Embora tenha proporcionado à França esplendor e elegância, Luís XIV introduziu no país a frivolidade e a leviandade, as quais se desenvolveram no tempo de Luís XV e passaram a ser quase tóxicos, que prepararam a Revolução Francesa. O único modo de consertar isso era abrir-se à influência do Sagrado Coração de Jesus, que teria posto a Europa nos seus trilhos, evitado a Revolução e dado início a uma Contra-Revolução admirável.
Quem lê a vida de Santa Margarida Maria Alacoque fica com a impressão de que o relacionamento do Sagrado Coração de Jesus com Luís XIV não foi publicado por inteiro. Mas o Sagrado Coração de Jesus fez uma tentativa comovedora de converter o Rei da França. O que teria acontecido se ele se tivesse aberto à graça, convertido inteiramente e ficado um santo?
A grandeza de São Luís IX e a de Luís XIV
Luís XIV já estava com Versailles construída, a corte montada, a etiqueta feita e com o aparato resplandecente dentro do mundo: ele era o “Rei-Sol”! O que teria acontecido com esse “sol” se ele se abrisse para um outro “Sol” maior, que eram os dardos de amor do Sagrado Coração de Jesus na alma dele? Com essa grandeza, o que teria acontecido?
O que há em Luís XIV diferente de São Luís é o seguinte: São Luís tinha uma verdadeira grandeza no seu aspecto físico — não era dos homens mais altos do seu tempo, mas um varão de alta estatura segundo os padrões de sua época; além disso, muito bem apresentado, possuía um caráter quase de herói mítico. Ele poderia ser quase uma figura wagneriana como apresentação física, sem ser propriamente um Tarzan. Mas era um homem com aquela força francesa, que é elástica, destra, não esmaga, mas ágil e sabe ferir.
De outro lado, São Luís continuamente foi acrescentando alguma coisa à grandeza dos seus antepassados, de maneira que talvez tenha sido, como manifestação de esplendor, em relação aos predecessores, aquele que possuiu mais esplendor. Não digo dos sucessores, nem de todos os anteriores.
Há uma coisa que contrasta com Luís XIV e chama a atenção. São Luís era grande por uma espécie de naturalidade; sua grandeza era um fato, como pode ser num outro a saúde. Não havia uma programação de ser tão grande quanto possível em todas as direções, mas o desejo de ser inteiramente o que é, com autenticidade, e com o propósito marcado de deixar ver aquilo que ele é.
Em São Luís não existia nada daquilo de esticado que há em Luís XIV, o qual dá a impressão de que está continuamente levando ao auge a manifestação da sua grandeza, o que é, a meu ver, um lado desagradável da grandeza do “Rei-Sol”.
Outra coisa desagradável é procurar aliar uma espécie de boa apresentação natural, de maneira a fazer admirar-se a si próprio, como homem muito bem apessoado. Consideração esta que parece ter sido inteiramente alheia a São Luís, o qual não procurava enfeitar-se, fazer-se bonito, mas sim adornar-se como um rei deve se apresentar.
Se fica mais bonito uma coroa em que a base é mais alta ou menos alta; e se tal cor de tal pedra preciosa para pôr na coroa vai bem com a cor dos olhos, etc., são considerações que eu acho que não passaram pela mente de São Luís. Com Luís XIV não garanto nada! Ele pode ter feito combinações nem sei de que gênero! Cor da peruca para combinar com a pele, etc.
Moedas guardadas como medalhas
E, coisa desagradável, vê-se em Luís XIV a fruição que ele tem da sua própria grandeza, sem nenhum medo de se deixar inebriar por ela. Não se percebe ascese nesse rei. Ele bebia o líquido delicioso da própria grandeza a largos haustos, sem preocupação.
