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Impulso do passado com vistas ao futuro – II

Os patriarcas têm o senso da realidade profunda, representam todo o impulso do passado, levando a sociedade a dar um passo para a frente com eles. Nenhum homem merece o título de patriarca se não cumpre duravelmente os Mandamentos da Lei de Deus.

Quando uma família é muito antiga sua memória vai se perdendo no passado; por exemplo, a memória da família de um nobre pode conservar-se desde mil anos atrás. Mas uma família mais modesta nem tem sentido conservar o nome por tanto tempo. Esse é o passado da família, e o rumo que o presente carrega em direção ao futuro, mas que ele recebeu do passado, é tradição. Vai para a frente!

Grandes homens à maneira de patriarca

As famílias ilustres ou não, inclusive pequenas, são animadas por uma determinada tradição e, de vez em quando, os parentescos entre elas já são meio apagados, não se sabe mais bem quem é parente de quem. Elas têm uma parentela geral, mas difusa; estão se transformando em país.

E aquela unidade que o patriarca conservava vai-se borrando, generalizando; o nexo patriarcal vai-se dissolvendo ao longo das gerações. Então, qual é a solução?

É aparecerem grandes homens que fazem um papel à maneira do patriarca, os quais representem toda a meta, todo o impulso do passado; dessa forma aquilo que se estava tornando vago, por assim dizer, se precisa, se define e dá um passo para a frente com eles.

E assim essa longa sequência se acentua.

Mas isto não quer dizer apenas formar grandes homens cujos nomes saiam nos jornais. Eu conheci gente modesta – não do proletariado, mas da pequena burguesia – constituindo um grupo de famílias, que se percebia serem parentes, e havia um que eles respeitavam enormemente: Fulano. “Vamos ouvir o Fulano, a opinião dele é decisiva.” Ou então Da. Fulana, aquela que sabe e é meio médica daquele grupo de famílias. Quando alguém adoece, perguntam para ela qual é o melhor remédio, ou o melhor médico, ou se aquela doença tem perigo ou não. Quando há uma briga na família, vão pedir conselho para Da. Fulana. Se alguém da família está desempregado, solicitam-lhe emprego porque o marido dela arranja. Tais pessoas são uma espécie de patriarca nascido de um definido, mas pequeno, aumento de valor. São grandes homens de quarteirão, dos quais não se deve rir; pode-se sorrir, mas não rir. Nós sorrimos quando, ao olharmos para um formigueiro, vemos uma formiga carregar uma folha enorme para dentro dele. Sorrimos e não achamos ridícula, mas fenomenal a formiga, porque pequenininha ela carrega uma folha tão grande, e para aquele formigueiro marca história.

Arquivo Revista
Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na década de 1920, São Paulo, Brasil

Um velho professor de música

Assim, por exemplo, eu imagino que era, nos meus remotos tempos de infância, o Largo do Coração de Jesus.

Eu conheci, numa rua próxima do Largo, uma família cujo pai era professor de música, homem já idoso, austríaco. A mãe parece-me que era – não estou bem certo – alemã ou francesa. Ele, como músico, tocava violino… todo musical. E era, em medida pequena, um homem respeitável mesmo.

Sua mulher era vivíssima. Ele se entregava a uma vida meio ideal, para poder dar o que o talento musical concede, e a mulher fazia um pouco o papel do marido: ela trabalhava, bordava, confeccionava rendas, fazia bolos e vendia. O filho ficou médico, as filhas todas se formaram, uma delas em professora de música; todos fizeram a vida. Tinham um respeito por ele… Mas eu percebia que aquela rua – e os dois quarteirões adjacentes – era de pequena burguesia. E havia naquela redondeza um respeito pelo velho professor, quando ele saía ou nos acompanhava ao jardim, brincando com muita benevolência, etc. Eu notava que o pessoal da rua olhava para ele com respeito. A molecada que jogava futebol na via pública, quando passava o professor parava e assim ficava até ele terminar seu trajeto.

Era uma notabilidade de quarteirão, de arrabalde. Feliz a cidade onde cada arrabalde ou cada quarteirão tem um grande homem, um patriarcazinho, assim!

Diretor funcional de repartição pública

Eu fui também funcionário público, e notei que algumas repartições tinham diretores patriarcais. E outras possuíam diretores funcionais apenas.

