sábado, octubre 5, 2024

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Chamado a prestar grandes serviços à Igreja

Quando jovem, Dr. Plinio se perguntava se teria a vocação de ser vítima expiatória. Depois de muitos sofrimentos físicos e morais, recebeu a graça de compreender que não era chamado a seguir o caminho de Santa Teresinha, mas o de Godofredo de Bouillon, visando a derrota da Revolução e a vitória da Santa Igreja.

Há duas espécies de posições de Deus em relação aos homens criados por Ele. Alguns homens entram naquilo que chamamos providência geral, e outros no que se denomina providência especial.

Previdência e providência

A providência de Deus é aquela suprema perfeição, a sabedoria com a qual Ele conduz as coisas, sabendo o que vai acontecer.

Então, nós podemos fazer uma distinção entre previdência e providência. Na linguagem comum se pode dizer que um homem prevê alguma coisa como, por exemplo, um comerciante ao ver antecipadamente o inverno chegar, conjetura que se vai acentuar muito mais o frio e pressupõe, em consequência disso, a multiplicação do número de resfriados. Então, calcula que a demanda de remédios antigripais vai aumentar muito também. Sendo um bom negociante, compra, de antemão, uma porção de medicamentos por atacado, vendidos mais caros depois, a varejo.

Ele é previdente quando prognostica o agravamento do frio no inverno, e é providente quando investe na compra do necessário para realizar o plano dele. Eis a distinção entre previdência e providência.

Com respeito a Deus, não há propriamente previdência, porque Ele não prevê as coisas. Para Deus, o presente, o passado e o futuro são um mesmo ato. Ele vê tudo ao mesmo tempo.

Porém, é providente. Pois, em vista de como as coisas são, Ele as conduz, dispõe e arranja de acordo com seu plano a respeito de cada criatura.

Providência geral e providência especial

A grande maioria dos homens Deus conduz de acordo com a providência geral. Quer dizer, dá ao mundo uma organização, faz com que as coisas sejam de um determinado modo a satisfazer as necessidades comuns das pessoas. Para o indivíduo comum, Ele proporciona uma vida normal, concedendo-lhe recursos ordinários e intelecto suficiente para utilizá-los a fim de prover as suas necessidades.

Contudo, para outras pessoas o Altíssimo tem uma vocação especial, conduzindo-as de um modo peculiar. Visto ser um chamamento especial, Ele também lhes dá um cuidado próprio, que não é o ordinário.

A pessoa colocada sob uma providência especial tem habitualmente uma noção, pelo menos confusa, dos desígnios de Deus a respeito dela. É o começo de uma vocação, um chamado indefinido para algo que a pessoa, no início, ainda não discerne o que é. Na própria Escritura há o caso do Profeta Samuel, a quem Deus chama três vezes. Mas ele pensava que era Eli, o pontífice do Templo… E numa quarta ocasião, ao ouvir “Samuel, Samuel”, o profeta retrucou: “Fala, Senhor, que o teu servo escuta”(1Sm 3, 3-10). Assim também esses impulsos primeiros nos chamam, sem sabermos bem de quem vêm…

Um chamado para algo sublime

Praticamente, o problema que eu tinha na minha juventude era vocacional, e se exprimia da seguinte maneira:

Desde pequeno eu sentia um chamamento para algo maior… Sentia-o muito acentuadamente sem saber defini-lo. Era-me claro que devia ter uma vida muito diferente da dos outros. Percebia bem que eu transbordava do meu copo e que coisas enormes estavam no meu caminho. Coisas luminosas, magníficas, importando em sacrifícios para os quais me devia preparar, mas também vitórias que me encheriam de alegria.

Juntamente com isso, uma espécie de horror de não se confirmarem esses pressentimentos comigo, e parecer-me que cabia inteiro dentro do tipo do padrão de vida de qualquer homem de minhas condições, no meu tempo. Eu sentia uma espécie de asfixia com esse pensamento.

Arquivo Revista

Assim, a minha luta contra a Revolução, o choque com ela, a ideia da Contra-Revolução foram correspondendo a esses movimentos de alma. Embora a luta contra a Revolução me fizesse sofrer muito, por outro lado trazia-me muita alegria a dimensão de alma e de vida na perspectiva de todos esses acontecimentos grandiosos.

