Ambientes que favorecem o desenvolvimento das características individuais radicadas na índole de cada povo, onde as pessoas não constituem multidões de anônimos, mas aprimoram sua personalidade vivendo tranquilas nos braços da Fé que triunfou sobre o paganismo: eis a Europa feérica amada por Dr. Plinio.
Nos templos romanos e, aliás, nos gregos também, distinguimos duas partes: uma espécie de cilindro, às vezes um quadrilátero, sem janelas, com as portas constantemente abertas — em cima havia janelinhas muitas vezes — de maneira que a ventilação se fazia continuamente; e em torno, talvez para abrigar as pessoas que iam oferecer seus sacrifícios idolátricos, um telhado que ia além do templo e que era sustentado por colunas em forma de círculo, formando, portanto, dois corpos de edifício, um interno e outro externo.
Na Roma pagã havia um templo em louvor da pureza
Há qualquer coisa de imponderável no edifício, que dá a ideia de que os telhados, que provavelmente não datam do tempo dos romanos, já estão tão velhos que as telhas quase se encolheram e estão trêmulas de velhice, se bem que as pedras não enruguem nem sequem. Pode-se dizer que as pedras dessa coluna estariam para o que eram quando foram construídas, como uma uva-passa está para uma uva fresca. Elas estão todas ressequidas de tanto tempo que passou em cima delas, vento que bateu, chuvas, toda espécie de coisas, e elas ficaram ressequidas. Nem se nota muito o retilíneo delas, porque o eixo é reto, mas a circunferência está tão trabalhada que nem se tem a ideia dos como que cilindros majestosos que houve aqui antigamente. Tudo isso dá ideia de um povoado que não é só velho, mas mumificado, que não dá mais nada, um passado reduzido a esqueleto; isso é muito mais o esqueleto de um prédio do que um prédio propriamente dito.
Ora, é bonito notar que essa foto mostra o único templo erguido na antiga Roma em louvor da pureza. Segundo a mitologia, Vesta era uma deusa virgem, que só poderia ser cultuada por virgens as quais deveriam manter o tempo inteiro um fogo aceso diante dela, como homenagem. As vestais — era o nome delas — eram mulheres que deveriam ser elas mesmas virgens. Se alguma delas fosse apanhada em pecado contra a castidade, era enterrada viva. E também era enterrada viva a vestal que, designada para guardar o fogo durante a noite, deixasse que este se apagasse. Era uma responsabilidade grande ficar a noite toda, no silêncio de Roma daquele tempo, vigiando para que o fogo não se extinguisse. Eram estas as únicas obrigações exigidas delas: serem virgens e não permitir que a chama se apagasse.
Ali se instalou depois uma igreja católica, e é uma paróquia na qual as beatas vão rezar o terço, fazer Via Sacra, onde havia, até há pouco, bênção do Santíssimo Sacramento, muito tempo depois do culto a essa deusa ter ali cessado. Então, no local de culto usado por seus perseguidores, a Igreja Católica harmoniosamente instalou um templo da Religião verdadeira, em nome da qual o sangue dos mártires foi derramado.
Altaneira, sempre com vitalidade, a torre medieval que se eleva aqui mostra a vitória, na Idade Média, sobre o mundo pagão romano: a vitória da Igreja sobre a gentilidade e todos os seus adversários.
Ninguém é inteiramente anônimo para o outro
Ao lado desses dois monumentos tão expressivos e tão notáveis pelo seu contraste, está o povinho tranquilo que vive nos braços da História e nos braços da Fé, com a naturalidade de quem vive a existência de todos os dias. Perto disso, o magnífico Rio Tibre, o qual nesse contexto parece representar o curso da História que vai passando, lembra ao povinho como as coisas mudam ao longo do tempo. Mas “stat Crux dum volvitur orbis — a Cruz está de pé, enquanto o mundo inteiro se vira e revira”; onde a Igreja deitou a sua mão sagrada, ali ela continua.
A senhora dessa outra pintura é uma espécie de governanta, e não a dona da casa. As donas de casa não usavam esse avental. É uma criada muito graduada que foi fazer compras com o menino da casa. O menino, vestido à século XIX: chapéu de marinheiro, com uma borlazinha, um pompom em cima, e uma golazinha.