Divulgação (CC3.0)
Igreja de Santa Cecília, São Paulo, Brasil

Numa seção de médicos em que trabalhei, o diretor era um homem rico, morava inclusive na Avenida Paulista. Ele chegava de automóvel à repartição, a qual era distante da Avenida Paulista. Ele ia três vezes – ou duas, não me lembro bem – por semana à seção; de longe dava um toque de buzina e já vinha o porteiro para lhe abrir a porta que dava para um parque dessa repartição.

Ele entrava com uns olhos de caráter não definido por detrás de uns óculos esfumaçados, que não permitiam bem ver o que ele estava observando. Um olhar bambo. Ele passava por nossa sala, dizia “boa-tarde” para todo mundo, uma pseudocortesia, e trancava-se em sua sala.

Daí a instantes, o secretário ia com o expediente para a sala e despachava com ele. O diretor ficava meia hora ou uma hora lá. Depois se levantava, dizia “boa-tarde”, sem falar com ninguém, e saía.

Havia medo dele. Inclusive porque era um homem rico e poderoso. Mas nele não existia patriarcalidade nenhuma.

Diretor patriarcal

Lembro-me de um outro homem que era diretor de uma repartição de engenheiros, mas diretor-patriarca: um homenzinho baixinho, já idoso, calvo com uma coroa de cabelos brancos, e uma barbichinha branca pontuda; e tesinho, representando a personificação da consciência, mas muito interessado por cada funcionário. E nas horas vagas, do café, etc., ele conversava com os funcionários, sempre ditando altas sentenças que os iluminavam pela sabedoria. Eu as julgava umas vigorosas banalidades, mas eles achavam o homem formidável.

Um dia eu estava subindo as escadas da Igreja de Santa Cecília – e como não gostava de subir escadas, tinha tomado o hábito de subi-las correndo, porque assim se acaba a coisa logo; era um modo de combater a preguiça – e vejo a meu lado, a escada é larga – o Doutor Fulano com a barbinha dele, que ia com duas ou três filhas já vetustas também, solteironas, acompanhando o pai para a Missa.

Elas olhavam para o jeito do pai subir a escada, mas cada passo dele era um respeito, para evitar que o “ídolo” não se quebrasse na ascensão… E ele dando o braço para uma e para outra e com ar digno. Elas encantadas com o pai… Ele era o patriarca daquela pequena unidade como era o patriarca da repartição. E, mais ainda, ele merecia ser: para o seu tamanhinho estava perfeitamente benzinho.

Onde entra a indústria e a máquina, o patriarcado desaparece; é uma coisa mais ou menos intuitiva, e creio que nem sequer preciso explicar.

A questão do “grande homem”

Então, podemos ter mais ao vivo a ideia do que seria uma sociedade com um mundo de pequenos patriarcas assim; eles tendem a patriarcalizar o patriarca maior, de maneira a formar uma hierarquia natural de patriarcas, que é a própria hierarquia do povo. E, naturalmente, as famílias ilustres, nobres, têm também seus patriarcas, e há famílias que são patriarcais em relação a outras. Não é só este que é patriarca em relação àquele, mas há famílias que são patriarcais em relação a outras famílias.

Vejamos agora o ponto precioso disso.

Um Demóstenes pode ser uma grande honra para um país, mas é possível também que ele seja um grande malfeitor. Todo homem inteligentíssimo e dotado de muita força de vontade, ou tende para o santo ou para o bandido. Porque, se ele é voltado para um ideal verdadeiro e bom, faz toda espécie de benefícios e encaminha para o bem. Mas se é direcionado para o interesse pessoal, ele se serve de seu talento para guiar para a direita ou esquerda, do modo mais vil, a multidão que depende dele. E tudo tem conexão com o dinheiro ou a imoralidade; ele leva as pessoas de um lado para outro.

Qual é a defesa da sociedade contra o “grande homem”? Porque a sociedade precisa ter uma defesa, senão o “grande homem” é um vendaval que de vez em quando nasce e destrói tudo. Este é o aspecto negativo e positivo do “grande homem”.

E os defensores são os patriarcas. Porque eles têm o senso da seleção, da escolha, da realidade profunda. E esse senso faz com que, quando o “grande homem” é um charlatão, no comentário do âmbito dos patriarcas eles o recebem com frieza. Tal frieza explica aos outros, e, quando necessário, eles falam, porque é preciso ter desconfiança com aquele homem.

