Uma das características mais salientes da alma de Dona Lucilia era ver em todas as coisas o lado mais elevado, mítico e maravilhoso.
O povo brasileiro — e talvez o sul-americano — é propenso a considerar a Europa como um todo, muito mais do que fragmentariamente.
Reminiscências da viagem à Europa
Menciono, a título de exemplo, uma reminiscência de Da. Lucilia na Europa, recordação que eu não presenciei diretamente, porque tinha apenas quatro anos e não era de nenhum modo um convidado bem-visto para acompanhar minha família à noite no teatro, numa soirée de gala, pois não compreenderia nada do que visse.
No entanto, ela contou-me como era uma soirée de grande gala no Opéra de Paris. Primeiramente, devemos tomar em consideração que se tratava da sociedade parisiense da Belle époque1, portanto, antes das catástrofes da I Guerra Mundial. Na ocasião, todas as senhoras deveriam comparecer em traje de baile e os homens de casaca, com suas condecorações, quando as possuíam.
Naquela época era difícil obter um lugar no teatro, porque todas as grandes famílias da aristocracia e da plutocracia de Paris tinham suas frisas e camarotes reservados com antecedência — às vezes de seis meses —, e algumas famílias já faziam reserva para todos os espetáculos do ano, de maneira que os sul-americanos encontravam dificuldade, como os outros turistas também, de conseguir uma frisa ou um camarote.
Ela contava que havia o costume de, junto com o folheto da ópera, contendo os nomes dos atores e as partituras executadas, venderem também um panfleto com a indicação de todas as pessoas e famílias importantes presentes nas várias frisas e camarotes. Minha mãe contava que uma das distrações era exatamente ler aquilo e, depois, com um binóculo, conferir a frisa da família de tal duquesa, a família e o príncipe de tal outro lugar; vê-los com suas joias, com suas condecorações, quando as possuíam, pois os nobres estavam rompidos com o Governo francês, que não os condecorava porque a França era uma República.
Isso despertava a máxima curiosidade e o interesse dos sul-americanos.
Contemplando o unum do continente europeu
Minha mãe e os membros de minha família conservaram uma recordação maravilhada daquilo que formava para eles um unum: a sociedade de Paris. Esse mesmo unum visto por eles de fora; quem estava dentro via menos. Não que esse lado maravilhoso fosse menos real, mas ver de muito perto prejudica essa visão. As coisas humanas são como as árvores: de longe são bonitas, mas quem está a dois dedos do tronco, vê formigas, buraquinhos e toda espécie de coisas.
Assim também os que estavam lá e pertenciam àquele mundo, conheciam os defeitos, as divisões existentes entre cada família, e não só conheciam, mas faziam parte das divisões, eram de tal clã rival de tal outro e, naturalmente, isto levava a más vontades e torcidas, e o aspecto de conjunto se perdia.
Então, se considerarmos a Europa de antes da I Guerra Mundial como um magnífico espetáculo de conjunto, compreende-se que os brasileiros — e presumivelmente como eles os irmãos deles de outros países da América do Sul — fossem muito sensíveis à visão de conjunto daquela Europa e as reversibilidades viessem facilmente ao espírito.
Mamãe já foi à Europa com essa visão de conjunto, porque todas as famílias boas de São Paulo, certamente também de outras cidades brasileiras, tinham uma visão análoga.
Afinal, seja como for, ao tocar piano, ao cantar óperas e composições dos grandes músicos europeus, ao ler os livros dos escritores da Europa, enfim, comprar os produtos da indústria europeia, ler todas as notícias que nos vinham do Velho Continente pelos jornais, etc., formava-se uma ideia da Europa em que ela representava para o sul-americano, para o brasileiro pelo menos, um papel parecido com o que a Grécia e Roma antigas representavam para os homens da Renascença.
Quer dizer, um mundo olímpico, mítico, maravilhoso, para onde se ia quando se podia, onde se ficava tanto quanto se conseguia. Porque lá a vida naturalmente era muito mais cara do que aqui.
