A coragem e firmeza de Santo Aretas diante do martírio fazem reluzir mais uma das maravilhas produzidas pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana nos povos que se põem sob seu maternal domínio.
No livro do Frei José Pereira de Santana, “Os dois Atlantes da Etiópia”, encontramos alguns dados biográficos de Santo Aretas. Trata-se de uma prédica de Santo Aretas aos católicos da cidade de Najran, na Arábia, antes de ser martirizado pelo tirano Dun’an.
Invectiva cheia de grandeza
Ouvi-me, inumano Rei, doutores da Sinagoga, apóstatas franitas, bárbaros confederados, cortesãos ilustres e esclarecidos habitantes de Najran.
Isto, sim, é saber dirigir uma apóstrofe!
“Apóstatas” é uma palavra de alta expressão. “Fulano é um apóstata!” Todo o horror da apostasia se descarrega nestes dois “tas”: “após-ta-ta”. Tem-se a impressão de que é uma coisa que caiu, que rola em dois “tas” e que se desfaz.
Um “apóstata franita” dá a impressão de ser alguém que se deu a uma das heresias mais infectas, aliciantes e, ao mesmo tempo, mais digna de rejeição.
“Bárbaros confederados” é também uma forma de ultraje; soa como se fossem bárbaros requintados, de tal maneira ligados a outros bárbaros que formam uma coesão de barbárie, uma espécie de ultrabarbárie, pior do que todas as barbáries.
Então, os doutores da Sinagoga, os apóstatas franitas e os bárbaros confederados, todos juntos num conglomerado imundo, nefando e agressivo contra o Santo que está sozinho. Vai ser martirizado, mas, antes de morrer, diz o que quer. Não falta grandeza a essa introdução.
Cântico de coragem, transbordante de Fé
E continua:
Companheiros, amigos, parentes e outros quaisquer dos circunstantes, sejais nobres ou plebeus, ou católicos ou infiéis, ouvi-me todos, vos suplico, pois com todos falo. Bem vos pudera dizer que canto, se observardes que, por artifício dos anos, me converti em cisne nacional, conservada na cabeça a candura, no coração, sem temor de morte, a alegria.
Há uma lenda que diz que o cisne, quando vai morrer, canta. É o seu último canto, de uma beleza maviosa. A ideia é muito bonita. Imaginar um cisne que, antes de morrer, emite um canto suavíssimo em que vai toda a “cisnicidade” dele transformada em sons que batem na água, repercutem pelas árvores e morrem no céu. É uma coisa também à qual não falta poesia.
Este Santo diz que ele é como um cisne, que, antes de ser martirizado, dá o seu último canto. Mas é uma beleza! É preciso ser oriental para saber fazer isso.
Diz o seguinte:
Eu me converti em cisne nacional pois conservei na cabeça a candura, no coração, a alegria, embora não tenha temor da morte.
Ele vai morrer, mas é cândido, puro, é alvinitente na sua fronte, nas suas ideias e na sua alma; ele é alegre, apesar de que vai morrer. Com esta alegria e com esta candura ele vai deitar o seu canto de cisne, e esse canto é bom que todos ouçam.
Falo primeiramente contigo, ó Rei. Mais que as feras, como já te lancei em rosto, és desumano. Respondendo às cem razões em que me acusas queixoso, condenas injusto: verdade é que sou, como dizes, a total causa, motor e única cabeça da firmeza dos najranenses, mas não dos seus padecidos escravos.
Desprezaram o meu conselho sem advertirem que, em proporção das minhas cãs, era o mais maduro. Perigaram, pois, nesse desprezo e naquela resistência se perderam. O que sempre a todos persuadi foi que perseverassem confiantes na oposição, pois, não obstante serem tuas forças superiores às nossas, mais fortes que as tuas armas eram os nossos muros, e mais inconquistáveis que estes, os nossos corações.
Com que poder saiu, em outro tempo, a pelejar contra tantos milhares de madianitas um Gedeão? Pois se este, porque o Céu amparava, pôde vencer com tão poucos a tantos soldados, que razão havia para que não triunfassem também os nossos do teu poder, tendo certa, do Senhor do Céu, a proteção e mais vigorosas forças do que as daquele príncipe?
