Sempre cheia de desvelo por aqueles que a rodeavam, Dona Lucilia constituía um exemplo vivo da confiança em Deus: caridade no relacionamento, ânimo nos momentos difíceis e alegria até mesmo diante de pequenos benefícios.

Dona Lucilia era muito unida à sua irmã mais moça. Mas ela se dava muito bem também com a outra que, sobretudo durante certo período, ia muito a nossa casa, apesar de às vezes discutirem.

Em defesa dos princípios

Uma vez eu estava trabalhando no meu escritório e percebi que a criada tinha levado uma bandeja com lanche para Dona Lucilia e sua irmã mais próxima, numa sala onde mamãe costumava ficar. Eu ouvia de longe a conversa, mas não prestava atenção porque estava preparando uma aula para a Faculdade de Direito.

Em certo momento, percebi que as duas elevaram a voz. A conversa havia tomado o tom de uma briga. Isso em mamãe era raríssimo, mas raríssimo! Acho que foi fato único na vida.

Parei de trabalhar para ver um pouco o que se passava, porque conforme fosse eu interviria. Mas eu não ia perder tempo para intervir se fosse uma briguinha que se resolvesse de qualquer maneira.

Percebi que eram dois assuntos que voltavam alternativamente à discussão: a irmã dela era meio nazista e divorcista; mamãe antidivorcista e antinazista e, por causa disso, acendeu-se uma discussão. As duas estavam tão acharnées que eu me levantei e fui até elas. Perguntei:

— Mas o que é? Que propósito tem isso?

Disse em tom de brincadeira. As duas entenderam e a coisa se desfez.

Nessa ocasião vi que mamãe julgou os princípios dela contundidos e negados e não estava eu perto para vindicá-los. Aí ela entrou em cena e foi categórica: discutiu com argumentos. A coisa foi ao ponto de uma briga, e de uma briga séria. Não entrava amor-próprio, mas o senso de defesa dos princípios. Eu nunca a tinha visto tomar uma atitude assim, porque quando eu estava perto já ia de espada ou lança em riste por cima da pessoa, e ela deixava. Mas eu não estando perto a coisa foi assim.

Eu disse a elas que não tratassem mais do tema, pois seria melhor. Duas senhoras idosas, que propósito tinha brigar por causa disso? Era melhor não brigar. Nunca mais trataram do assunto entre si e acabou-se.

Arquivo Revista
Escritório de Dr. Plinio em sua residência, na Rua Alagoas, São Paulo

Desvelo para com a irmã mais nova

A outra irmã, treze anos mais moça que ela, tinha nascido com um defeito na coluna e minha mãe fazia-lhe todos os curativos e exercícios que os médicos daquele tempo queriam que as pessoas fizessem para se corrigir daquele mal.

Foi minha mãe quem tomou os mil cuidados recomendados: levantava cedo, mandava chamar uma massagista para fazer todos os dias flexões, depois ela levava a irmã para o jardim, ainda com o frio da manhã — os médicos queriam, não sei se com muita razão, que ela apanhasse o ar da manhã antes de esquentar. Minha mãe era friorenta, mas ia para o jardim, passeava com a menina. E tudo isto com tanta doçura que minha tia tinha verdadeira loucura por ela e conservou isso até o fim da vida.

Aconteceu, porém, que com a vida muito atarefada, minha tia morando muito longe, enfim, uma série de circunstâncias, num período de alguns anos antes de minha tia morrer, ela frequentou muito menos a nossa casa. Nessa época atacou-lhe o mal de Parkinson, que é um mal aflitivo. A pessoa começa tremer e pode acabar em cadeira de rodas, não conseguindo nem falar.

Nos últimos anos minha tia quase não podia andar. Minha mãe também começou a sofrer de umas dores nas plantas dos pés que o médico dela atribuía à velhice; enfim, foi por isso que ela começou a usar cadeira de rodas. Deitada na cama não sentia nada, andando doía.

E a minha tia ia visitar mamãe porque não tinha aonde ir. Ela havia deixado tudo: a presidência da Liga das Senhoras Católicas, as relações, porque pessoas assim não são bem vistas e nem procuradas. Começou, então, a procurar mamãe.

Arquivo Revista
Da esquerda para a direita: Rosée, Ilka, Da. Lucilia, Plinio e Da. Zili

Não preciso dizer como mamãe a recebeu. Em primeiro lugar, não fez nenhuma queixa pelo tempo que ela não a visitava. Recebeu-a como se estivesse estado com ela na véspera.

Numa noite, quando cheguei para o jantar, para alimentar a conversa — mamãe não estava ainda usando a cadeira de rodas — perguntei:

— Meu bem, como foi a tarde hoje?

Ela disse:

— Esteve aqui a sua tia.

— O que fizeram?

Ela disse:

— Eu passei a tarde ajudando a ela.

Eu disse:

— Mas como a senhora a ajudou?

Disse mamãe:

— Ela se sente às vezes agoniada por causa do mal-estar que a doença causa. Ora ela quer andar e se cansa, então ela quer parar; parando, ela fica meio nervosa e quer andar de novo.

Isso que se refletia no fato de ela não se estabilizar em nenhuma posição. Então ela dizia para mamãe — ela chamava mamãe de Qui:

Qui, vamos andar um pouco no corredor?

As duas andavam no corredor até ela se cansar. Mamãe nunca se cansava até a doente se cansar. E mamãe com dor nos pés. Depois passavam para o escritório — fica mais ao alcance do corredor —, sentavam no sofá e começavam a conversar.