Despertando o senso do maravilhoso através de pequenos fatos
Então, Dona Lucilia voltou da Europa com muitas recordações e ainda mais europeizada. Em São Paulo, até começar o advento da influência norte-americana, entre os anos de 1920 e 1922, a Europa continuou a ser o polo único do pensamento paulista, porém debaixo do ângulo dessa reversibilidade brasileira que via todos os conjuntos.
Dona Lucilia despertava muito a minha recordação, e de minha irmã também, para tudo quanto tínhamos visto na Europa pelo hábito que ela tinha de contar, mais de uma vez, os pequenos fatos do passado. Com receio de que nós nos esquecêssemos, ela os recontava maternalmente, quando tinha oportunidade.
Ela descrevia os episódios de maneira a pôr em realce o maravilhoso neles contido e a estimular o nosso sentimento de admiração, a nossa nostalgia e a nossa vontade de voltar para a Europa. Era uma educação na qual estava presente um verdadeiro “heliotropismo” europeu, que eu creio sentir-se ainda hoje na minha formação, aos borbotões.
Realçando o pulchrum de uma escrivaninha francesa
Por exemplo, Dona Lucilia prezava muito uma escrivaninha que hoje está em nosso salão azul, debaixo do quadro de uma das avós dela. Não é um móvel de luxo, mas muito bonito. Ela contava-nos como o havia comprado. É um fato mínimo, de importância na vida de uma dona de casa, mas no modo pelo qual ela contava via-se o quanto ela valorizava as coisas.
Mamãe comentava como a escrivaninha era bem feita, como eram bonitas as incrustações de bronze, a harmonia do móvel, o mogno do qual era constituído, como era bem trabalhado, enfim, um verdadeiro móvel francês.
O modo como ela descrevia a peça equivalia a dizer que tinha sido comprada na terra da perfeição. Ela dava a entender que vinha da própria matriz por excelência da civilização, a França. Isso era apresentado implicitamente. Também comentava o modo de tratar dos franceses como sendo o mais afável que havia na Terra, ao mesmo tempo o mais distinto, e a língua francesa como uma música, usada por ela inclusive para as pequenas coisas de todos os dias.
Dona Lucilia, então, contava que ela estava fazendo compras na Galeries Lafayette. Para aquele tempo era uma loja monumental, vendia artigos comuns, de boa qualidade, a preços acessíveis. E toda dona de casa quando ia para a Europa comprava, se podia, alguns ou muitos objetos de luxo.
Ela foi fazer compras na Galeries Lafayette quando viu, encostada de um lado, numa das seções, a escrivaninha. Ela então perguntou para a vendedora o que fazia ali aquele móvel. Naturalmente era uma boa vendeuse e sabia atrair o cliente, e disse a mamãe:
— A senhora tem uma atenção não comum, porque os nossos clientes vêm aqui, passam de um lado para outro e não prestam atenção nesse objeto, entretanto, ele é digno de atenção. Nosso ramo comercial não é esse, pois nós não temos um setor que venda móveis usados antigos. Porém, uma senhora, freguesa nossa há muito tempo, perdeu a fortuna e está precisando vender seus pertences. Ela perguntou se nós podíamos expor aqui este móvel. O diretor da casa, por uma exceção, autorizou.
Mamãe se interessou pelo móvel, perguntou o preço, depois contou à minha avó, e as duas foram no dia seguinte examiná-lo. Gostaram muito, compraram-no. A escrivaninha foi então primorosamente — porque feito na França só podia ser primoroso —, engradada e remetida por navio. Chegando a São Paulo, em Santos, foi desembarcada sem dano nenhum.
É o característico de uma historieta contada por ela: uma imersão na vida de todos os dias, de um mundo mítico, no qual até as pequenas coisas são carregadas de certo pulchrum, que a criança aprende a ver pela narração que realçava isso. A França era a terra da imaginação na qual tudo era assim, onde todo mundo se tratava deste modo.
Afabilidade de uma família de hoteleiros
Dou outro exemplo:
O hotel onde Dona Lucilia se hospedou não era dos grandes de Paris; era bom, mas comum. Seu proprietário era um homem de estirpe nobre — isso já entrava um pouco na mitologia… — e ocupava com sua família todo o andar superior do edifício. Eram os Messieurs de Vedrines — não me parece um nome inteiramente francês —, um simples monsieur respeitável, mas grau inicial de uma escada que subia muito mais alta.