Encontrei a minha via

Foi um destampamento, uma coisa magnífica, o dia abençoado em que passei pela Praça do Patriarca1 e encontrei o aviso da realização do Congresso da Mocidade Católica. Foi um brado! E, deste modo, uma porção de coisas que eu julgava inviáveis, de repente se me apresentavam aos borbotões.

Imaginem um rapaz que chega mais ou menos aos seus 19 ou 20 anos, porém já muito maduro e sofrido para a idade, buscando um objetivo que não se realiza. E, por aí, tem a impressão de que todo o futuro desejado está comprimido e agarrado pelas mãos. Não vai! De súbito, passa por um lugar, vê algo e aquela janela se abre! Podem calcular bem a alegria de alma que isso dá.

Dali em diante, sucessivas alegrias com o Movimento Mariano, fundação da Liga Eleitoral Católica… Depois, a minha eleição para deputado… tudo indo num voo contínuo, e eu dizendo-me, com delícias para a minha alma: “A via está encontrada. Daqui para a frente é batalhar duro, não há dúvida, mas a via é esta!”

Seria um pouco como um cruzado que vai à Cruzada na alegria de sua alma, mas não encontra o caminho. Erra por uma porção de lugares, sem chegar a entender qual seja o sulco a seguir para encaminhar-se a Jerusalém. Em determinado momento, ele avista uma estrada, e exclama: “É por lá que eu chego até o mar, onde estão as naus que me vão levar para a Terra Santa!” É uma alegria, e lá vai ele! Isso se deu comigo. E pensei: “Daqui para a frente é caminhar rumo à minha Jerusalém! É a minha batalha contra a Revolução. Agora é só viver, é só lutar!”

Provação: serei apenas um advogado?

Ora, os acontecimentos, a partir de um determinado momento, depois desse movimento ascensional, quando eu tinha, então, 25 ou 26 anos, tudo quanto parecia constituir uma estrada dava em nada, ou no contrário, tornando-me impossível o que eu queria, fazendo-me voltar ao ponto de partida.

Daí o tormento: “Então é só isso?! Tudo foi ilusão? A minha vida vai ser a de um advogado que vai ao Fórum, toma nota para preparar umas argumentações para o cliente, porque este brigou com outro, e eu preciso fazer a defesa de seus direitos em questões sem importância?!”

Lembro-me da falta de graça do meu primeiro cliente de advocacia. Era um litígio entre dois franceses. Meu cliente tinha inventado uma fórmula de sorvete chamada “Flan”, ou, quando punha um ovo a mais no sorvete, recebia o título de “Superflan”. Vendia seus sorvetes junto a parques de diversões, circos, etc. Parecia ganhar algum dinheiro com isso. Um concorrente pegou-lhe a fórmula e começou a fabricar um idêntico. Meu cliente queria fazer um processo contra o outro, e este negava ter feito qualquer imitação. Nessa caceteação, eu advogar para provar que o sorvete “Flan” não era de um, mas de outro… Mas, meu Deus do Céu! E assim, quantos negócios de advocacia sem graça nenhuma…

E me perguntava: “Será que vou chegar ao fim de minha vida — até os 80, 90 anos — advogando causas sobre ‘Flan’ ou ‘Superflan’?”

Causas de terras… Meu pai e meu avô advogaram muito com demandas de terras. Chega ou não chega até tal ponto a propriedade de Fulano? Então vai lá medir; depois provar que chega mesmo, ou não chega…

Deixe que se arranjem com suas terras… Eu não nasci para tratar delas! Toda a minha alma se volta para outra coisa. Ainda que eu faça dinheiro nisso — e é duvidoso — não nasci para ganhar dinheiro. Eu nasci para outra coisa!

As dificuldades são um sinal de que a vocação é bem-amada de Deus

Comecei a perceber esse esboroamento do meio para o fim de meu mandato como deputado. Consistiu no desmoronar do patrimônio de minha família, o empobrecer e a necessidade de trabalhar para viver, quando eu queria dedicar todo meu tempo e esforços em fazer apostolado.