Não imagines que és do castigo que experimentamos o autor, senão um instrumento; por tuas mãos nos castiga Deus a temeridade de crermos que seria fiel às criaturas, quem, além de ser traidor do seu soberano, era mais que laivoso rebelde ao seu Criador.
Chama-me, ó tirano, zelador da honra de Deus. A este Senhor justamente invoco contra ti, vendo que desprezaste a sua lei, destruíste os seus templos, profanaste os seus altares, extinguiste, finalmente, os seus sacerdotes. Sabe, pois, que eu, à imitação do mesmo profeta que a tantos reis idólatras vaticinou a morte, te asseguro que, brevemente, serás desta púrpura despojado e deposto da monarquia.
De sorte que, sem ficar dos teus domínios parte alguma isenta, a todos sujeitará Deus ao etiópico império de Elesbão. Este insigne varão e poderoso príncipe será, da nossa derrotada Cristandade o restaurador, prevalecendo-te de tal modo em desagravo de Jesus Cristo contra ti que, por Ele, verá admirada Najran suas igrejas novamente recuperadas e a ti, como soberbo edifício, sem que jamais seja reedificado, aos seus pés caído.
Firmeza e resolução
Santo Aretas, depois de dizer que iria deitar o canto do cisne, diz ao Rei: “Tu, ó Rei, és pior do que as feras e, entretanto, tu tens razão quando dizes que eu sou a causa, motor e única cabeça da firmeza e resolução com que os najranenses lutam contra ti.”
Percebe-se, pelo texto, que o Rei quis tirar a Fé a esses najranenses e que eles resistiram. O Rei, então, prendeu este Santo porque ele era a cabeça da resistência. Ele diz ao Rei, como homem que não tem medo de ser condenado: “De fato, eu sou a cabeça da resistência.”
Percebe-se que os tais najranenses fizeram uma resistência excessiva. O trecho não é inteiramente claro, mas dá a impressão de que eles foram temerários na resistência e padeceram muito, e Santo Aretas, então, disse a eles que não deviam resistir tanto. Por causa disto, então, o Rei o acusava, neste ponto, de uma resistência excessiva da qual ele não era o culpado. Ele, de fato, era a favor da resistência, mas de uma resistência pacífica, de uma resistência de caráter ideológico, enquanto que os najranenses tinham feito uma resistência militar.
No entanto, ele não deixa de louvar a coragem dos najranenses com uma expressão muito bonita: que as armas dele, Rei, eram menos fortes do que os muros dos najranenses, e os corações deles ainda eram mais fortes do que esses muros. Portanto, não havia razão para eles terem perdido essa batalha, mas perderam por causa de um castigo que eles mereciam e que os fez ser derrotados pelo Rei ímpio, porque eles tinham confiado, durante algum tempo, nesse Rei. Ora, num herege não pode ser depositada confiança. Um homem que está rompido com Deus é ímpio e nele não se pode depositar nenhuma espécie de confiança. O fato de eles terem depositado confiança, durante algum tempo, no Rei — isto se refere a algum episódio anterior, que também não se conhece —, este fato explica que eles tenham, então, sido derrotados.
“Ó Rei — diz Santo Aretas —, não imagineis, absolutamente, que vencestes.” Foi Deus Quem venceu pela mão dele, para castigar o povo. Mas esse povo que tinha sido condenado por Deus por causa disso, ia ser, por sua vez, reedificado. Viria um imperador da Etiópia, Santo Elesbão, e haveria de reconstruir toda a Cristandade na Etiópia e derrubar o Rei Eretas de maneira que, de todo o seu poder, não ficaria nada.
A misteriosa economia de Deus
Vemos, então, a economia de Deus. Havia um Rei ímpio, Eretas; havia um povo mole e ordinário, mas ainda católico. Deus quis punir a moleza desse povo católico, que consentia, provavelmente, em ter um Rei ímpio, e então permitiu que esse Rei perseguisse o povo católico. Ele se serviu do ímpio como açoite para flagelar o povo mole. “Se fosses frio ou quente Eu te aceitaria” — diz a Escritura —, “mas como és morno, começo a vomitar-te de minha boca” (Ap 3, 15-16).
