O conjunto das qualidades de alma de Dona Lucilia, as quais não eram antitéticas, mas quase paradoxais, ela hauriu na devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Na capela de Versailles, como em muitas igrejas, há um espaço entre o altar e a parede. O rei mandou fazer ali um nicho com uma imagem do Sagrado Coração de Jesus, e os nobres que tinham devoção iam lá rezar.
Ornato despretensioso, mas ardoroso
Marcou tanto a família real esta devoção, que Luís XVI fez uma consagração da França ao Sagrado Coração de Jesus, quando ele estava preso no Templo, prometendo reiterá-la, caso fosse posto em liberdade.
A fórmula dessa consagração conserva-se até hoje.
No século XIX, houve Santos e outros fiéis não canonizados — Sóror Josefa Menendez está neste caso — que praticaram insignemente a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Neste contexto com todas essas glórias, Dona Lucilia entra como um ornato despretensioso, mas ardoroso.
Ela assistia às Missas dominicais na Igreja do Coração de Jesus, onde rezava muito concentrada, mas sem carranca, como certas flores que se fecham — não se amarram — à noite, e depois se abrem. Assim fazia ela.
Terminada a Missa, ela se dirigia à imagem do Sagrado Coração de Jesus, e ali fazia longa oração, com os olhos fitos na imagem, e numa espécie de diálogo. Não que mamãe tivesse a ilusão de que Ele estava falando com ela. Mas ela dizia coisas a Nosso Senhor, e intuía o que Ele responderia. E assim, diálogo imaginário, mas suponho que fosse um diálogo dela com a graça que Ele dava. Sem nada de místico, ao menos nunca notei, nem fui levado a suspeitar que houvesse.
Eu notava muito como mamãe hauria nessa devoção as disposições de alma que a caracterizavam, e quão largamente essa devoção foi ocasião para ela adquirir ou aperfeiçoar as virtudes que tanto amei nela, e cujo conjunto eu notava como uma espécie de graça, no ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus.
Elevação de alma, porém amando a realidade concreta
Era a conjunção de qualidades, evidentemente não antitéticas — porque não há antítese entre uma qualidade e outra —, mas seriam quase paradoxais.
Primeiramente, uma grande elevação de alma, de maneira que o espírito dela não somente se reportava com muita facilidade a regiões mais altas, mas morava nessas regiões.
Contudo, ela era o oposto de uma sonhadora, de uma mera teórica, de uma pessoa que vive enleada em preocupações sem base na realidade. Pelo contrário, Dona Lucilia estava inteira e singelamente dentro da modesta realidade dela, cuidando de tudo, arranjando tudo, amando essa realidade concreta e participando da vida intensamente, embora seu espírito pairasse nessa esfera mais alta.
Por exemplo, ela era uma excelente dona de casa, e prestava atenção nos últimos pormenores: se uma flor estava murcha num vaso e a empregada tinha se esquecido de jogar fora; se embaixo de uma estante não havia uma poeira acumulada; enfim, de todos os detalhes nos quais uma dona de casa cuidadosa, esmerada presta atenção, ela cuidava de modo perfeito.
Solicitude e bondade
Ao mesmo tempo, ela trazia consigo uma atmosfera de recolhimento, dando a entender que seu espírito habitava dois planos completamente distintos, porém correlatos.
Nos mais antigos agrados que mamãe me fazia, eu notava muito isso e me deleitava. Sentia-me muito frágil, quando criança. Percebia a minha fraqueza, o meu nada, e como ela se voltava para essa fragilidade com uma doçura enorme, entrando, por assim dizer, na minha condição, participando das minhas limitações, e pondo tudo quanto era dela a meu alcance para atenuar e dar solução aos efeitos dessas limitações.
Entretanto, eu sentia que essa carícia, penetrando tão fundo em mim, vinha muito do alto no espírito dela. À maneira de senhora — não sei se ela seria capaz de descrever, pois a alma feminina sente muitas vezes essas coisas sem saber explicitar —, havia toda uma consideração a respeito da bondade de Deus, infinita, mas condescendente, que vai até os últimos pormenores: olha a ovelhinha, presta atenção na galinha, agrada a criancinha e medita sobre o lírio do campo… E quanto mais desce, mais doce se torna.