E em São Luís se nota a ascese procurada, o medo humilde da fraqueza humana que busca se embriagar com a glória, o evitar aparecer. Isso fazia com que ele sempre pudesse ornar-se e manifestar um tanto mais a grandeza que possuía, mas nunca se inebriava com a delícia do papel que estava realizando. Pavão fazendo roda ele não era. Em Luís XIV existe muito do pavão fazendo roda.
Creio que em São Luís a santidade dava um quilate à grandeza dele que a de Luís XIV não tinha. E que era exatamente uma espécie de sacralidade maior do que todos os tufos, perucas, plumas e enfeites de Luís XIV. E que tudo muito bem considerado fazia de São Luís, no fundo, um rei superior. Mas é por uma maior participação de Deus.
Há um fato tocante: das antigas moedas francesas, as que têm menos valor na Europa são as do tempo de São Luís IX. Porque o povo as guardava como medalhas e, assim, tornaram-se muito comuns. Isso corresponde a um verdadeiro plebiscito.
Pode-se imaginar a quantidade de moedas que Luís XIV deve ter mandado cunhar com sua efígie. Pois bem, foram fundidas. E as de São Luís guardadas como medalhas pelo camponês pobre que às vezes passava necessidade, não comprava um remédio ou um pão, mas conservava a moeda do Rei santo consigo. Existe aí uma coisa qualquer que não sei exprimir bem, mas que toca o coração: hic taceat omnis língua!1
Qual é a primeira nação da Europa?
Não obstante, em defesa de Luís XIV poderíamos considerar o seguinte.
As comunicações entre os povos europeus foram se tornando cada vez mais fáceis e frequentes, à medida que o banditismo — legado ainda dos bárbaros que se estendeu mais ou menos até o fim da Idade Média — ia se tornando mais raro nas estradas.
Com a diminuição dos riscos, aumentou muito a circulação de pessoas entre os países e, consequentemente, foi-se aprimorando o sistema de hotéis, dando origem a algo à maneira de turismo.
O intercâmbio das nações tornou-se mais frequente, trazendo consigo a comparação e a pergunta pontiaguda: Qual é a primeira nação da Europa?
Naturalmente estabeleceu-se entre os países uma rivalidade cuja noção o homem pragmático de hoje não tem mais, e que era a seguinte: cada um afirmava a superioridade de um determinado padrão humano, de uma determinada luz de alma, de uma forma de cultura. Houve uma espécie de luta para tomar uma forma de influência, e fazer prevalecer no mundo aquele tipo de perfeições divinas.
De maneira que não era tanto a procura da primazia financeira ou militar, mas a de um certo tipo de alma, que se pareceria com uma luta dos Anjos na presença de Deus.
A Alemanha, nessa época, já possuía uma grandeza militar vista como um traço de alma; não era a supremacia militar, mas a do espírito militar, como uma das componentes do espírito europeu.
Essa luta chegou ao seu auge no tempo em que Luís XIV foi rei. E ele teve o desejo imenso de fazer vencer o charme, a elegância, a glória, a língua e o esplendor franceses.
A cada rei competia tomar parte nessa porfia e levar a grandeza de seu povo ao máximo. A Luís XIV cabia, portanto, a missão providencial de levar o esplendor da França a esse auge. Isso é uma coisa que não se pode discutir.
Então, sentindo-se ele um homem pessoalmente muito dotado, tinha a obrigação de pôr esses dotes a serviço desse papel. Ora, tratando-se de uma porfia, e não de um simples resplandecer — com São Luís IX era um resplandecer, não uma porfia —, compreende-se algo de esticado que havia na obra de Luís XIV.
Ademais, uma porfia muito dura, com rivais difíceis de vencer. Por onde se vê que Luís XIV deitou o corpo numa coisa que tinha um sentido. Ele batalhou pela difusão da cultura francesa, como um rei guerreiro lutaria pela expansão dos exércitos franceses. Quer dizer, ele foi na difusão da cultura o que Napoleão da legenda teria sido na expansão do Império francês sobre o resto da Europa.
