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Riquezas do conhecimento por conaturalidade – II

A Revolução incentivou de um modo desequilibrado o crescimento da Ciência, desprezando o aspecto conaturalidade do conhecimento. Assim, o homem ficou um ente dilacerado: de um lado, ele cresce e vai se tornando um gigante; de outro, vai mirrando como um anão.

Eu passaria a considerar como as virtudes se ajustam ao quadro descrito anteriormente. Pensemos em Adão e Eva passeando no Paraíso. Como funcionava a conaturalidade neles?

A vida no Paraíso terrestre, antes do pecado original

Não tinha sido cometido o pecado original e nossos primeiros pais eram, portanto, pelo auxílio da graça, inteiramente adequados àquilo tudo. Eles compreendiam aquele universo e a natureza interna de cada criatura muito melhor do que nós, de maneira a poderem apanhar com maior acuidade o que aquilo tinha de deiforme.

Passava, por exemplo, um pássaro lindíssimo diante de Adão; ele olhava a ave e, num exame ao alcance de sua natureza, percebia nela tudo quanto havia de maravilhoso e por onde ela dava glória a Deus.

Em virtude de sua inteligência — muito maior e mais segura do que a do homem depois do pecado — e pelo dom de ciência, Adão era capaz de conhecer toda a anatomia e fisiologia do pássaro, compreendendo a fundo sua natureza, pela qual um era o pavão, outro o cisne, etc., e entendendo também a relação existente entre a estética, a anatomia e a fisiologia, com suas regras.

Por outro lado, Adão possuía também — e este é o aspecto superior — um amplo conhecimento de Deus. E, assim, de ambos os lados, à maneira de estalactite e estalagmite, os dois conhecimentos se encontravam para constituir uma coluna.

Portanto, o analogado primário é Deus. Contemplando-O, ele entendia melhor a criatura. Mas também, vendo a criatura, ele subia melhor até o Criador.

Desta maneira, como acima referido, dá-se um fenômeno análogo ao da estalactite e da estalagmite quando se encontram. E essa longa elaboração do pensamento, que vem de baixo para cima e de cima para baixo, e um belo dia se encontram, é o pensar da vida humana. Quando, à força de levar uma vida interior ordenada e contemplativa, constituiu-se a sua coluna, pode-se cantar: Nunc dimíttis servum tuum, Domine…1, porque então se viveu.

Adão era o regente de uma orquestra cujos sons o inebriavam

Em nossos primeiros pais no Paraíso, por estarem na retidão de sua natureza ainda não manchada pelo pecado, a Fé, a Esperança, a Caridade, a Justiça, a Fortaleza, a Prudência e a Temperança se harmonizavam como num concerto de vários timbres.

Contemplando-O, ele entendia melhor a criatura. Mas também, vendo a criatura, ele subia melhor até o Criador.

Diego Delso (CC3.0)
Jonathan Wilkins (CC3.0)

Então, supondo uma operação completa em Adão, na tarde anterior Deus tinha passeado com ele ao descer a brisa, e lhe dera a conhecer de Si aspectos novos. E Adão dormiu sob o delicioso fardo dessas comunicações que, a seu modo, podem cansar o homem por estarem tão acima de nossa natureza: “Sou tua recompensa demasiadamente grande.”2

Portanto, Adão dormiu não de tédio, mas de um sono pelo qual ele se recompôs para levar mais essas flores de ouro na mão, no dia seguinte. Acordou de manhã e começou a passear pelo Paraíso. E, à medida que via as criaturas, ele as ia relacionando com as maravilhas que Deus lhe tinha contado de Si na véspera, bem como com as que ele conhecera anteriormente, as quais ele ia aprofundando. Adão não era um novidadeiro; ele meditava nova et vetera. Relacionava, pois, as coisas novas e antigas ditas a ele por Deus com aquilo que de antigo e novo ele ia vendo na Criação.

Assim, em sua temperança, Adão ia amando cada coisa como ela deve ser amada; ia fazendo justiça ao grau de perfeição posto por Deus em cada ser; por sua fortaleza, ia sujeitando as coisas para seguirem retamente os desígnios divinos.

Pode-se imaginar, suponho eu, que houvesse, antes da criação de Adão, um Anjo para reger o Paraíso e que, quando apareceu o primeiro homem, o Criador deu a ele uma parte da regência ou do reinado confiado ao Anjo, o qual, talvez, fosse o Anjo da Guarda de Adão. Desta maneira, Adão era, ele mesmo, o regente dessa orquestra cujos sons o inebriavam.