Contava mamãe:

Sérgio Miyazaki
Sala de jantar da residência de Dr. Plinio

— De repente eu notava que ela ficava aflita e lhe perguntava: “Minha filha, você não quer andar um pouco?”

Ela dizia:

— Eu queria…

Continuava mamãe:

— Voltamos de novo e assim fomos conversando a tarde inteira, veio o lanche, tomamos juntas. Eu ajudei a ela a tomar o lanche, depois o marido veio pegá-la.

Lumen da caridade de Dona Lucilia

Eu senti o pungente da situação. As duas estavam caminhando para a morte; minha tia morreu ainda antes de mamãe. Elas estavam caminhando para a invalidez. Estas duas apoiando-se no corredor, no vaivém de um corredor que não é longo, entravam pelo quarto de mamãe adentro e chegavam até o hall. Andavam, andavam e o apoio mútuo que se prestavam nisto, o afeto que tinham me dava mais um aspecto da vida de família vivido no lumem da caridade de mamãe.

E o mais curioso é o seguinte: o trágico, mas muito aconchegado dentro da tragédia. Elas estavam em casa, à vontade, juntas, gostavam muito da companhia uma da outra, tomavam seu chazinho.

Assim a vida de mamãe era cheia de pequenos episódios desse tipo.

Isso, ao pé da letra, cristianiza. A pessoa fica aberta para o Sagrado Coração de Jesus, para Nossa Senhora, para toda a atmosfera da piedade católica. E fica com uma espécie de confiança em Deus, que nasce disso. Porque, é curioso, deste modo de tratar com os outros, brota na alma de quem trata assim uma atitude em relação a Deus, que é muito confiante.

Quer dizer o seguinte: se uma pessoa de tal maneira penetra na situação psicológica de outro e vê como tratar bem a esse outro, a pessoa, a fortiori provada por Deus, sabe entender bem que propósito tem o Sagrado Coração de Jesus ou o Imaculado Coração de Maria ter mandado aquela provação. E sabe receber a provação com carinho, sabendo que está correspondendo às intenções benévolas d’Eles.

Ainda que estejamos sofrendo muito, dá uma confiança em Deus que é a de que nossa oração será atendida. Deus é Pai, Ele está nos fazendo o bem. Nós é que não entendemos o que nos convém. Isso é confiança.

É claro que uma pessoa com o estado de espírito de Dona Lucilia tem muito mais propensão para confiar em Deus do que uma que trata os outros com desprezo e que, portanto, é levada a tratar o próprio Deus com desprezo também e acha que Ele trata as almas assim. Então a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, ao Imaculado Coração de Maria, a confiança na misericórdia dos Santos e dos Anjos, etc., muito mais facilmente se instala numa alma com esse lumen.

Outro aspecto da confiança em Deus

Uma tendência que também faz parte da confiança: as coisas boas que Deus manda, sendo às vezes coisas modestas, alegrar-se com isso intensamente.

Assim também um benefício ou outro que algum fazia a Dona Lucilia.

Lembro-me que nos primeiros tempos de casado, um sobrinho dela ia muito frequentemente à fazenda. Voltando, indicaram a ele, em Campinas, uma padaria que fazia umas roscas e outras coisas muito boas que convinham muito à nutrição dela.

Mário Shinoda
Até seus últimos dias, Dona Lucilia manteve seu costume de, todas as tardes, tomar chá na sala de jantar
Mário Shinoda
Hall de entrada da residência de Dr Plinio

O sobrinho comprou um pacote grande de roscas e trouxe para ela, perguntando se ela queria. Ela provou, achou-as deliciosas e eram do tipo dietético que convinha inteiramente a ela. O sobrinho, então, foi muito amável e fez uma espécie de trato com o dono da padaria, de maneira que ele passava por lá, buzinava e o homem já vinha trazendo o pacote. Chegava a São Paulo, ele levava em casa ou mandava uma pessoa entregar para mamãe.

Ela recebia regularmente essas roscas. Creio que até morrer isso foi assim. Ela gostava de contar este fato. Elogiava as roscas, oferecia para quem a estava visitando e perguntava se não fazia bem para a saúde da pessoa.

Se o lanche dela era naquela hora, preparava um lanche não dietético para a pessoa, mas insistia com o visitante para comer a rosca, para ver como ia fazer bem. Depois dizia:

— Meu sobrinho, ele é muito bonzinho; ele faz…

Toda uma cantilena na qual ela instalava esse fato, que era realmente um gesto extremamente simpático do sobrinho, afetuoso, mas que era tratado por ela como se fosse uma coisa magnífica, extraordinária.

Ela tinha mais gosto em ver o carinho do sobrinho e o gesto amável dele do que tinha em saborear as roscas. Enfim, de fato resolvia um probleminha da vida dela.

O que movia mamãe a agir desse modo era a convicção de que a criatura humana deve ser assim. Uma prova e um estímulo supremo é o exemplo do Sagrado Coração de Jesus. Ora, como eu adoro a Ele e só gosto das pessoas com toda a minha alma quando elas são assim, eu também serei dessa forma com os outros.

Tendo um convívio assíduo com uma pessoa como Dona Lucilia, é muito fácil — se não se tem um verdadeiro amor à virtude ou às qualidades que a pessoa tem — banalizar isso. Todas as decadências começam por esta banalização.

(Extraído de conferência de 9/8/1986)