jueves, noviembre 21, 2024

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Organicidade e inocência

A organicidade é inseparável da inocência, considerada como uma concepção da existência proveniente do élan puro da alma para o maravilhoso, para o metafisicamente perfeito.

Há um vale na Navarra chamado Vale do Roncal, antigamente constituído de uma miríade de pequenas repúblicas autônomas. Sua organização datava da Idade Média, e no Ancien Régime1 ainda estava em vigor. Essas republiquetas eram teoricamente soberanas, embora reconhecendo no Rei da Espanha uma suserania. Na ordem política dos fatos, elas foram completamente arrastadas pelo movimento geral da unificação do Reino de Espanha, e nem seus habitantes tinham mais consciência dessa soberania a qual se conservava mais por formalidade. Se os poderes municipais quisessem fazê-la valer, não conseguiriam, porque o povo não tinha mais consciência disso.

Calor de alma que conduz à perfeita consonância

Um dado interessante para provar a vitalidade e a legitimidade disso é que o Rei da Espanha, quando declarava guerra a qualquer potência exterior, mandava uma embaixada percorrer as repúblicas do Roncal e comunicar que ele, Rei da Espanha, tinha resolvido ir à guerra, e pedia a aliança delas. Os representantes dessas repúblicas respondiam que sim, e os emissários voltavam para a capital do reino. Era um mero protocolo, mas que se conservou encantadoramente até o fim.

Contudo, houve um momento em que isso teve vida, evidentemente. Em que consistia essa vida? Como era a relação das almas entre si em cada uma dessas republiquetas? Estas, por sua vez, deveriam encontrar muitas dificuldades para se comunicarem umas com as outras, devido ao temperamento espanhol muito altaneiro e desconfiado, uma não querendo obedecer à outra, afirmando sua soberania. Mas onde o espírito revolucionário não entrava em nada.

Se tivesse entrado, essas republiquetas, nascidas de uma determinada inter-relação que fazia de cada uma delas um todo fechado, não existiriam, não se diferenciariam umas das outras, não teriam coesão, a política de uma interviria na da outra, sairia uma mixórdia, aquilo virava um cortiço no meio das montanhas, uma favela.

Qual o relacionamento de alma que está na origem de tudo quanto é pequeno corpúsculo da sociedade medieval, quer quando este todo se formava muito uno e diferenciado, podendo dar facilmente em cidades livres da Alemanha, em organismos do mesmo gênero na Suíça, Itália do Norte, etc., como quando sua constituição se operava de um modo menos circunscrito, originando Estados um pouco maiores?

Há na raiz um relacionamento de alma o qual se trata de descrever e que, a meu ver, dá a partida para tudo quanto é orgânico. A organicidade de toda sociedade vem de um calor de alma pelo qual todas as relações cabíveis se estabelecem entre determinadas almas, levando-as a consonar como se fossem uma só.

Uma análise profundamente diferente do marxismo

Daí nasce uma vida social onde essas diferenças que fedem a luta de classes não entram. As distinções que devem existir segundo o Direito Natural entre povo e governo, senhores e súditos, etc., tomam uma realidade completamente diferente da que se encontra em certo tipo de literatura.

Como descrever essa união de almas? Para mim esta é uma questão muito importante, porque desconfio que no Reino de Maria deverá dar-se algo assim, levado muito mais longe: uma união sobrenatural de almas nesse plano, que é o ponto primeiro do Reino de Maria enquanto Cristandade, comunidade de povos e nações católicas.

Aliás, a própria Cristandade enquanto família de nações cristãs é isto. É um modo de sentirem juntas a Cristandade, formando, no plano natural e temporal, uma família de almas que se diferencia do adversário por causa disso.

Toda a vida de uma sociedade depende desse imbricamento de almas. Portanto, para compreendê-la trata-se de ver como é esse relacionamento. Atualmente, a noção de organicidade das instituições está falseada, a ponto de se ignorar este aspecto. Seria preciso restaurar essa noção a partir disto.

Assim, ao invés de uma análise que comece por um dado econômico, inicia-se por um elemento psicológico e, neste ponto, é profundamente diferente do marxismo, porque a própria economia se desenvolve devidamente a partir de uma união de almas assim. Sobrepor a economia a todo o resto é uma aberração final da ignorância.

Sergio Hollmann

Inocência: ponto de partida do perfeito relacionamento

Para estudarmos como se faz esse perfeito relacionamento, seria preciso partir da inocência, porque almas sem inocência não são capazes de se relacionarem adequadamente. Querer estabelecer um bom relacionamento com almas não inocentes é o mesmo que tentar fazer um tecido de linho com fio podre. Não sai tecido!

Como se opera esse entrelaçamento de inocência?

A meu ver, trata-se de pensar em comunidades formando, dentro de certo contexto, um todo capaz de se tornar uma unidade política, um pequeno Estado, cuja inocência das almas que o constituem considera esse grupo humano com aquele desejo de perfeição exímia, próprio ao senso do ser.

