Servindo-se de uma linguagem metafórica, Dr. Plinio resume o itinerário de sua luta, desde a infância, contra o pecado e a Revolução.
Mais ou menos até os dez anos, quando entrei no Colégio São Luiz e comecei a tomar contato com essa miniatura da vida que é o colégio, eu tinha a existência alegre, feliz, de uma criança inocente que não enfrentara seus primeiros embates.
Uma cordilheira de felicidade
Vivia na felicidade da graça batismal, da inocência, tendo naturalmente o bem estar, o conforto material de uma criança colocada, não em condições de grande luxo nem de esplendor, mas muito convenientes, adequadas e confortáveis, proporcionadas ao que era natural apetecer. Nesse sentido, era uma criança que tinha tudo. Inclusive saúde normal. Assim, gozava de todos os prazeres de uma normalidade dourada, não no sentido do dinheiro, mas de uma luz de ouro dentro dessa normalidade.
Mesmo no tocante ao relacionamento com as pessoas, reservada a primazia a Dona Lucilia, era um ambiente absolutamente todo feito de harmonias, mas no qual as consonâncias terrenas faziam cantar no meu espírito outras que eu não sabia bem como exprimir.
Tantas alegrias, tanta felicidade vinham-me de perceber a retidão, a veracidade, a beleza, a bondade das coisas e de me sentir um com elas. Parecia-me tão natural que a vida fosse assim indefinidamente, que nem me passava pela cabeça poder ser de outra maneira.
Ia se formando assim, no meu espírito, uma espécie de padrão de felicidade terrena católica que consistia muito menos num passeio, num brinquedo, enfim, nessas coisas que divertem as crianças, do que em ver a retidão, a harmonia de tudo, e um imponderável e indescritível relacionamento disso com a alma, mais do que com o corpo.
Comprazia-me ver a virtude, ou o que eu imaginava ser virtude, nos outros. As aparências eram muito mais saudáveis no mundo daquele tempo do que no de hoje. Eu imaginava, a julgar pela primeira vista, todo mundo virtuoso, e me alegrava.
Havia qualquer imponderável que me falava mais do Céu, sem que eu fizesse incialmente essa correlação. Eu sentia esse imponderável e era como se existisse um outro mundo do qual este nosso não é senão a imagem. Eu acreditava no Céu, graças a Nossa Senhora, mas não fazia muito o relacionamento. Era um mundo de imaginação, de ouro, de nácar, que era a projeção deste e para o qual tudo devia tender.
Tudo isso me dava uma ideia de uma cordilheira de felicidade, onde as razões de ser feliz se encaixavam umas nas outras e faziam um cortejo de felicidades.
Os submarinos bombardeiam a caravela
Minha situação na vida se me afigurava como a de uma linda caravela antiga a navegar com o vento soprando nas velas, tendo na proa uma imagem de Nossa Senhora, por exemplo, Regina Marium – a Rainha dos Mares –, mas que de repente levasse de um submarino uma bomba tremenda, rangesse inteira e tudo nela ameaçasse desconjuntar-se. Dir-se-ia que as velas murchavam, a madeira se encolhia, os ornatos e as esculturas fanavam, tudo perdia a cor na caravela e toda ela se crispava pela violência do golpe.
Essa “bomba” foi, para mim, a súbita revelação do seguinte: “O mundo no qual você vai viver não é esse desejado por você. Ele tem algo disso, mas isso está moribundo. Pelo contrário, você vai viver num mundo que lhe oferece outra cordilheira de prazeres, e o ameaça com uma perseguição se você se manifestar de acordo com seus primeiros anseios. É preciso, portanto, entrar na cordilheira dos prazeres ilícitos e proibidos, meter-se nela completamente e dizer: ‘Vós sois minha alegria’, e fruí-la. Olhe como é gostoso! Tome! Com uma condição: abandone esse seu mundo dourado. Se você continuar nesse caminho, nós o liquidamos!”
A metáfora escolhida por mim é intencional. Caravela, torpedo, bomba, submarino, são das coisas mais anacrônicas e antagônicas que possa haver. Mas é como se um homem estivesse dirigindo uma linda caravela com tropas de antigamente e, de repente, tivesse a revelação de haver submarinos com outro estilo de guerra mais potente, mais eficiente que liquida com ele. A caravela atingida pela bomba representa toda essa tradição, todo esse passado, todo esse sobrenatural que recebe esse impacto da Revolução.
A caravela contra-ataca
Imaginem, porém, uma caravela sui generis, não feita de madeira, mas viva. Dependeria dela dizer sim ou não ao torpedo. Se dissesse “sim”, a bomba entrava; se dissesse “não”, a bomba não entrava. Mas no momento em que ela dissesse “não”, ela veria o mar coalhar-se de submarinos, dos quais sairia o convite-gargalhada, o convite-desprezo, convite-insulto procedente de megafones míticos: “Avance, se você ousar!”