Quando fiquei mais velho, fui capaz de explicitar correlações dessas. Eu percebia bem que a imagem do Sagrado Coração, que há na igreja d’Ele — aliás, artisticamente comum, sulpiciana —, queria dar a entender essa forma de solicitude e de bondade do Sagrado Coração de Jesus.
Lendo a mensagem d’Ele a Santa Margarida Maria Alacoque e vendo a vida cotidiana de Nosso Senhor, descrita no Evangelho, encontra-se muito isso também. E na imagem que há no oratório do quarto de mamãe essa ideia está muito presente.
Aplicação e distensão
Outra harmoniosa antítese, menos saliente do que a anterior, era um misto de aplicação e de distensão.
Nunca na vida encontrei Dona Lucilia tensa. Posso tê-la visto muitas vezes aborrecida, aflita, inclusive na perspectiva de infortúnios, porém tensa propriamente não.
Lembro-me de ter notado muito isto num pequeno episódio que, aliás, para ela não era tão insignificante.
Eu tinha 21 anos, mais ou menos, quando fui fazer operação de amígdalas. E combinamos em casa de não contar a ela, porque ficaria preocupada. Eu mesmo ia um tanto apreensivo fazer esta cirurgia — que de si é insignificante —, porque na véspera fora visitar o Arcebispo D. Duarte, para tratar de um assunto qualquer referente ao apostolado, e comentei com ele:
— Senhor Arcebispo, vou passar alguns dias fora, porque farei operação de amígdalas, mas quando voltar telefonarei ao seu secretário para saber se há algo de novo…
Ele então me disse:
— Vosmecê vai fazer essa operação?
— Vou, Senhor Arcebispo, está marcada para amanhã.
— No seu lugar eu não faria…
— Mas por quê?
— Porque, não se diz por aí, mas essa operação oferece perigos eminentes…
— Mas qual é o perigo, Senhor Arcebispo?
— Basta simplesmente vosmecê ter uma hemorragia. Conheço um caso em que esguichou sangue até o teto! Afinal conseguiram fechar qualquer coisa lá, e parou a hemorragia. Mas, nem sempre se consegue…
Notei que ele realmente não queria que eu fizesse a cirurgia. Porém a disciplina eclesiástica não chega até lá… Eu estava mesmo propenso a fazer, e fiz.
Combinei com um médico, membro de minha família, que ele assistiria à operação e, quando esta terminasse, ele iria para minha casa e avisaria Dona Lucilia. E assim foi feito.
Quando ela entrou em meu quarto, no hospital, acariciou-me muito e, depois de se certificar de que eu estava bem, sentou-se e me contou como tinha sido a comunicação da minha cirurgia para ela.
Notei que ela estava na pós-aflição e, portanto, ainda meio traumatizada pelo caso. Tensa, nada! Não tinha tido tensão alguma. Quer dizer, precisava acontecer, aconteceu, Nossa Senhora ajudará. Se acontecer o pior, ainda assim se vive.
A atitude diante do infortúnio marcava nesse ponto a vida dela, enormemente!
Bela e nobre bruma de melancolia, mas sempre de bom humor
Ela nunca estava com o espírito dissipado, ocioso, mas sempre meditando, pensando, considerando, lembrando, ponderando. Entretanto, jamais a vi tensa, cansada ou prejudicada por essa contínua aplicação do espírito.
Às vezes, julga-se que pensar cansa. Depende de como se pensa. Quando isso é feito sem amor-próprio, por amor a Deus, o pensamento não causa cansaço.
Embora Dona Lucilia pudesse ser considerada um arquétipo da sofredora, era o contrário da pessoa aflita.