Ademais, até aquela ocasião tinha tido uma saúde de ferro que, graças a Deus, com pequenos inconvenientes, gripes e resfriados, de um modo ou de outro, continua. Mas apareceram alguns inconvenientes, que depois a Providência fez cessar.

Por exemplo, nevralgias que me atacaram naquele tempo. Às duas ou três horas da manhã, acordava e ficava sentado, com uma dor forte na cabeça, como se houvesse um prego cravado, e o tempo passando… Ouvia os relógios do hotel e da igreja darem horas, e eu, sentado, meditando nesses infortúnios e aguentando o “prego”. Então, ao sentir-me exausto, dormia com o peso da opressão que me preocupava.

Depois, comecei a perceber a crise religiosa e política minando o caminho que eu tinha diante de mim. Aí o terror e a asfixia da ilusão: “Aquilo não foi senão um engano, um sonho, um bluff! Resigne-se à vontade de Deus, que quer que você sofra esse bluff. Depois, aguente a sua vida como der, porque Deus quer assim. Ele tem ou não tem o direito de querer? Quem traça seu futuro é Deus, ou você? E se as coisas acontecem de outro modo e você não tem culpa, tem ou não obrigação de aceitar, de se curvar e de ficar satisfeito?”

Eu era escravo de Maria, logo precisava aceitar com resignação o meu futuro como ele se abria diante dos meus passos. Tinha que comprimir, dentro de minha alma, esses voos, esses desejos, essas elevações como coisas inaceitáveis, que não exprimiam a vontade de Deus. E se fosse vontade do Altíssimo, precisava voltar para dentro de meu copo, ou ir até para um copo menor do que aquele no qual tinha nascido.

É difícil calcular o abafamento de alma, o desnorteamento causado em mim por essa situação.

Na realidade, Deus dá uma vocação muito grande e depois aparecem as dificuldades. O fato de surgirem essas dificuldades não quer dizer que não se tenha vocação. Pelo contrário, é uma vocação bem-amada de Deus, ao longo da qual Ele provê coisas que não se queria, situações com as quais não se contava, fazendo parecer que Deus nos abandonou… Mas há também um movimento interno de alma que nos diz: “Não, a Providência não nos abandonou. Vamos para a frente!”

Holocausto de Santa Teresinha

Arquivo Revista

Por cima deste, punha-se outro problema. Eu tinha lido o livro História de uma alma, de Santa Teresinha do Menino Jesus, o qual me impressionara profundamente com sua narração, e parte da ideia de que não se pode fazer para a Igreja Católica uma coisa mais útil do que ser uma vítima expiatória do amor misericordioso de Deus.

Assim se explica: Os homens pecam e é preciso que outros os ajudem a expiar, a pagar por seus pecados; de maneira tal que com nosso sofrimento Deus perdoe a outros e conquiste outras almas, dando-lhes graças muito grandes, porque nós sofremos.

Poderá ser, por exemplo, uma pessoa da longínqua Birmânia, da Tailândia, ou um esquimó, ou um alto político, um importante intelectual, ou um elevado personagem eclesiástico, que precisa realizar uma grande ação pela causa de Deus, mas não é bastante forte. Então, fica-se doente e morre-se, desaparecendo da memória dos homens. Só Deus Se lembrará de nós no Céu. Só Deus? Ora, Deus é tudo!

Santa Teresinha queria morrer assim: vítima expiatória pelas almas dos outros. Foi atendida. Muito jovem, contraiu tuberculose. Durante uma noite, sentiu que estava expectorando sangue, coisa característica dessa doença, e ficou tão alegre com a ideia de morrer que, por espírito de sacrifício, não quis acender a luz para ver se era sangue mesmo. Dormiu em paz. De manhã, sua primeira atitude foi ver se era sangue. Se fosse, significaria ter sido aceito o holocausto, e que ela não demoraria a ir para o Céu.

A partir de então começou o holocausto no duro: provações, aridezes, incompreensão de uma superiora, desdém das irmãs de hábito, etc. Até o último momento da vida, tudo foi tormento. Deus parecia tê-la abandonado. No derradeiro instante de vida — uma pessoa tuberculosa fica extremamente fraca, sem forças para nada —, levantou-se e, num êxtase de alegria, disse: “Ó meu Deus!” E caiu morta. Um aroma de violeta começou a encher todo o convento. Era o símbolo da humildade dela.