Portanto, o “grande homem” ou afina com o que há na sociedade de melhor, que são os patriarcas, ou não tem carreira. Mas os patriarcas não dependem dele.

Francisco Lecaros

O professor de música ao qual me referi não dependia de ninguém: ele exercia uma influência direta sobre aqueles quarteirões. Mas o “grande homem”, se quisesse ter influência ali dentro, dependia dele, porque nada havia como a aprovação do professor para levantar a reputação de um homem. E nada como a “maledicência” dele para derrubar.

E era, por assim dizer, este cenáculo invisível de patriarcas que servia de rumo para que o país não fosse como uma espécie de navio com a carga muito leve, que as ondas podem derrubar, “enlouquecendo” o navio. Eles, os patriarcas, são a carga sadia, a tradição.

Virtude primitiva dos antigos patriarcas

Em relação a este todo, o que é o Sagrado Coração de Jesus?

Nenhum homem merece esse patriarcado verdadeiramente se não pratica duravelmente todos os Mandamentos. Os antigos patriarcas das antigas tribos, muito frequentemente, eram herdeiros de vagas reminiscências do tempo de Noé, talvez de Noé até Adão e Eva, quando a humanidade ainda tinha a marca dos ensinamentos de Deus e do convívio com o Criador, feito por uma revelação de que lhes constava alguma coisa. E a pureza das circunstâncias primitivas em que eles viviam facilitava-lhes levar uma vida que precariamente podia ser chamada virtuosa. Daí a respeitabilidade deles.

Mas hoje em dia acabou isso, porque ninguém vive da revelação do tempo de Noé, mas da Revelação feita ao povo eleito e a realizada por Nosso Senhor Jesus Cristo e pregada para o mundo inteiro.

Francisco Lecaros
Sagrado Coração de Jesus – Catedral de Santiago, Innsbruck, Áustria

E quem recusa essa Revelação, se pode conhecê-la, peca. Quem aceitou a Revelação e a rejeita é um apóstata. Para esses não há possibilidade de ter a virtude primitiva dos antigos patriarcas.

Eles são inimigos de Nosso Senhor Jesus Cristo que é o Modelo de todo o Bem. Todo homem, quando tem vontade de ser santo, deseja imitar Nosso Senhor Jesus Cristo, de ser como Ele. E o Coração Sagrado de Jesus nos revela, como no seu foco, a própria santidade d’Ele.

Quando vemos uma imagem do Sagrado Coração de Jesus temos vontade de olhar para o Coração, ajoelhar e dizer: Anima Christi, sanctifica me!

O Sagrado Coração de Jesus é o Patriarca, o alfa e o ômega de tudo

De outro lado, o Sagrado Coração de Jesus, enquanto tal, atua possantemente sobre a vontade do homem. Vê-Lo expresso pelo seu Coração, pela sua bondade, sua generosidade, desarma a nossa maldade. Há qualquer coisa em nós em que os arreganhos do egoísmo, do ceticismo, da dúvida, das desconfianças, da preguiça, da modorra, da ansiedade, tudo isso entra em paz. Olhando para o Coração de Jesus, dir-se-ia que as virtudes cardeais vão renascendo. É um mar de lama que vai secando e se transforma em pó, deixando de fora apenas a antiga catedral – isto é, a nossa virtude –, outrora submergida pelo lodo.

O Sagrado Coração de Jesus é o Patriarca, a meta, o impulso originário, a tradição, o começo e o fim, o alfa e o ômega de tudo o que se fez depois d’Ele.

A Santa Igreja Católica é o Corpo Místico de Cristo. Ela reluz de tudo quanto há n’Ele, quando vista na sua autenticidade e não em contrafações miseráveis como verificamos hoje.

Então, ver a Santa Igreja Católica é ver a Nosso Senhor Jesus Cristo. Assistindo a uma Missa, percebemos o esplendor da Liturgia onde reluz a santidade divina de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Daí nascem todas as condições para uma sociedade virtuosa. E onde há uma sociedade virtuosa, meio como causa, meio como efeito, o tecido patriarcal se compõe. Está feita a Cristandade.

(Extraído de conferência de 11/01/1986)

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