Como dentro de uma mesma família, também numa comunidade como essas, composta por uma mesma raça, com certa homogeneidade, as inocências consideram em uníssono alguns aspectos da sua própria realidade, da sua própria vida, têm o mesmo élan no mais fundo das almas: todos veem do mesmo modo o Natal, o castelão, o rio que passa ao pé do castelo, as ovelhas, os frutos das árvores, etc.

Há um governo de Deus pelo qual, lentamente, as inocências vão mudando de tema. Em determinada época, o riacho marca o tema; mais tarde, a atenção se volta para outro ponto e fazem, no meio de um larguinho, uma fonte cujo prodígio hidráulico de trazer água de longe marca melhor ainda a atmosfera viva; depois o sininho da capela, e as coisas vão assim se acumulando sem se excluírem, com diferentes tônicas que vão sucessivamente, pelo continuar da História, imbricando as almas de um determinado modo.

Isso produz uma consonância entre as almas por onde todas vivem de uma mesma vida no que elas têm de mais profundo.

Almas desiguais que se imbricam inteiramente

Então, a alteridade deixa de existir? Não, nem um pouco. De um lado, ela caracteriza inteiramente cada alma, mas, de outro, acantona-se num resíduo de pouca importância. Por exemplo, um é mais impetuoso e se zanga mais facilmente, outro é mais manso; esse sente mais aptidão para criar cabritos do que carneiros, aquele tem mais facilidade para construir casas do que plantar. Assim, divergências em pequenos afazeres. Mas, em tudo quanto é profundo, as almas estão umas para as outras como as peças de um mesmo relógio. São diferentes, mas se imbricam inteiramente e só se explicam umas em função das outras. Constituem um verdadeiro todo.

Yelkrokoyade (CC 3.0)
Manufatura de chapéus femininos – Museu de Viena, Áustria

Vamos dizer, por exemplo, que na cidade haja um marceneiro, uma mulher que faz rendas, outro homem trabalha em couro, e outro fabrica pequenos utensílios em metal. Todos procuram fazer bonito e agradar o mercado interno. O pressuposto dessa produção artesanal é a harmonia. O móvel, a renda, o trabalho de couro e a faca são tão harmoniosos entre si que se fosse dado a uma faculdade de belas artes imaginar esses objetos, não os produziria igualmente harmônicos.

Dentre os moradores da cidade, um preferirá uma faca a outra, uma senhora preferirá uma renda a outra, mas os pressupostos ninguém discute: renda é aquilo, faca é aquilo, móvel é aquilo, e tudo aquilo é lindo.

Por que os pressupostos são assim? Por causa dessa unidade inicial das inocências, do modo de ver a simbologia toda da Religião e da natureza. Bem entendido, não é a religião natural, mas sim a Religião Católica, como também os aspectos religiosos da natureza. A sociedade que nasce daí é chamada orgânica e tem, no fundo, como que uma só alma.

À medida que a inocência vai decaindo, a regionalidade cai, porque esses fenômenos assim só se dão em grupos pequenos ciosos de sua identidade, porque cada ser apetece o seu próprio ser, e não tendem a formar imensas aglomerações.

Originalidade destas explicitações

Já não se passa o mesmo com o Sacro Império ou o que se chamariam “as Espanhas”, etc, que estariam numa relação entre si e com esses subgrupos como o gênero está para as espécies, esta para as subespécies e as subespécies para as famílias e, depois, estas para os indivíduos. Assim também esses corpúsculos sociais tendem a se encaixar uns com os outros para formar subespécies que, por sua vez, encaixam-se em espécies, e assim por diante.

Poderíamos imaginar, então, um Vale do Roncal, num Reino da Navarra, que é um conjunto de reinos autônomos dentro de todas “as Espanhas”, sobre as quais reina o monarca. Forma-se, assim, um harmonioso encaixe; e o Sacro Império é fundamentalmente isso.

Em meu modo de ver, a originalidade destas explicitações está no caráter prevalentemente psicológico para a intelecção da sociedade orgânica; uma psicologia que se constitui em torno de algo profundamente metafísico e religioso, dado pela inocência. Por onde se deduz que organicidade e inocência são coisas inseparáveis. Pensar em sociedade devida e estavelmente estruturada sem inocência é inteiramente impossível.

Poder-se-ia alegar que, por exemplo, segundo Fustel de Coulanges2, a Roma antiga teve traços dessa organicidade possante e, entretanto, era pagã. Porém, ela possuía uma inocência patriarcal que, a seu modo, era a vida dessa sociedade.

O que nós chamamos inocência aqui? É uma concepção da existência proveniente desse élan puro da alma para o maravilhoso, para o metafisicamente perfeito, como prevalecendo sobre todo o resto.

Bênção existente nas famílias com muitos filhos

Infelizmente, o homem contemporâneo não vive do desejo e da esperança de ser assim, e considera o mundo inteiramente organizável sem isso. E faz do individualismo o teor de suas relações. Então, cada um medra no seu canto sem esses valores e sem inocência, ou com uma inocência raquítica, fanando noutro canto da alma, não ousando mostrar-se a ninguém, sem um pingo de relação que não seja determinada, ou pelo mero hábito ou por uma amizade fundada numa consonância sentimental de dois egoísmos, sem um ideal de que aquele relacionamento ande bem, para além da vantagem individual.

