O homem deve procurar custodiar a organicidade, mais do que dirigi-la, criando condições favoráveis ao seu desenvolvimento e evitando introduzir elementos inorgânicos como, por exemplo, os produtos da revolução industrial com suas altas velocidades.
Passemos à leitura do livro de Rafael Gambra, “El Valle de Roncal”.
Entidade autônoma
Assim isolado e formando uma fechada comunidade política, o Vale do Roncal manteve através dos séculos uma personalidade forte e característica, com uma história própria e até certo ponto independente. Por exemplo, lemos em uma de suas “ejecutorias”: “Ainda que o Vale do Roncal seja membro do corpo do Reino de Navarra, quando este se entregou à majestade do senhor Rei Dom Fernando, Católico, e se outorgou a capitulação geral do vale com os deputados de todo o reino, não obstante considerando o Vale do Roncal braço poderoso e forte por si para a defesa de seu rei e senhor natural, se lhe determinou que se outorgassem seus poderes para capitular separadamente sua fidelidade à majestade católica, como assim o fez com o Duque de Alba, general das tropas naquele ano.
Assim também, na guerra de 1793 contra a Revolução Francesa, o Vale do Roncal defendeu suas fronteiras às ordens de seu alcaide maior, o capitão de guerra, operando entre o corpo de exército de Navarra, comandado pelo General Caro, e o de Aragão, comandado por Castellfranco. Apesar do tempo e das vicissitudes políticas, tão pouco propícias às diferenças locais, esta personalidade coletiva foi mantida por Roncal até os nossos dias. […] A junta geral do vale integrada pelas sete vilas ou “pueblos”, à qual pertence a maior parte dos imensos bosques de seu solo, administra-se por si mesma sem ter que dar contas a nenhum poder superior, nem mesmo à deputação de Navarra.
Vemos que dentro do Roncal existe uma entidade que não dá satisfações nem mesmo aos chefes do Roncal; é uma entidade autônoma que leva a autonomia quase até a exacerbação, mas saudavelmente, não num espírito revolucionário.
Havia o antigo Reino de Navarra, e o Roncal fazia parte autônoma, era uma república dentro desse reino. Mas o Reino de Navarra devia mandar uma deputação para ver como estavam as coisas no Roncal.
Goza-se no vale uma independência dentro do próprio foro de Navarra, o que faz dele um vale pirenaico mais autônomo depois do de Andorra. Esta autonomia, que ocorreu sempre paralela a seu espírito público e a sua vontade em defender a pátria comum, faz deste vale o melhor exemplo vivo do que seriam, no século do ouro, os povos espanhóis. Tão marcadamente diferentes entre si, tão zelosos do seu próprio foro, mas tão unidos na mesma fé e sobre a mesma coroa.
Tipo humano, paisagem e produção
Paisagem: O viajante que por primeira vez penetra no vale, transitando águas acima desde a sua desembocadura, tem a impressão em cada curva do caminho de que sua viagem vai terminar ali mesmo, de que aquela estrada morrerá bruscamente frente a uma maciça e impenetrável muralha de pedra. A noite se adianta várias horas no fundo daquelas gargantas e a estrada, entre o penhasco e o abismo do rio, se dobra à sinuosidade do vale, sempre ameaçada pelos tremendos blocos de pedra que, meio desgastados, parecem dispostos a desabar sobre a estrada.
E abaixo, no meio do rio que ferve claríssimo no seu leito de pedra, enormes rochas soltas confirmam a ameaça. O panorama vai mudando sensivelmente à medida que se remonta o vale. A seca fragosidade dos primeiros desfiladeiros se vai iluminando em perspectivas mais amplas, que são remarcadas pelos agudos picos do Pireneu, cujos cumes se perdem tantas vezes entre as espessas nuvens de inverno. A vegetação é mais substanciosa e densa. As primeiras massas escuras de pinheiros e abetos alternam com verdes prados salpicados de cerradas matas. De todas as partes descem frequentemente, em brancas cataratas, arroios de claríssimas águas, cujo leito de pedra nua alberga as mais finas e saborosas trutas do Pireneu navarro. O povoado do Roncal situa-se no centro do vale com o seu conjunto de casas brasonadas de pedra negra superpostas em inclinada encosta que coroa a igreja, a qual bem poderia servir de fortaleza.
Coroando esta última parte, abre-se diante de nós a visão da outra vertente. Poucos espetáculos mais impressionantes, creio eu, pode oferecer a natureza ao espectador, porque talvez em nenhuma parte se tenha mais vivamente a estranha sensação de se encontrar a cavalo entre dois mundos.
Muito bonito! Esta correlação — tipo humano, pessoa, paisagem e produção — dá o unum e está no cerne da noção de sociedade orgânica pela seguinte razão: há alguma coisa em cada ser existente ali que tende a formar esse unum com todo o resto. Por exemplo, as cabras ou as ovelhas do lugar certamente se diferenciam das de outros lugares, por umas tantas características físicas, mas que têm relação com a forma da mata, do monte, com o feitio do nariz do sujeito que cria a cabra, e com os desenhos da manta que sua esposa tece para ele nas noites de inverno.