Surgia daí outro paradoxo: ela trazia no fundo do olhar, em todo o seu modo de ser, uma bela e nobre bruma de melancolia; porém, estava sempre de bom humor. Continuamente afável, flexível, disposta a acolher, a atender, a renunciar a sua própria vontade para fazer a de outrem, a ouvir o que o outro queria contar, ao invés de ela falar.
Se analisarmos as promessas do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque veremos serem, evidentemente, de uma seriedade infinita; mas todas elas visam à distensão. Procuram resolver, aclimatar, ajudar, e são ditas de modo distensivo e bondoso. Poder-se-ia dizer que são as doze promessas da confiança e do bem-estar de alma, dentro da aflição.
Serenidade majestosa de Nosso Senhor
Dona Lucilia queria muitíssimo bem a sua mãe e era uma filha muito zelosa e dedicada. Quando minha avó morreu, cheguei em casa e, depois de rezar um pouco junto ao corpo, lembrei-me logo de mamãe e fui vê-la.
Encontrei-a no quarto, toda vestida e deitada na cama, com uma postura na qual eu nunca a tinha visto na vida: meio largada. Não como uma pessoa esparramada, que se entregou, mas com a atitude de uma ovelha que aceita ser morta, se for preciso.
Recordava aquela tranquilidade sublimíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, representada na iconografia católica, até na Crucifixão e na Morte.
Na Paixão, Nosso Senhor Jesus Cristo é apresentado sempre aflito, é claro, mas nunca agitado, inquieto. Mesmo no Horto das Oliveiras, a calma d’Ele é completa, dentro de uma tristeza insondável.
O fato de os Apóstolos estarem dormindo, tornava o isolamento ainda mais dramático, a tragédia mais pungente, e a aflição mais dilacerante; e, com isso, mais augusta a calma d’Ele.
Tenho a impressão de que a cada uma das idas de Jesus em busca dos Apóstolos, Ele estava mais aflito do que na vez anterior. Não obstante, em todas as três vezes Ele foi com o passo lento, fazendo a pergunta quase ritualmente, porque já sabia qual seria a resposta. Ao voltar, carregava o fardo e a dor de mais uma recusa.
Este ato de Se ter retirado só, para pesar tudo o que vinha, indica muito esta calma. O tenso, neurótico, fugiria dessa perspectiva de todos os modos. Ele, entretanto, a enfrentou!
A serenidade d’Ele está indicada também na conduta com os que O foram prender. Até com Judas!
É uma serenidade, antes de tudo, majestosa. Percebe-se — outro paradoxo! — que é um Deus que está sofrendo.
Calma extraordinária de Dona Lucilia diante da morte
Além da majestade, nota-se o “absoluto” da dor, se assim se pudesse dizer. Não há dor absoluta, mas a dor de Nosso Senhor era a mais parecida possível com a ideia de uma dor absoluta. Não faltou nada para que Ele sofresse inteiramente. O brado d’Ele no alto da Cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?!”, é um brado carinhoso, não de revolta.
Isso forma um todo em Nosso Senhor Jesus Cristo, e esse todo parecia refletir-se em mamãe de modo muito marcante.
Por fim, a atitude de Dona Lucilia diante da morte. Ela foi envelhecendo e, portanto, afundando dentro da morte, com uma calma extraordinária!
Na véspera de seu falecimento — quando ela já havia recebido a Extrema-Unção, e era impossível que não notasse estar próxima a morte — eu ainda vi esta cena.
Aconteceu algo que de vez em quando se dava com ela, e que a fazia sofrer. Mas nessas ocasiões ela sempre tinha um gesto de paciência, como quem diz: “Deus arranja depois.”
E isso que ocorreu inúmeras vezes ao longo de sua vida, repetiu-se nas vésperas de sua morte, e até de um modo particularmente desagradável.
O gesto, que outrora queria dizer: “Não agravemos isto por uma reação, porque ainda se pode arranjar depois…”, repetido por ela, já encostada na morte, significava: “Bem, resta-me um quê de vida, talvez; não quero comprometer por nada este momento.”
Por fim, ela teve a morte da católica calma: fez um grande “Nome do Padre” e morreu!
(Extraído de conferência de 14/6/1985)