Resultado: as nações assim pagam o fardo disso, do modo mais pesado possível, porque caem no mimetismo. Como ninguém confia em ninguém, todo mundo tem medo de ser caçoado, e o escudo contra a caçoada é adotarem artificialmente um padrão que todos tomam como válido. Quem está de acordo com aquele padrão não pode ser caçoado. Outrora foi padrão francês, depois passou a ser padrão norte-americano, agora o padrão decorrente — mais próxima, mais remotamente — da Sorbonne de 1968.

É o medo de ter uma mentalidade que não seja a “oficial”, porque cada um fica sozinho na selva, e quem não estiver segundo esse padrão artificial é perseguido.

Conheci famílias, em geral com muitos filhos, em que o pai, a mãe e a penca dos filhos funcionavam entre si, sob vários pontos de vista, à maneira do Vale do Roncal. As famílias com poucos filhos não produziam isso; é uma bênção que a família pouco numerosa não tem. Essa história de dizer: “Vocês são só dois, vão ficar amicíssimos!” não é verdade. Formam interstícios entre os dois que dão amizades absolutas por um lado, e vazios imensos por outro. Pelo contrário, havia famílias numerosas nas quais — às vezes até para o mal — se constituía uma mentalidade coletiva que era uma coisa simplesmente fantástica.

Então, era o modo de fazer esporte, de realizar negócios, de entender as relações, formar as ambições, de tratar os temas, de brigar com os de fora, enfim, tudo era homogêneo até debaixo d’água. E, tomando naquele mundo de irmãos, quando um precisava da ajuda do outro, era aquela solidariedade até o fim. É um fundo de organicidade dentro dessa perspectiva.

Nossa Senhora, inocência e Contra-Revolução

Surge a questão: Como seria isso no Reino de Maria? Eu só posso imaginar o Reino de Maria com esse fenômeno enormemente mais vivaz.

Não é verdade que a Revolução tenha suprimido pura e simplesmente esse fenômeno. Ela encontrou o jeito de manter uma existência de família de almas baseada no oposto. As almas hoje constituem, na negação, uma família monolítica e colossal, como outrora fizeram, na afirmação, famílias pequenas constituindo galáxias de unidades diferenciadas.

Nessa família de almas revolucionária, os espíritos são trabalhados pela intersuscetibilidade, de maneira a sentirem qualquer coisa que, de longe, contradiga suas concepções. Daí o agudíssimo senso “anticontrarrevolucionário” que eles têm.

Como essa família de almas se estabeleceu? É a ligação como que orgânica das almas em torno do caos, do nada, da massa, do isolamento, da tristeza, de tudo quanto é errado para o homem, mas que fazem um tecido monstruoso com os desenhos tortuosos.

Eu só compreendo o Reino de Maria se vier uma graça de conhecer e amar com uma luz maior do que nunca as verdades opostas a esses erros, em torno dos quais essa família de almas se estruturou. Portanto, vida em torno da inocência, com todas essas suscetibilidades proporcionadas pela Revolução acesas na linha da Contra-Revolução, e de tal maneira que seja dificílimo a Revolução erguer a cabeça, desde que as almas continuem inocentes, porque sendo inocentes serão vigilantes.

Sou levado a achar que, em dado momento, essa concepção da existência se imporá às almas refratárias à Revolução, com um fulgor tão grande como a luz que São Paulo viu no caminho de Damasco. Aí terá nascido esse imbricamento, essa inocência, essa sociedade de almas, esse mútuo apoio e essa perfeição da qual tratávamos há pouco.

Creio que Nossa Senhora tem isso em grau superexcelente. A relação d’Ela com a inocência e com a Contra-Revolução ainda não foi devidamente estudada, e seria de uma importância transcendental. Todas essas coisas estão, por assim dizer, nos esplendores do Padre Eterno, ansiosas por vir até nós, mas esperando um determinado momento.

Talvez, por ocasião dos castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima, dê-se tal destruição e tal fim de um mundo, que ressurja um mundo sem as infâmias do anterior, e todos sentirão como tudo acabou, à maneira de um quadro-negro cheio de cálculos errados e de obscenidades, no qual alguém passa uma esponja e, depois, ainda lava com água, deixando a lousa limpa para escrever outra coisa. Então começarão a existir condições para as almas retomarem outra base de relacionamento.

Quando se lê o “Tratado da Verdadeira Devoção”, fica-se com a impressão de que São Luís Grignion de Montfort abre a possibilidade de haver graus e formas de união com Nossa Senhora dos quais não temos ideia. E que, pelo menos incoativamente, a pessoa alcança esses graus e formas quando faz a consagração à Sabedoria eterna e encarnada pelas mãos de Maria; mas, ao longo da fidelidade à consagração, isto se desenvolve de algum modo.

Suponho que isto continue assim até nossos dias. Aliás, o próprio São Luís dá a entender que em determinado momento isto se conhecerá. Uma vez revelado este segredo, nascerá o perfeito sistema de união entre os homens.

(Extraído de conferência de 24/2/1982)

1) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

2) A cidade antiga. São Paulo: Ediouro, 2004.

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