Solução, concluiria ela: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia… Não há outra saída, porque força para enfrentar não tenho. Não sou senão uma caravela. De outro lado, não quero deixar de ser caravela! Não consinto em me transformar em submarino, não quero que minhas esculturas desapareçam e o nobre lenho de que sou feita se transforme num vil metal. Não quero que meu formato – comparável ao de um imenso cisne a flutuar na superfície das águas – passe a ser o de um vil tubo à maneira de um charuto que afunda.
Começam, então, todos os sofrimentos, todas as tristezas da batalha. Quantas e quantas vezes irá perguntar-se a si própria: Será bem verdade que a mim está acontecendo isso? Tudo mudou de um momento para o outro! E que terrível luta para enfrentar! Mas, de outro lado, a alternativa é clara: ou deixo de ser uma caravela que singra os mares, entre as ondas, à luz do Sol e da Lua, com a bênção de Nossa Senhora e me transformo num vil charuto; ou enfrento e sigo para a frente.
Daí a necessidade de fabricar, pela experiência diante das decepções, ciladas, violências, toda uma arte “náutica” própria. Não a de Colombo, que com suas naus Santa Maria, Pinta e Niña veio descobrir a América atravessando mares desertos, onde o terror consistia apenas no deserto aquático aparentemente indefinido e infinito; mas a de navegar em um mar cheio de inimizades, perigos e ciladas de todos os lados.
Qual era o segredo dessa luta? Primeiro: conservar o estandarte bem alto. Segundo: saber por onde avançar. Terceiro: avançar!
Desventuras e alegrias em meio à batalha
Porém, não é fácil avançar. Quanto jeito, quanto trabalho, quantas reflexões, quanta experiência e coordenação isso exige! Oh, dificuldade!
Era uma desventura que tomava a vida inteira. Por vezes, eu pensava: se ao invés de estar colocado nessa situação, eu tivesse, por exemplo, um defeito físico notável, como uma perna ou um braço amputado, talvez algumas pessoas me evitassem, mas eu ainda encontraria caminho por toda parte, pois ter-se-ia pena de um estropiado assim. Mas como isso é diferente, nas minhas condições, com todas as aparências da normalidade. O prestígio, a posição de família, as relações e tudo o que eu quisesse estariam ao meu alcance, mas a este preço: Você terá tudo despreocupadamente se, prostrado, adorares o demônio.
Haveria lados bons, agradáveis da vida que compensassem esses sofrimentos? Seria, talvez, muito bonito se eu dissesse que não. Mas devo dizer a verdade.
Tenho uma tendência natural a alegrar-me, a tomar as coisas pelo seu lado bom, dando muito valor àquilo que pode ser bom e me contentar. Por outro lado, não me sentia chamado a ser um religioso que deixa todas as coisas da Terra para levar apenas a vida de seu próprio convento. Sentia-me propenso a levar a vida de uma pessoa que percebe existir no mundo, como era naquele tempo, muita coisa apreciável, agradável, deixada pela tradição, resto de um passado que falava daquela felicidade da “caravela”. Quer dizer, vinham brisas e luzes do mar sereno. Eram as horas nas quais a caravela se rejubilava!
“A Contra-Revolução é a alegria de minha alma!”
Nesse sentido, Nossa Senhora me favoreceu obtendo-me a graça de compreender bem o nexo entre todas as coisas legítimas, boas. De maneira que fruindo essas coisas, eu não o fazia pelo lado animal, mas sobretudo pelo prazer de alma que elas proporcionavam.
Por exemplo, o mar. Sem dúvida, ele me causava um prazer dos sentidos: estar dentro do mar, sua beleza física, o agradável da praia. Tudo isso era profundamente notado e apreciado por mim. Mas por cima disso havia uma ideia da grandeza, da vastidão, do significado simbólico do mar, de tudo aquilo para que o mar convida; a ideia de que ele me ligava à terra de todas as belezas e de todas as tradições: a Europa.
Aquela onda que ali chegava, talvez tivesse batido na Torre de Belém! Quem sabe proviesse, pelo estreito de Gibraltar, da Côte d’Azur, celestial e magnificamente azul, no sul da França. Quiçá da baía de Nápoles… Teria aquela água, que eu via se mover diante de mim, passado pelo Canal da Mancha, estado no Mar do Norte, roçado icebergs mais para o norte ou mergulhado, mais para o sul, nas brumas prateadas e azuladas, representadas nas porcelanas dinamarquesas? Que maravilha! Que magnificência!
