade, é muito alto e nobre. Principalmente quando se trata de modelar em esferas mais altas do conhecimento, do pensamento, da Ciência, das Letras, das Artes; e, sobretudo, quando orientado para Deus Nosso Senhor, porque sem Deus tudo isso é nocivo ou não vale nada.
Então, porque os professores universitários modelam assim as almas, eles têm uma função intrinsecamente elevada. Nessa elevação entra também um ato de respeito para com o aluno, pois é tomando em muita consideração quanto vale um aluno que se dá valor à tarefa de modelar sua alma.
Por sua vez, um aluno universitário vale intrinsecamente mais do que um aluno primário, porque aquele é como a planta em eclosão, enquanto este é ainda sementinha que se acaba de lançar ao solo. Ora, a planta desenvolvida vale mais do que a semente. Por este aspecto, vale mais ser professor universitário do que primário.
Entretanto, debaixo de certo ponto de vista, o professor primário exerce mais influência sobre seus alunos do que o professor universitário.
Portanto, eles devem se respeitar mais em função da elevada missão que exercem e do valor dos alunos que modelam.
Por essa razão compreende-se o mútuo respeito. Se eles se tratarem com desrespeito, baixam o tom e rebaixam o aluno. Quando se apresentarem para lecionar na sala de aula, alguma coisa filtra dessa baixa consideração em que eles se têm.
Relacionamento com a família imperial…
Voltando ao modo de Dona Lucilia manifestar o respeito, menciono seu trato com aqueles que lhes eram superiores. Por exemplo, seu relacionamento com a família imperial do Brasil.
Mamãe nos contava como a Princesa Isabel conhecera sua mãe e ela, em Paris, e como a nobre senhora convidou-as para um lanche em sua residência, em Boulogne-sur-Seine. Narrava todos os pormenores da visita para se compreender a correspondência que a Princesa manteve com minha avó e com a família, até morrer.
Vem-me à memória também este fato: Eu era menino, e Dom Pedro Henrique3 — uns meses mais moço que eu — veio para o Brasil, pela primeira vez depois do exílio.
Os costumes do tempo eram completamente diferentes dos de hoje. Dom Pedro Henrique ia embarcar de volta para a Europa com a mãe dele, uma irmã e um irmão que morreu, e nós precisávamos ir até a estação ferroviária para nos despedir, antes de partirem de trem para o porto de Santos.
Como minha irmã e eu tínhamos tido muito mais contatos com eles do que as outras crianças da família, devíamos oferecer-lhes uma lembrança qualquer.
Recordo-me da preocupação de mamãe em encontrar uma lembrança original, que não fosse, por exemplo, um objeto que se acha em Paris muito melhor. Então o que encontrar aqui para se oferecer como presente, e que não houvesse algo semelhante na França?
Minha mãe excogitou, então, de dar para cada uma das três crianças caixas de madeira brasileira preciosa e perfumada, ornadas com certos tipos de cipós muito decorativos que, cortados, envernizados ou encerados, ficam muito bonitos. Ela indicou como deveriam ser as caixas e os ornatos, foi ao Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo e encomendou os objetos, explicando que não podiam ser iguais: a caixa para a menina tinha de ser mais delicada; para os meninos, mais forte, etc. Com todo esmero, porque eles eram quem eram.
Depois, mandou comprar numa bonbonnière francesa que havia em São Paulo o que havia de melhor de bombons para colocar dentro das caixas, e ela mesma orientou a criada como embrulhar os presentes em papel de seda e amarrar com fio dourado. Em seguida, explicou à minha irmã e a mim como nos aproximar da janela do trem onde eles estavam, e com que palavras entregar-lhes os presentes. Era o respeito pelos superiores!
Esse respeito ela manifestava com gosto, pois tinha alegria em respeitar. Essa cadeia de respeito ia desde um mendigo até uma princesa imperial.
…e com a antiga cozinheira
Dona Lucilia teve uma cozinheira negra chamada Belmira que, por razões não conhecidas por mim — eu era menino e acompanhava essas coisas sem prestar atenção —, saiu de nossa casa e tomou emprego em outra família. Certa ocasião mamãe vinha a pé da Igreja do Sagrado Coração de Jesus e, na esquina de casa, encontrou-se com a Belmira que ia para outro lugar.
Por interesse pela sua antiga cozinheira, minha mãe parou e conversou um instantinho com a Belmira. Lembro-me de uma pessoa da família fazer esta censura:
— Mas como?! Parar na rua para falar com uma empregada, não tem propósito!
Mamãe respondeu:
— Não vejo problema algum. Eu faço mesmo, e é assim que deve ser.
Era a mesma pessoa altamente respeitadora da família imperial!
Senso de justiça e amor ao próximo
Esse respeito supõe, antes de tudo, uma atenção séria posta nas pessoas para ver o que é cada uma, qual sua posição, o que vale e por que vale, dando-lhe o mérito adequado e aquilo que lhe é próprio. Por caridade, por bondade, conceder às vezes um pouquinho mais do que pareceria estritamente justo, mas sem perturbar a boa disposição hierárquica.
De outro lado, supõe também muita objetividade para não querer colocar-se numa posição que não tem, nem imaginar ser o que não é. Isso requer um senso de justiça e um amor ao próximo, tão característicos da Religião Católica. Nela, esse amor ao próximo se exprimia pelo gosto, pelo prazer com que ela tributava esse respeito, vendo o que Deus concedeu a cada um e alegre de que tenha sido dado.
Eu definiria isso como uma mentalidade anti-igualitária de ponta a ponta. Uma civilização onde todos tivessem essa mentalidade seria uma civilização de muita harmonia, de muito acordo, de muito respeito e de muito afeto.
(Extraído de conferência de 12/4/1988)
1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Ver Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.
2) Is 58, 7.
3) Pedro Henrique de Orléans e Bragança (* 1909 – † 1981), neto da Princesa Isabel.