Devo ser uma vítima expiatória?

Eu me punha este problema: Quem sabe se Deus quer que eu seja uma vítima expiatória, ignorada por todos? Noto ter possibilidades, recursos, talvez possua até talentos para ser um homem incomum e prestar grandes serviços à Igreja, mas poderia estar condenado a ser um homem comum, percebendo a trajetória de um outro que vai seguindo um caminho luminoso. Caminho seguido pelo outro, porque sou a vítima que está carregando a cruz dele. Não serei mais útil à Igreja e à Contra-Revolução afundando assim nos padecimentos e no anonimato, do que empreendendo a galopada heroica da Cruzada que quereria realizar? Então, o que devo esperar de Deus para a minha vida?

Como toda a minha tendência ia para não ser a vítima expiatória, mas sim o homem que caminhava para o campo de batalha a fim de lutar, eu julgava realizar um sacrifício especialmente grande, aceitando ser o contrário do que eu queria. Eu serviria melhor à Igreja na minha aniquilação do que na minha realização pessoal. Então, devia aceitar e voltar para o meu próprio copo… e inclinar-me à dura realidade dos fatos. O que Deus queria de mim?

Uma peça teatral de Claudel

Certa ocasião, assisti a uma peça de teatro de Paul Claudel2, intitulada L’Annonce fait à Marie — Anunciação feita a Maria, considerada uma peça católica. Começava com uma cena no interior de uma casa de uma pequena família de trabalhadores manuais da Idade Média. Estava o pai, homem que já ia caminhando para a velhice, a mãe, quase da idade do marido, e duas filhas. Não me lembro muito bem dos pormenores, pois há muitos anos que assisti a essa peça.

Uma das filhas chamava-se Violaine, e era a protagonista.

Nessa cena, a mãe, enquanto servia a refeição matutina à família, perguntava ao marido, que estava visivelmente preocupado:

— Com o que você está apreensivo assim? As nossas terras estão produzindo bem, todos estamos fortes, com saúde e contentes. Olhe quantas coisas há na mesa para você comer! No que você está pensando, homem?! Fique alegre!

A certa altura, depois de a mulher o ter interpelado muito, o homem se levanta e diz:

— Mulher, você será tão cega que não percebe o tormento pelo qual está passando a Santa Igreja de Deus?!

A mulher dá uma resposta deste gênero:

— Não percebo. O que temos a ver com isso?

— Você não vê que há no momento quatro homens disputando o papado, e cada um pretende ser o legítimo Papa, e que a Igreja parece um grande tronco glorioso partido de alto a baixo?

Ela dá uma gargalhada, e pergunta:

— É você que vai consertar isso?

Ele responde:

— Para mim nada tem conserto, nada tem alegria enquanto não vir a Cristandade recomposta. Mulher, eu vou dizer-lhe uma coisa que você não vai crer: velho como estou, meus braços ainda têm força, como você bem vê na hora da lavoura. Estes braços não vão mais plantar, nem colher, mas pegarão uma espada! Eu vou levar a minha velhice até o campo de batalha. Se eu morrer, tanto melhor: terei oferecido a minha vida para que dos quatro “papas” resulte um só; para que o Sacro Império floresça; para que as Ordens religiosas se expandam… Eu sofrerei e morrerei, mas vencerei a favor da Santa Madre Igreja!

Violaine se oferece como vítima expiatória

Violaine ouve esta proclamação e, como já acalentava anseios semelhantes, sente-se profundamente interpretada nas palavras do pai. Então, ela também quer oferecer-se a Deus, ser uma vítima expiatória para a vitória da Igreja e da França, invadida pelos ingleses, os quais seriam futuramente protestantes. Embora a jovem não soubesse disso, compreendia ser preciso expulsar de seu país os inimigos. Por tudo isso, ela precisava oferecer-se em holocausto.

Nisto, ouve-se tocar a sineta da porta e Violaine vai atender. Era um rapaz conhecido da família que lhe diz:

— Não toques em mim!

— Mas por quê?