A alegria de imaginar-me envolto por esse azul e esse prateado tinha seu suporte de realidade nos sentidos, mas se referia principalmente a estados de alma já vislumbrados por mim em menino, e que a maturação da idade foi tornando mais definidos e ricos, permitindo-me discerni-los melhor.
Havia nisso uma capacidade de ser mais espiritual e, portanto, de participar da felicidade que é irmã da virtude. Porque fora do estado de graça a alma não entende nem frui essas alegrias.
Assim, no meio de todas as asperezas das batalhas, de todos os episódios intrincados da luta, havia momentos nos quais eu sentia a união, a coesão da virtude com todos os prazeres ordenados nesta Terra.
Revendo, como homem maduro, minha reação ante as carruagens de Versailles1, tenho certeza de que aquele gosto tão enfático, fruído em estado de graça, dava-me uma felicidade que me levaria a dizer: A Contra-Revolução é, na Terra, a alegria de minha alma!
Marcha triunfal sobre os escombros dos submarinos
Ao longo de toda a vida pode-se ser tentado a cometer pecados mortais. Nos meus primeiros embates nessa guerra contra as tentações, vinha-me instintivamente ao espírito a ideia – maturada e aprofundada mais tarde – de que, analisando apenas o grau de prazer nesta vida, o homem prevaricador é um bobo, porque todo o deleite que o pecado pode dar não é comparável a essa felicidade vinda da retidão do sentir e do fruir o universo, essa integridade da alma voltada para a virtude e para Deus.
Isso me levava a concluir: o felizardo sou eu! Não segundo os critérios do mundo, ou seja, sem luta e sofrimento. Eu vergo sob o peso da luta e quase racho sob o fardo do sofrimento. Mas há um lado da realidade para a qual eu olho e minha alma se expande inteira.
Quem se entrega a uma vida pecaminosa tem fogachos de deleites físicos, estremecimentos, frêmitos de prazeres sensíveis que passam. Mas sente, depois, o lixo e horror de sua situação. O que o demônio promete, isso mesmo é o que ele quer tirar. Ele oferece, com o pecado, a felicidade, mas o pecador experimenta a frustração.
Essa verdade tornou-se inteiramente patente para mim, com sonoridades de marcha triunfal, quando deixei o mundo e entrei para o movimento católico. Isso se estendeu, atingiu um ápice com minha eleição para deputado. Conservou-se muito alto na minha condição de professor na Faculdade de Direito, em cujas cátedras famosas, veneradas por São Paulo inteira, eu lecionava para alunos quase de minha idade. Ademais, liderava um movimento religioso, cuja importância na vida temporal ia ficando cada vez mais clara aos olhos de todo mundo, e isso ainda em minha extrema mocidade. Era uma vitória! Propriamente a marcha triunfal sobre os escombros dos submarinos.
“O estandarte está no alto e o dia da justiça está chegando!”
Assim foi até o momento em que comecei a notar os problemas denunciados em meu livro Em Defesa da Ação Católica2, ou seja, a serpente imunda que se esgueirava, difundindo a sonoridade ruim dos seus guizos, com sua dança lúbrica e indecente, no salão magnífico, nobre como um tabernáculo, da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Travaram-se, então, outros combates.
Restava, por fim, uma coisa muito importante: por mais que caíssem as pedras, por mais que o mar se tornasse turvo e revolto, se a caravela não afundasse, ela constituía parte marcante no panorama, e era um pedestal digno para o estandarte que ela mantinha bem alto.
Continuava, portanto, a haver no cenário da luta um lugar de honra para esse pedestal. Enquanto o estandarte ficasse içado bem no alto da caravela, ele seria honrado ad majorem Dei gloriam, ad majorem Mariæ gloriam, ad majorem Ecclesiæ gloriam3. Isso feito, o navegar da caravela se justificava por si. Para frente!
Vieram, mais tarde, outras compensações: a caravela, que outrora navegava sozinha, viu aparecer junto a si escaleres que constituíam seu ornato e sua alegria. Restava ainda a felicidade de ver as “naus” se multiplicando.
Em determinado momento, a integridade física da “caravela”, um desastre a levou…4 No total, convivendo com a dor, uma alegria se conserva. Essa alegria, qual é? Ainda que nenhuma outra restasse, esta permaneceria: o estandarte está no alto e o dia da justiça está chegando!
(Extraído de conferência de 11/4/1981)
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 17, p. 28-29.
2) Ver Revista Dr. Plinio n. 129, p. 19-20.
3) Do latim: Para a maior glória de Deus, para a maior glória de Maria, para a maior glória da Igreja.
4) Dr. Plinio se refere ao desastre de automóvel sofrido por ele em 3 de fevereiro de 1975.