Nota-se nessa cena que algumas das pessoas se conhecem, outras até estão conversando. Mas não há nenhum indício de que todas se conheçam. Então, em que sentido se pode dizer que não são desconhecidas, como por exemplo, a multidão que passa pelo Viaduto do Chá1, onde as pessoas ignoram umas as outras?
Embora os personagens estampados nessas figuras sejam desconhecidos, a cidade é tal que cada pessoa que passa sabe mais ou menos que categoria tem a outra, qual sua profissão, quais seus hábitos, qual seu estilo de vida. Por exemplo, essa mulher, por sua atitude, dá a entender que se considera muito superior àqueles outros e leva uma vida mais ordenada e mais limpa do que eles. E estes, indiretamente, respondem para ela que, sem negar que ela seja mais, eles têm um vidão livre, solto e à vontade que acham bem gostoso. Porque estão todos bem satisfeitos.
Esses homens podem não saber o nome da senhora, mas sabem como ela é, como ela vive. É uma cidade pequena, com categorias e estilos de vida definidos, onde ninguém é inteiramente anônimo para outro. É diferente da avalanche de anônimos do Viaduto do Chá.
Nessa cena do gueto, há algo de italiano na desordem com uma forma de pitoresco que o italiano sabe pôr e que outros não sabem. É um predicado italiano. Essa mulher cozinhando tem um pitoresco italiano no espalhafato. Normalmente, uma pessoa que faz isso, esconde para ninguém ver. Ela coloca à vista de todo mundo. De outro lado, ela está aqui, eu quase diria como um professor numa cátedra, um juiz num tribunal ou, amesquinhando muito, uma rainha num trono. Há qualquer coisa de pitoresco teatral italiano dentro disso. Está presente aí um verniz italiano. Nota-se alma dentro disso a mais não poder; vivacidade!
O latino e o germânico
Sem dúvida, há uma grande diferença entre esta desordem e a ordem do povo alemão, por uma razão muito simples: isso toca na índole do povo.
O italiano é exuberante, sente, pensa e tem vontade de dizer tanta coisa, que não encontra tempo para arrumar muito as coisas.
Mais ainda, isso tem muita relação com o modo de ser do brasileiro, não pela grande imigração italiana em São Paulo, porque o Brasil todo é assim, até no Nordeste, zona muito pouco italianizada; e o nordestino é mais ainda do que o brasileiro do Sul, nesse sentido.
Nós, latinos, pensamos muitas vezes falando, e, se não temos ocasião de falar, não chegamos a completar o nosso pensamento. A extroversão é um modo de ser nosso para concluir o nosso pensamento. Nossos caros espanhóis falam muito e também completam muito o pensamento quando falam.
O alemão é o contrário: para completar o pensamento, ele precisa recolher-se. E daí resulta que o latino tanto fala que não tem muito tempo para se arranjar. E o alemão tanto se recolhe que pensa enquanto arranja as coisas.
Então, ele está pondo em ordem um papel, arranjando uma cortina, regando o gerânio, etc., e enquanto faz isso está filosofando, em todos os graus possíveis da Filosofia: desde a mais alta até a mais popular.
O latino está sempre elucubrando uma coisa para o conhecimento do mundo. O alemão está elucubrando para si, depois para seus próximos, posteriormente para um clã que ele forma e com o qual ele vai pressionar outros, e depois com a nação com a qual ele pressiona o mundo. Mas a propagação da influência, para os latinos, se faz à maneira do azeite; e para os alemães, à maneira do gládio. São formas diferentes.
Eu sou um grande admirador da Alemanha. Sou um grande admirador da Europa, mais do que de cada país europeu, mesmo da França. A Europa vale muito mais do que a França, porque o bonito da Europa é o conglomerado desses povos esplêndidos e diferentes que formam um todo mais bonito do que cada elemento.
É bonito, na Europa, ver o alemão levando aquela vida nas aldeiazinhas de marzipã, esplendidamente arranjadas, e o italiano cantando a plenos pulmões na baía de Nápoles, ou à beira do Arno, ou guiando uma gôndola em Veneza. A Espanha com suas castanholas e suas touradas, e daí para fora… O fado português, a Torre de Belém, a Abadia de Westminster… É a Europa feérica. É dela que nós gostamos.
(Extraído de conferência de 29/1/1977)
1) Situado na região central da cidade de São Paulo.
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