Esse povo morno foi açoitado por Deus, pela mão do Rei ímpio. Mas o Rei ímpio fez isto porque Deus permitiu e não porque Deus mandou. Por causa disso, ele pecou, e Deus tomou um varão de sua destra, Santo Elesbão, e conduziu-o vitoriosamente para a derrota do Rei ímpio. Com isso ficaram naturalmente derrotados os doutores da Sinagoga, os apóstatas franitas e outras abominações do gênero, e, durante algum tempo, se reconstruiu a Cristandade naquelas regiões.
Onde a Igreja entra, tudo floresce
Eu não posso deixar, ao dar este fato, de chamar a atenção para a maravilhosa beleza da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Por toda parte onde ela floresce, desde que os homens correspondam à influência dela, nasce tudo quanto há de melhor, em toda forma, em todo grau, em todo jeito. É questão só de os homens corresponderem à influência e à ação dela.
A Etiópia, que depois passou séculos cortada da Cristandade por falta de comunicações, caiu na miserável heresia monofisita, mas houve tempo em que foi uma nação verdadeiramente católica. Apareceram esplendores de Fé católica na Etiópia como em qualquer outro país.
Esse episódio de Santo Aretas seria digno, por exemplo, da história religiosa da Espanha, nas suas melhores épocas. Ou seja, não é a Espanha que é magnífica, não é a Etiópia que é magnífica, como não é o Brasil, nem a Argentina, nem o Chile, nem o Uruguai, nem nada disso. O que é magnífica é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Onde a Igreja entra, todas as maravilhas de todo gênero, de todos os modos, de todas as espécies se multiplicam do modo mais magnífico, desde que os homens digam “amém”, digam “sim” à influência da Igreja.
Entretanto, desde que a Igreja saia, tudo decai, tudo rola por terra, tudo dá em “apóstatas franitas”, em reis que não prestam, em tudo o mais. A verdadeira fonte de toda grandeza, de toda beleza, de todo bem, de toda bondade, de toda santidade, de toda ordem, de toda cultura, é a Igreja Católica. Fora da Igreja Católica as coisas podem nascer, formar-se um pouquinho, mas ou estagnam ou decaem.
Por exemplo, a cultura da China, do Egito, culturas, afinal de contas, extraordinárias. Levantaram-se, chegaram a um certo teto, não progrediram. É a imobilidade do Oriente parado e por dentro apodrecendo.
Tomemos a cultura católica. Ela se levanta como um chafariz no meio das águas estagnadas, só ela é água límpida; e mesmo depois da Fé católica ter sido praticamente extirpada do Ocidente pela Revolução, o Ocidente, naquilo em que ainda progride, floresce na velocidade adquirida pelo fato ter havido a Fé católica. Razão pela qual nós devemos compreender que amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor de Deus, isto importa em amar a Santa Igreja Católica Apostólica Romana sobre todas as coisas, e amar o nosso próximo na medida em que ele está unido à Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Graça de admirar somente o que é segundo Deus
Em conversas particulares, eu inculco tantas vezes a necessidade da graça da admiração única que é, a meu ver, um elemento integrante da graça do amor de Deus. É a graça de só admirar aquilo que é segundo Deus. Esta graça da admiração única em relação a Deus, na ordem concreta dos fatos, dá na admiração única à Igreja Católica. Tudo quanto é tocado pela Igreja e recebe a influência dela é admirável; tudo quanto está fora disso, quando merece admiração, merece com tantas reservas, com tantas restrições, com tantas condições, que praticamente não dá em nada.
Então compreende-se esse enlevo, essa paixão que se deve ter pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana, verdadeira pátria de nossas almas, verdadeira prefigura da Igreja gloriosa, à qual nós devemos pertencer no Céu.
(Extraído de conferência de 24/10/1967)