A perfeição do relacionamento humano está profundamente condicionada à capacidade que as almas tenham de transcender à fruição meramente material e elevar-se a uma esfera metafísica e sobrenatural.
O maravilhoso na ordem temporal tem como desfecho a tendência para o Céu empíreo.
Deleitar-se com os bens temporais à procura do absoluto é um ato de natureza espiritual
Normalmente, para o comum dos homens — não para um com vocação especial —, o maravilhoso, o religioso, não podem ser vistos a não ser numa orientação análoga com o temporal. Portanto, o grande comprazimento com a coisa temporal não se confunde com o ato de volúpia, mas é um ato de natureza espiritual quando se procura nele o absoluto. Toda a teoria da procura do absoluto em função das coisas temporais é o que leva ao Céu empíreo. Porque no Céu empíreo a coisa sensível é dada ao homem para ajudar a sua integração na visão beatífica.
Em mim, a problemática metafísica foi modelada pela influência da Fräulein Mathilde, porque um mundo de coisas da mentalidade, da educação das crianças alemãs é embebido da ideia de que certas coisas têm valor metafísico. Mas não vão mais adiante e não relacionam este valor metafísico com Deus.
Então, por mil aspectos, minha alma aderia muito a isso. E eu percebia que a procura do absoluto me conduzia à Igreja, me completava como católico e, portanto, eu deveria estimulá-la. Porque dia viria em que as coisas se conectariam. Eu notava a dissonância entre a posição que eu tomava e a de outras pessoas, e percebia com todas as luzes que a atitude delas não podia ser a católica.
Do lado brasileiro, ajudou-me nisto também a vida tranquila e, até certo ponto, regalada existente na São Paulo de meu tempo, onde uma série de deleites era concebida ainda dentro da ordem tradicional, e eu percebia que esses prazeres tinham uma coerência com os princípios católicos e, portanto, a questão não consistia em largar esses deleites retos, mas em ensinar as pessoas a conservá-los.
Um exemplo característico tão frisante, quase infantil: a árvore de Natal. Uma criança muito virtuosa diante de uma árvore de Natal tinha dois caminhos: por penitência, comer coisas de que não gosta e torturar o seu Natal, ou, por outro lado, gozar o seu Natal. Ora, embora compreenda em tese que, a uma alma chamada de modo muito especial, Deus possa exigir o sacrifício do Natal, para mim, teria dado uma asfixia do outro mundo!
O gáudio reto, santo, inocente do Natal me enchia de amor a Deus. E também com uma série de outras coisas, por exemplo, a vida um tanto cerimoniosa que se levava no meu ambiente. Isso dava propriamente em uma vida com bons regalos. Essa teoria do regalo santificante não poderia deixar de desfechar numa teoria do Céu empíreo. Donde durante décadas eu insistir, de um ou de outro modo, sobre o regalo bom santificante. Em certo momento, caiu-me nas mãos esse material sobre o Céu empíreo, do Cornélio a Lápide1.
Duas escolas espirituais diante dos deleites legítimos
Segundo certa escola espiritual, uma pessoa virtuosa, na hora de colher morangos nos bosques, diria: “Ó, fujamos disto! Não vos esqueçais de que hoje é sexta-feira e Nosso Senhor padeceu por nós.” É uma consideração muito santa, muito direita para certo filão de almas. Para outro filão: “Vá pegar morango no bosque, passe pela capela, pela paróquia que está aberta, faça uma Via-Sacra, porque é sexta-feira, Nosso Senhor morreu nesse dia.” Está muito bem.
Eu estou vendo que uma pessoa poderia me dizer desde logo: “Ofereça esse pequeno sacrifício e renuncie a esse regalo, porque isto é grato a Deus.” Eu digo: Desde logo ponho em dúvida o que você diz. Há certos casos em que é, há certos casos em que não é.
Certa vez, uma pessoa me disse: “Você quer passar um dia de virtude? Faça o seguinte: o tempo inteiro quando você quiser esticar as pernas, você cruze; quando quiser cruzá-las, faça o contrário, e assim por diante, o contrário do que você quer. Você à noite terá uma tonelada de méritos.”
Pensei comigo: “Eu não vou desencorajar essa boa alma, mas tenho um abismo de mal-estar e de perplexidade com isso.”
Alternativa em face da fruição e o risco de abandonar a “transesfera”
Quando a pessoa está na fase anterior às provas, o deleite é quase sempre santificante. Entretanto, há um determinado momento na evolução de uma pessoa em que o deleite da coisa pela coisa se diferencia saudavelmente do deleite por causa daquilo que ela significa. Então, por exemplo, o deleite físico de mexer com esta pedra, que adorna minha mesa, e o deleite espiritual de contemplar as ranhuras que há nela diferenciam-se um do outro, mais ou menos como de dentro da haste de uma flor se diferenciam as pétalas.
E, em consequência, começa a aparecer um apego a isto, que já não é concomitante com o deleite espiritual, mas é autônomo. E que nasce de uma profundeza da alma, como o deleite espiritual nasce também.
Vamos dizer, banho de mar. Ele pode dar toda espécie de deleites físicos e espirituais ao mesmo tempo. Mas há um momento em que o deleite puramente físico do banho de mar, da respiração cutânea, enfim, do movimento, da aventura nas ondas, do pulchrum do mar se apresentam já eles mesmos diferenciados daquilo que seria o transesférico2, que a atenção ora vai para uma coisa, ora vai para outra. Quando isto se dá, o amor pelo transesférico começa a ser provado, porque a alma não pode prestar atenção em duas coisas ao mesmo tempo. Ela não pode pensar como seria o mar transesférico e fruir com toda a alma daquele mar concreto. E a provação começa.