Poderíamos, então, tomar uma por uma das virtudes e ver como elas atuaram nessa regência. A começar pela Fé: ele creu. A Esperança: ele se realizará naquela direção. A Caridade: só aquilo merece ser amado, e o que ele viu em Deus erigiu como padrão de tudo quanto pensava, fazendo as criaturas se voltarem todas para Ele, como um músico que, tendo ouvido um pouco de música dos Anjos, ao reger uma orquestra no teatro imitasse aquela melodia angélica. Assim também pela Fé o homem conhece as coisas sobrenaturais; pela Esperança ele as deseja; pelo Amor as quer mais do que todas as outras. E vai encaminhando todo o universo, do qual ele é rei, para aquele ponto de perfeição maravilhosa a ser alcançado quando o mundo acabasse. Eis a vida do ser humano no Paraíso, operosa, nova, original, profunda; obra dele, mas inteiramente de Deus, em que a Fé, a Esperança, a Caridade e as quatro virtudes cardeais regeram tudo.

Compreende-se melhor, assim, o encantamento de Adão no Paraíso porque, sendo impelido por suas virtudes, ia vendo saírem estrelas de seus passos, luzes de seus gestos e músicas de suas palavras. Ele multiplicava as belezas que ele próprio admirava.

No fato de Adão, com sua regência, colaborar para aumentar a beleza do Paraíso, praticando uma ação semelhante à exercida por Deus, há qualquer coisa que torna o Paraíso mais atraente, à maneira do simbolismo do dosselzinho da Igreja de São Bento que, como eu dizia há pouco, torna mais atraente a consideração sobre o Céu.

Alguém poderia sentir-se um pouco perdido, à maneira de um expatriado, nessa meditação e pensar: “Bem, isso fariam Adão e Eva. Eu quase não tenho o direito de caber dentro disso. Feliz de mim se me tolerarem nessa teofania, nessa “homofania”, nesse canto litúrgico alternado entre Deus, os Anjos e os homens, permitindo-me ouvir um pouquinho, como um ratinho no cantinho dentro dessa esplendorosa sala do trono.”

Entretanto, essa sensação não é verdadeira. Cada homem que fosse criado entraria, em dado momento e em determinado concerto, como um cantor ou um instrumento novo para entoar, a seu modo, uma melodia e aumentar a beleza da orquestração. De onde viria a alegria do nascimento. Não seria apenas porque nasceu um pimpolho.

O Homem-Deus é o ápice da sinfonia

Já que vamos caminhando para o Natal, vem a propósito considerar que todos os nascimentos seriam ordenados para o nascimento do Homem-Deus, o qual seria como o ápice da sinfonia. Haveria um subir da montanha até o Natal d’Ele e um descer depois d’Ele, que formam todo o conjunto. E cada nova pessoa que nascesse seria uma nota tocada por Deus naquele concerto, a qual deveria tocar-se a si própria, por seu próprio movimento.

Si Gam (CC3.0)

A vida vista dessa maneira é de uma beleza extraordinária! Então, eu — “ratinho”, petit vermisseau3, mas não ainda misérable pécheur4, pois estou supondo um Paraíso onde não houve pecado — entraria nesse concerto como um passarinho minúsculo que na minha hora deveria dizer “piu-piu”, mas cuja intervenção seria necessária, ou ao menos conveniente, para a composição da orquestra.

Na sociedade humana assim constituída o anonimato fica banido, pulverizado, e o indivíduo não se reduz a um número; é outra concepção da vida.

Em nossas atuais condições, de homens concebidos no pecado original, é preciso ter uma fidelidade heroica para não se desviar nem um pouco dessa concepção e desejá-la com todo o coração e com toda a alma.

Isso supõe um desapego de tudo quanto é torto, errado, arbitrário, caprichoso. Esse desapego é heroico e dá ao homem uma espécie de ordenação interior para ir apetecendo correlatamente profundidades novas em si, e encontrando solução para novos problemas de alma que ele não saberia resolver se não tivesse essa visão do relacionamento humano em função das conaturalidades.

O homem precisaria ter uma estrutura que o fizesse encontrar sua verdadeira conaturalidade com toda a dimensão e adequação humana.

Ora, a Revolução incentivou de um modo desequilibrado o crescimento da Ciência, enquanto o aspecto conaturalidade está cada vez mais em desordem. Assim, o homem ficou um ente dilacerado: de um lado, ele cresce e vai se tornando um gigante; de outro, vai mirrando como um anão. Esse duplo movimento o esquarteja.

Em contrapartida, a ordenação humana considerada como anteriormente descrita faz-nos compreender melhor o Céu, o relacionamento na imensa corte celeste, vendo Deus face a face e tomando diante d’Ele, como também diante da Criação, a atitude correspondente. Este seria o cântico eterno!

(Extraído de conferência de 29/11/1985)

1) Do latim: “Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo…” (Lc 2, 29).

2) Cf. Gn 15, 1 (Vulgata).

3) Do francês: vermezinho.

4) Do francês: miserável pecador.

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