Assim, naquilo que apreciei com severidade não desaparece a censura, porque se vê que essa missão ele a exerceu sem virtude; mas se percebe também que se ele tivesse tido virtude, seria de um tom diferente de São Luís.
Em meio ao esplendor e à elegância…
Há um ponto onde se nota particularmente a falta de virtude de Luís XIV. Com o favorecimento das estradas, o cosmopolitismo começava a nascer. E com o cosmopolitismo, a procura de um padrão universal válido igualmente para todos os povos. Vê-se que Luís XIV não teve virtude para compreender que uma Rússia e um Pedro, o Grande, deveriam continuar a ser o que eram, e se aperfeiçoarem naquela linha.
Na sua expansão, o “Rei-Sol” insinuava que aquilo era um padrão universal que todos deviam imitar. Ele considerava que o ser imitado por todos era o auge dessa porfia. Ora, tal porfia não precisava ter esse auge, mas que todos se inspirassem ali para melhorar características próprias, conservando os regionalismos. E Luís XIV quis acabar com os regionalismos nacionais e de fato os eliminou.
Não obstante, no sentido cultural Luís XIV encheu a França da luz dele, e transformou toda a vida meio burguesona da França, de maneira a todo o país ficar luzidio de uma certa luz de Versailles.
Uma coisa característica: no reinado dos Valois havia em Paris o Louvre, com aquela corte muito bonita, mas fora dela uma cidade completamente comum, uma maçaroca de casas com uma ou outra igreja bonita. Não tinha o esplendor de vida que Luís XIV lhe deu, que inspirou nos franceses o desejo de cada um adornar a sua existência com uma beleza, uma distinção, proporcionada a seus meios, fazendo com que a França inteira ficasse uma nação luzidia, solar, que ela não era anteriormente.
As vistas panorâmicas desenhadas de Paris, do tempo dos Valois, representam um casario com muitos restos do pitoresco medieval, mas, de si, era uma montoeira de burgueses. Os nobres moravam em casas um pouco acasteladas, mas feias, sem brilho. Levavam uma vida mais rica do que o plebeu, mas não com o esplendor que depois a existência dos nobres teve.
Luís XIV inaugurou uma coisa na qual a nação inteira se sentiu interpretada e subiu até ele. Foi um regente de orquestra que fez com que o último francês, do último recanto, começasse a tocar seu instrumento à maneira do rei, como se ele dissesse aos franceses: “França sou eu, França sois vós. Entrai na minha orquestra e a França inteira fará ouvir seu som no mundo!” E foi o que aconteceu. Resultado: a atração enorme de gente indo para a França, e a expansão desse brilho por todo o orbe.
…introduz-se a frivolidade
Por outro lado, Luís XIV inseriu nesse mundo de elegâncias a frivolidade.
O Príncipe de Krue, um grande militar da corte austríaca que frequentava muito a corte francesa e era famoso pelo seu espírito, deixou memórias nas quais ele conta que, em sua juventude, quando entrava um grande marechal num salão, era o ornato do ambiente e a conversa toda se acendia. Mas, estando envelhecido, quando ele entrava era o funeral do salão. Porque ele trazia consigo a glória, a seriedade, a força. E a frivolidade detestava isso. Segundo ele, tinha iniciado o reino das mulheres na França. Tudo na França começou a tomar um caráter feminino.
Sem dúvida, o “Rei-Sol” colocou a força e a grandeza na ordem do dia, mas uma força e uma grandeza tão brilhantes que não se podia concebê-las no infortúnio, na dor, na tristeza, na seriedade. E com isso entrou na França uma identificação entre charme leve, frivolidade e cultura, que intoxicou os reinados seguintes.
Isso tudo começou do século XVII para o XVIII. Luís XIV pôs as premissas, e no tempo de Luís XV houve seu desenvolvimento normal. Preparava-se a Revolução Francesa. Então, a frivolidade, a leviandade francesa, uma porção de coisas encantadoras seriam quase uns tóxicos!