Ele, querendo distinguir minha avó e toda a nossa família, mandou convidar a criançada para uma festa de aniversário de um dos filhos dele. Éramos uma horda grande, porque, além de minha irmã e eu, tínhamos primos em quantidade, e todos efervescentes. Era uma criançada tropical.
Isso era apresentado por ela assim: que o Monsieur e a Madame de Vedrines não faziam isso habitualmente com os outros hospedes — aí entravam mais uma vez as mitologias —, mas pela grande estima para com vovó, eles se sentiram honrados de tê-la como hóspede e, querendo de algum modo manifestar sua consideração para com ela, mandaram convidar todos os seus netos para essas festas, além de julgarem que estávamos em condições de ser boa companhia para os filhos.
Aí se fazia presente mais uma vez uma concepção maravilhada da Europa, apresentada não só como sendo um mundo maravilhoso, mas compreensível e receptível para com o Brasil. Portanto, certa afabilidade hospitaleira, própria a receber bem, o que aumentava a vontade de ir para lá, evidentemente.
Visão mítica a respeito de outros povos
Até que ponto essa visão se estendia ao resto do continente? Em seu espírito, mamãe distinguia, sobretudo, três nações na Europa, duas das quais ela conheceu, outra não. Uma era a França, outra era a Itália, que ela também conheceu, e a terceira era a Áustria, onde ela não esteve.
A Itália, a Áustria e a França eram para ela as três nações paradigmáticas da Europa. Quanto à Espanha, ela compreendia bem todos os valores que há nesse país, mas os governos, e até certo ponto a sociedade de Madri naquele tempo, encontravam-se num período de recesso, e a Espanha não estava vivendo os seus grandes dias, enquanto a França e a Áustria sim. A Itália, todos os dias são grandes dias para ela, pois ela apanha, ela vence, daí a pouco está sentada na mesa do vencedor dizendo bonitas palavras e convidando para ser visitada. De maneira que a Itália era posta por Dona Lucilia na ciranda das reversibilidades.
A Alemanha na concepção de Dona Lucilia
Ela não era inteiramente justa com Deutschland. Havia momentos em que isso se distendia um pouco e ela fazia uma exceção para a Baviera, na concepção dela, a parte doce da Alemanha. Mas não abria exceção para a Prússia, a parte dura e amarga do mundo germânico, e na qual ela via, em parte, uma cidadela do protestantismo.
Isso era verdade, mas também os católicos prussianos, um décimo da população prussiana daquele tempo, constituíam a cidadela da contrarrevolução católica dentro da Alemanha, e isto ela não sabia.
Um dos maiores benefícios que Dona Lucilia nos fez foi contratar — com pesado sacrifício financeiro para ela — a Fräulein Mathilde, uma das melhores governantas que havia em São Paulo.
Mamãe tinha uma grande preocupação com o futuro de minha irmã e o meu. Por isso tomou a seguinte resolução: “O que vocês têm e que eu posso aprimorar é a inteligência. Portanto, o que tenho a fazer é contratar uma preceptora de primeira, porque irão lucrar com ela o que não lucrarão em nenhuma universidade.”
Ela tinha razão. Porém, a Fräulein nos germanizou muito e Dona Lucilia gostava de contar o sacrifício que ela fez mantendo esta governanta. Quer dizer, ela sabia ter feito bem, mas depois dizia que havia sido um erro, pois Rosée e eu tínhamos saído muito germanizados.
Ideia vaga sobre os povos eslavos e reserva quanto a Portugal
Ficava também fora da reversibilidade dela o mundo eslavo, porque não entrava muito na vista dos brasileiros naquele tempo. Era tão longe, e uma história tão diferente, que Dona Lucilia tinha ideia vaga daqueles povos e, portanto, eles entravam pouco no horizonte mental dela.
Alguém poderia me perguntar: E Portugal?
Por incrível que pareça, na infância dela os ressentimentos do período da independência ainda pesavam um pouco. Apesar disso, ela gostava de Portugal, mas creio que eu valorizo muito mais Portugal do que ela valorizava.
(Extraído de conferência de 11/6/1982)
1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.