— Porque sou da raça infeliz dos homens em quem ninguém toca, porque têm horror. Trago comigo uma doença que se te disser qual é o nome, fugirás de mim com asco. Baterás com a porta no meu rosto, porque todo o mundo foge de mim. Sobre mim pesa uma maldição. Sou um pobre leproso…

Ela tem pena e, em vez de lhe bater a porta, conversa, procurando consolá-lo, dominando seu horror por ele.

Em certo momento, o leproso diz:

— Eu tenho que ir embora. Vou para a solidão das estradas, moço ainda… Abandonado, obrigado em consciência a dizer que sou um leproso… E no momento em que faço ao meu próximo este ato de amor, dizendo ser um leproso, ele me retribui fugindo de mim. Tem pena e dize-me uma palavra de amizade que eu possa levar pelas estradas afora, e na qual verei ter havido uma criatura no mundo a quem não causei horror…

Ela se compadece e, vencendo a repugnância, despede-se dele com um ósculo fraterno no rosto.

Dias depois, ela percebe as manchas da lepra…

Um toque de clarim anuncia o cortejo de Santa Joana d’Arc

Violaine compreendeu o futuro que a esperava. Haveria de seguir o destino terrível de uma leprosa.

Em outra cena, aparece um leprosário. É noite fria… Noite de Natal! Umas barraquinhas pequenas onde moram os leprosos. Uma luz violácea no céu… Eles todos com frio, aconchegando-se a fogueirinhas e conversando entre si. De vez em quando se ouviam risos de desespero. Era gente desesperada, esfrangalhada, sofrendo… Uma coisa pavorosa!

Alonso de Mendonza (CC 3.0)
Santa Joana D’Arc na coroação do Rei da França – Museu do Louvre, Paris, França

Ela ali, no meio com um pano cobrindo parte do rosto, afundada naquele mar de horror.

Ouve-se mais nitidamente uma conversa de um grupo de leprosos os quais diziam que o Rei da França estava ganhando muitas batalhas, pois aparecera uma virgem vinda de Domrémy, na Lorena, guerreira invencível, que estava expulsando os ingleses da França, porque era esta a vontade de Deus.

Violaine ia se entusiasmando com isso.

E a grande nova era a sagração do Rei. O cortejo da virgem da Lorena iria passar ali por perto, com todos os cavaleiros e exército, para assistir à coroação do Rei em Reims.

Em certo momento, ouve-se ao longe um toque de clarim: era Santa Joana d’Arc que ia passando…

Por uma iluminação divina, Violaine compreende que Santa Joana d’Arc estava vencendo os ingleses e tendo a glória de ir assistir à coroação do Rei, porque ela estava comprando esse triunfo com sua lepra.3

Este aspecto é muito bonito, até empolgante! É uma forma de heroísmo de estrangular, de tirar o ar! Mas Nosso Senhor Jesus Cristo não sofreu muito mais por nós? E Ele não nos convida para isso?

Surpresas difíceis na linha da vocação

Vinham-me, então, as perguntas:

“Essa doença que provoca as nevralgias não será, de repente, um câncer ou outra coisa qualquer que lhe leva cedo a vida, para outro ganhar a batalha que você ansiava tanto vencer? Agora, eu quero ver como é seu amor a Deus. Você estava muito contente de ser alguém. Você terá a mesma coragem de ser ninguém? Você aceita isso? Até que ponto você é um homem sério? Se for sério, você aceitará isso. Se não aceitar, quer apenas representar um papel. Então, não vale nada. Você não ama a Deus e merece ser esquecido por Ele sobre a face da Terra.”

Às vezes aparecem na vocação surpresas difíceis de aguentar: A Providência nos conduz por um caminho, mas nos dá a impressão de termos errado a estrada, e de que as vias de Deus talvez sejam outras. Entretanto, é este o sinal de que Ele nos quer levar por lá.

Por outro lado, a ideia de me oferecer assim me incomodava. Eu fiz o oferecimento, mas parecia-me que alguma coisa não estava bem…

Encontrava-me nesta situação quando, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus situada perto do hotel onde eu morava, no Rio de Janeiro, vejo realizar-se uma feira de livros. O vigário, que era muito atencioso comigo e dava-me a Comunhão na hora em que eu chegasse, aproximou-se de mim, e me disse:

— Dr. Plinio, estamos fazendo uma feira de livros. Se o senhor a quiser visitar, será bem-vindo. O lucro da feira se destina…

Era para uma boa obra qualquer. Equivalia a dizer: “O senhor dê-nos um dinheirinho a ganhar.”