Região, uma criatura de Deus
Tudo isso é orgânico no sentido de que, por uma misteriosa harmonia ou convergência, faz ressaltar um unum existente ali, jorrado do fundo de cada ser. Isso não vem de nenhum plano pré-concebido; vem de tudo. É alguma coisa que, suponho eu, esteja no desígnio de Deus e não tem nada de criado pelo ser humano. O homem conhece, percebe e se adapta, e adaptando-se, acentua ainda mais.
…uma organicidade da qual seja tirada a luta é uma organicidade que amoleceu e se perdeu.
Alguém dirá: “Isso aí é o vento tal que bate em tal lugar e faz com que a lã de tal carneiro seja não sei o quê; e depois a água tem tais sais e por isso dá uma cor ferruginosa ao focinho dos animais.”
Essas explicações podem até ser verdadeiras e à primeira vista nos desapontam porque, se tudo se explica assim, o que isso tem de orgânico?
Orgânico porque essas causas profundas, científicas — que, por vezes, não passam de meras hipóteses —, se reuniram ali para produzir aquilo por um desígnio de Deus. Logo, chegar-se-ia à conclusão de que a região é uma criatura de Deus, num sentido especial da palavra. Assim como Deus criou o universo, Ele criou os microuniversos que o compõem. E cada um deles tem uma espécie de natureza própria distinta do conjunto do país, como a espécie se distingue do gênero, dando o sabor orgânico da regionalidade.
As velocidades excessivas são antiorgânicas
Tudo isso, as comunicações vertiginosamente rápidas vão destruindo. Por exemplo, uma pessoa que viaja em seu veículo numa grande autoestrada tem de percorrê-la numa velocidade rápida que não lhe dá tempo sequer de perceber essas diferenças. Assim, fica-lhe na mente não aquilo que Deus criou, mas uma confusão de impressões diversas.
Acho que isto é muito importante para a definição de organicidade, na medida em que esta seja um sistema de distribuição das forças, energias e predicados do universo. O problema não é correr, passar logo, mas fazer com que essa organicidade tenha as condições ideais para produzir seus efeitos.
Então, a intervenção do homem não se dá de maneira a que ele dirija a organicidade, mas é esta que o dirige. Ele deve procurar ver para onde a organicidade se move e facilitar-lhe a própria expansão, porém sem suprimir as lutas contra o que ela precisa derrubar no caminho. Porque uma organicidade da qual seja tirada a luta é uma organicidade que amoleceu e se perdeu.
É preciso ter um sumo respeito com isso. Seria como se um decorador recebesse um palácio para decorar. Ele deveria ser sumamente respeitoso da arquitetura do palácio, até para colocar ali um vasinho, uma bonbonnière. Porque tudo tem que se adaptar e estar em jogo com a ambientação.
Assim deve agir o indivíduo com uma mentalidade orgânica.
Eu acho que se deveria sustentar que as velocidades excessivas, quando tornadas habituais, geram doenças, desequilíbrios mentais, etc. É antiorgânico. Na correlação entre as coisas há algo por onde essa antiorganicidade é malfazeja.
Exemplo de um funesto efeito da revolução industrial
Recordo-me de que, certa vez, o trem no qual eu viajava pelo interior do Brasil parou no meio de uma planície com um tipo de vegetação chamada capim gordura. Gosto muito dessa vegetação que tem um cheiro agradável. Percebi que a locomotiva começou a resfolegar aquela como que respiração de inferno, e soltar aquela fumaça quente por cima do capim gordura. E este ia amolecendo, vilipendiado, enxotado e — desculpem-me a palavra — escarrado pela locomotiva.
Em certo momento, depois de ter escangalhado aquilo tudo, o trem emite um barulho de ferragem que começa a se mexer, soa um apito que dilacera a paz dos ares, e a locomotiva se põe vitoriosamente a caminho. Quem fica do lado do capim gordura amaldiçoa a locomotiva, vê que o atingido está perdido e tem a impressão de ser inútil qualquer reação contra a revolução industrial.
Atualmente a locomotiva é elétrica, silenciosa, e parece não destruir nada disso. Entretanto, esses deslocamentos rapidíssimos de massas colossais, tornando-se frequentes, perturbam alguma coisa no equilíbrio energético da natureza. Mas será verdade? Seria preciso fazer estudos científicos para comprová-lo.
Se eu tivesse que imaginar nas estradas do Vale do Roncal passar um automóvel Ford bigode, dos anos vinte, todo escangalhado e velhote, eu ainda ficaria menos insultado do que ver passar uma Mercedes Benz fantástica, a duzentos por hora, e dentro pessoas discutindo negócios, sem sequer olhar para o panorama.
Quando se informava com entusiasmo a Dona Lucilia a respeito de descobertas modernas, ela, muito séria, afável, bondosa, dizia: “Ah é, é?”. Mas esse “ah é, é?”, embora não polêmico, era tão amortecedor que ficava entendido que a questão tinha também algum outro lado a ser considerado…
Essa atitude de mamãe, por exemplo, foi um fator que contribuiu muito para me pôr de sobreaviso contra a revolução industrial, quando eu era menino. Eu pensava: “A ordem comporta que se seja como ela, e há em toda essa história um erro que eu ainda vou descobrir qual seja.”
(Extraído de conferência de 29/4/1993)