Como consertar isso? De que modo um pregador poderia dizer essas coisas ao rei, e fazer com que ele as entendesse? Há muitas coisas aqui que nenhum homem descreve. Mas uma influência do Sagrado Coração de Jesus era o único fato que poderia acertar isso, colocaria a Europa nos seus trilhos e evitaria a Revolução Francesa. Teria começado uma Contra-Revolução admirável!
Situação da Europa: uma coisa de cortar o coração!
Poderíamos imaginá-lo com a majestade do Sagrado Coração de Jesus. Mas, então, de um rei também sofredor, penitente, expiante dos seus próprios pecados em público, e fazendo penitência descalço, como fez São Luís! Este teve compunção dos pecados que não cometeu; e Luís XIV não se arrependeu dos pecados que praticou…
Então, na Sexta-Feira Santa, a magnificência que teria sido ver Luís XIV carregar uma cruz às costas, para pedir perdão de sua péssima vida e, diante do povo, penitenciar-se. Introduzir esse ornamento incomparável, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a tristeza e até a derrota dentro da vida dele.
Creio que, até do ponto de vista arquitetônico, se entrasse a fundo uma geminação daquilo que houve com o senso da cruz, teria saído qualquer coisa como nós não imaginamos, mas podemos ter uma ideia comparando o lado de fora de Versailles com a capela. A capela de Versailles não é muito homogênea com o restante do palácio. Ela é muito mais bonita do que Versailles.
Aquele teto ligeiramente gótico da capela de Versailles, com uma nota à qual não se pode recusar certa impressão de tristeza, de doçura régia, tranquila, contemplativa, algo que se faz em torno do Sacrifício da Cruz que se renova sempre, diante de um rei que sofre aflições, de uma rainha que é uma infeliz, isso teria acabado marcando Versailles. O próprio Luís XIV deveria fazer isso, e o que se passava na alma dele depois transporia para fora; era preciso tê-lo conhecido penitente, para poder imaginar o tônus cultural que daí sairia.
Ele daria o tônus, até sem querer. Afinal de contas, é o espetáculo de um homem a quem a Providência incumbiu a tarefa de — por uma ação de presença, e por vê-lo viver nesta grande e mundial cena humana que era a corte dele — dar o curso ao pensamento de todo um continente. Mais do que um filósofo, um maître-à-penser na linha Ambientes e Costumes, o que eu considero muito mais importante do que um maître-à-penser na linha puramente racional.
Visitando a Europa nesta minha última viagem, comecei a conferir todas essas visões, e nasceu uma grande tristeza.
Por exemplo, a Praça de Siena. Eu desejei a vida inteira vê-la. Cheguei numa ocasião em que eram relativamente poucos os turistas, porque já estávamos no começo do outono e essa gente quer saber do verão. Apesar disso, havia muito mais turista do que eu quereria. O resultado é que a Praça de Siena me dava a impressão de invadida por uma ralé, não digo intelectual nem social, mas como estofo de espírito. Não havia um espírito elevado ali.
Quando fomos visitar o Palácio Municipal por dentro, que é muito bonito. O tempo inteiro eu pensava: se Luís XIV e seus sucessores tivessem sido fiéis, se a Europa tivesse sido católica, o que se teria irradiado deste Palácio com suas ogivas, sua capela, seu salão, suas pinturas… O que foi cortado na obra de Deus!
Então, a flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo na Europa é uma coisa de cortar o coração! Como é de cortar o coração ver a Torre de Belém vazia, um esqueleto do qual saiu toda a carne, e colocada ali à beira do Tejo. Lindo esqueleto, mas um esqueleto: aquilo está morto.
(Extraído de conferência de 27/4/1989)
1) Do latim: Aqui toda língua emudeça.