Pensei: “Bem, não há remédio; eu vou entrar e comprar alguma coisa.” Encontrei alguns livros que me interessaram e comprei-os. Chamou-me atenção especial um cujo título era O Livro da Confiança.

O efeito causado pelo Livro da Confiança na alma de Dr. Plinio…

Arquivo Revista

Não podem imaginar o efeito que me causou no espírito, quando o abri — não lembro se logo no momento ou se chegando ao hotel — e li as suas primeiras palavras: um efeito apaziguante magnífico em minha alma.

“Voz de Cristo, voz misteriosa da graça, que ressoais no silêncio dos corações, vós murmurais no fundo das nossas consciências palavras de doçura e de paz.”

Depois continua expondo, mais ou menos nestes termos, a seguinte doutrina: Deus pode fazer uma pessoa caminhar pelas vias mais duras e imprevistas, mas se atendermos à voz de Cristo em nós — voz misteriosa da graça — ela murmurará em nossas almas palavras de doçura e de paz.

Aquilo que nos arrebenta e nos trinca, afinal, na grande maioria dos casos, não é o caminho que devemos seguir. Haverá um movimento interno em nossas almas o qual nos dará confiança de que será de outra maneira, e nos conduzirá para onde os nossos primeiros anelos nos levavam.

Esse livro produziu em mim um efeito maravilhoso porque, em última análise, dava exatamente essa ideia de que, estando colocado sob uma providência especial e pedindo a Deus Nosso Senhor, invocando a intercessão d’Aquela que tudo pode junto a Ele, Nossa Senhora, eu seria atendido. E, afinal, por aqueles vaivéns, de um jeito ou de outro, aquilo que desejo se realizará.

…foi como uma ponte abençoada que o ajudou a transpor muitos abismos

Não sou chamado para o caminho de Santa Teresinha. Sinto-me mais bem chamado para a via de Godofredo de Bouillon. Vamos para a frente, por cima de paus e de pedras, por montes, vales e colinas… Vá a estrada por onde for e dê nos descaminhos aparentes que houver, preciso confiar, confiar, confiar… “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça que ressoais no silêncio de nossos corações, vós murmurais palavras de doçura e de paz.” Doçura e paz traz-me isto. Eu vou rezar, pedir, rezar, pedir…

Daí vinha-me uma pergunta: “Mas você não estará enganado? Será que se você ficar quieto e for heroico, não pedindo nada a Nossa Senhora, realizará mais do que pedindo? Pedindo, Ela dá. Mas às vezes Ela concede o que não quereria dar. Não peça nada e deixe tudo acontecer.”

Eu não soube resolver o problema, e pensei, então, da seguinte maneira: “Pedirei, mas com a condição de que se faça a vontade d’Ela e não a minha. Se a vontade que há em mim é também a d’Ela, faça-se! Eu peço, peço, peço!”

Encontrei um equilíbrio no meio de um torvelinho medonho.

O Livro da Confiança foi a ponte admirável e abençoada que me ajudou a passar por não sei quantos abismos, até encontrar alguma coisa que significava realmente estar eu no caminho certo e andando para a frente.

Com o favor de Nossa Senhora, um dos indícios disso é este querido auditório tão cheio de gente que não tinha sequer nascido naquele tempo. Eu procurava em torno de mim os que viriam, mas os caminhos estavam desertos… Eu não sabia que das mais variadas partes do Brasil e do mundo estavam nascendo, ou começariam a nascer dali a uns anos, aqueles cujas vias se encontrariam com as minhas, pelas nações afora, para fazer a Contra-Revolução.

(Extraído de conferência de 13/5/1989)

1) Situada no Centro velho de São Paulo.

2) Diplomata, dramaturgo e poeta francês (* 6/8/1868 – † 23/2/1955).

3) Nota do Editor: O enredo aqui descrito difere, em alguns pormenores, do composto por Paul Claudel, o que talvez se deva a uma adaptação da peça ao público católico que a assistia, ou a uma interpretação — em nosso parecer, sublimada — de Dr. Plinio.

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