Dá-se uma espécie de alternativa onde ainda não entra diretamente, muito de imediato, a tentação para o mal, mas ela está a um milímetro daí. A pessoa pode ser mais arrastada pela fruição do mar, enquanto mar sensível, do que pelo mar transesférico, pelo simples fato de que essa fruição do mar sensível tem qualquer coisa de absoluto, de imperativo, de arrebatador, que é uma coisa tremenda. E com isso ela é colocada diante de uma opção: “Qual das duas é melhor?”
Para a maior parte das pessoas, essa escolha se passa nos lindes da semiconsciência: a pessoa vê bem pela inteligência que um é mais nobre, que corresponde mais à sua estatura inteira, que o outro apresenta uma fruição da parte. De um modo mais ou menos implícito, é positivo que vê.
A alma pode começar a optar por um dos dois polos e, portanto, entrar pelo caminho de Esaú ou de Jacó. Quando a alma está nesse estado, a parte fruitiva baixa começa a se deformar, e constituem-se ansiedades, apegos, tormentos, reações próprias do pavor de perder aquele prazer. E o metafísico começa a empalidecer porque não concorre em nada, ou em muito pouco; aquela fruição lota o horizonte. Aí entra uma espécie de opção que vai pela vida afora.
Se uma pessoa, diante dessa fruição, disser: “Eu não te quero assim, vou te conter, limitar-te, reduzir-te à devida proporção e, se for o caso, eu te elimino, porque não quero ser infiel.” Então há um sacrifício que vale muito mais do que o amor inocente não sacrificado dos primeiros anos. Entra a Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porém, se a pessoa tiver uma fruição desvinculada disso, ela erra completamente.
Do amor a uma ordem superior nasce o perfeito relacionamento entre os homens
Esses problemas da vida relacionam-se cronologicamente segundo uma maturação prevista pela Providência: na criança, com o amor primeiro não provado, ela não tem dificuldades de relacionamento com os seus, e aquilo é manso, “mar azul.” A mãe, o pai, os irmãos, a parentela toda, aquilo tudo é uma maravilha. Depois começam a aparecer as diferenças e as decepções, como também os atos de justiça em relação a esses e àqueles, e o mundo familiar vai se rasgando.
Há rasgões externos como internos, apresentam-se os deveres que a pessoa segue ou não, juntamente com várias provações simultâneas, e a puberdade, cedo ou tarde, irrompe dentro disto e a pessoa vai entrando na batalha.
Se imaginarmos almas numa posição inteiramente reta a respeito deste assunto, as relações entre elas serão fundamentalmente diferentes. Porque essas almas amam principalmente a ordem transesférica, mística, sobrenatural para a qual elas vivem, e por causa disso o relacionamento com outras almas análogas em função desta ordem é reputado por elas um bem mais precioso do que o trato baseado em outros valores.
Tomemos como exemplo dois bons irmãos que se estimam, se prezam e têm relações de alma completamente corretas neste ponto. Aparece entre eles uma questão de divisão de uma herança paterna. Ela se faz amistosamente, sem nenhuma dificuldade, porque, por esta sua retidão neste patamar superior, eles são parecidos e, portanto, têm facilidade de se entender e fazer a justa divisão. Mas também porque se um notar uma pequena fraqueza ou um pequeno apego que possa prejudicar o superior relacionamento entre ambos, o irmão bom facilmente desiste da vantagem material para conservar um convívio mais elevado.
O episódio bíblico ocorrido com Abrão e Ló é característico. Abrão diz: “Aqui estão as terras, pega a parte que tu queres, eu fico com a outra.”3 Esta é a atitude de uma pessoa que preza o relacionamento bom, muito mais do que a terra.
Mas se a pessoa cedeu ao desejo do bem material, inferior, da fruição não metafísica, não religiosa, facilmente entra em briga. Porque quando não apreciam aquele bom relacionamento e o viverem juntos para uma esfera mais alta, dividem-se miseravelmente a respeito de ninharias. Seriam capazes até de fazer o seguinte: “Tal ponto não fica nem teu nem meu. Construamos ali um altar, um templo, mas teu não fica!”
Os vínculos na Cristandade medieval eram baseados no amor ao transcendente
Assim, todas as relações humanas de ordem política, social, familiar, econômica são completamente diferentes num mundo onde haja esta boa ordenação. Do ponto de vista humano, formas de governo, estruturas, leis, simplesmente não pegam, na medida em que esse relacionamento superior não exista.
A lealdade, por exemplo, provém propriamente do fato de alguém ter verazmente em relação a outrem essa disposição de alma. Tê-la e saber torná-la notória, isto é a lealdade que permite funcionarem direito vínculos como os da sociedade feudal.
O ponto de partida está em que as almas não sejam apegadas às coisas de modo fruitivo e amem o transcendente.
Esse amor ao transcendente, a Cristandade medieval conheceu a fundo, embora não soubesse explicar. Todos os vínculos da ordem social eram vínculos de amor baseados nesse vínculo das almas pelo lado superior.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 11/3/1982)
1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).
2) Relativo a “transesfera”: termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.
3) Cf. Gn 13, 8-9.