A Revolução Industrial tem como causa a máquina, a partir da qual há um trabalho de guerra psicológica revolucionária, impostando o espírito do homem para o deslumbramento pela mecânica. A indústria se transforma numa espécie de padrão de exemplo metafísico, em função do qual as pessoas se movem.
Na questão tratada anteriormente1, a respeito do papel da proporcionalidade, aponto o seguinte: esse desejo de proporcionalidade é intenso no homem e se espalha, se difunde por toda a sua vida. A natureza humana, no que ela tem de reto, impõe esse anseio.
Uma espécie de néctar da Idade Média
Então há, por exemplo, um desejo de proporcionalidade entre as classes sociais. Aquele sistema oriental de um marajá podre de rico e, depois, perambulando em torno dele a miséria, – embora esta até seja bem recebida pela indolência popular –, dá à natureza humana uma impressão desagradável. Porque seria necessária uma proporcionalidade que preparasse os graus intermediários, sem os quais nada está bem arranjado, de maneira a evitar que o último grau ficasse sem proporção possível com o primeiro.
Creio ser essa preocupação da proporcionalidade o que dava o bem-estar na Idade Média. Apesar das mentiras que dizem a respeito, a Idade Média guardava muita proporcionalidade e, sobretudo, tendia a uma proporcionalidade cada vez maior. Se não fosse a Revolução, era para onde ela caminharia. E uma proporcionalidade com honra, distribuída por todo o corpo social. Isso, para mim, é uma espécie de néctar da Idade Média, uma coisa especial.
Na Revolução Industrial há algo curioso: a indústria, em si mesma, tem qualquer coisa onde a necessidade técnica pede que se viole a proporcionalidade no aspecto físico da máquina, no local onde ela deve funcionar, nos ruídos produzidos por ela, gases, odores que ela desprende, etc. Tudo isso tem uma nota qualquer de desproporcionalidade, que é uma ostentação triunfal do monstruoso.
A mera funcionalidade é a regra e, na indústria, ela produz tanta feiura. Ora, o homem não pode viver do meramente funcional, abstraindo da proporcionalidade e da beleza, porque o simplesmente funcional, pelo menos em certos domínios da atividade do homem, é anti-humano. É preciso fazer o belo, por amor de Deus, e o funcional no tamanho da globalidade das necessidades do homem.
Tomemos, por exemplo, uma fábrica de sabonetes. O sabonete é necessário ao homem, e a máquina será tanto mais útil à humanidade quanto mais sabonetes ela produzir. Mas se o aspecto dessa máquina bestializa os que ali trabalham, esses não têm direito a não trabalhar naquilo? É um direito natural que se deve considerar.
Mecanização do trabalho humano
Por outro lado, o mundo comercial e burocrático procura organizar-se à maneira de uma máquina, da qual o homem seria uma peça. Por causa disso, exige dele certas movimentações ou imobilidades excessivas que não só fazem mal ao ser humano, mas àquilo que ele vê.
Por exemplo, o banco. Vamos imaginar um guichê de banco, onde haja uma armação qualquer pela qual se ouça perfeitamente a voz de um lado e de outro. Mas de fato, a única coisa aberta é um pequeno semicírculo em baixo, por onde as mãos entregam ou recebem o dinheiro.
Isso poderia ter uma porção de justificativas. Por exemplo, evitaria que o funcionário se distraísse, um namorico começasse, um assalto ocorresse – porque ficaria muito difícil dar um tiro no funcionário, o qual poderia facilmente esquivar-se, etc. Mas há uma necessidade humana de, no trato completo, ver a outra parte que não é funcional. Quer dizer, a função não exige isso. É razoável educar o homem, de maneira que ele se habitue a essa outra coisa e com toda a facilidade trave esse contato? Ou, pelo contrário, a natureza humana é incompatível com isso e não se pode impô-lo? E se no todo é preciso quase um estudo para habituar o homem a isto, não se deve concluir que é uma dessas necessidades de atender que faz bem a terceiros, mas não ao funcionário?
Não é uma espécie de mecanização do trabalho humano? Há uma série de coisas assim.
Uma organização completamente inumana
Lembro-me disso no tempo em que fui funcionário da Secretaria de Viação e Obras Públicas. Havia uma sala de trabalho modesta, de expediente, que era dirigida por um engenheiro, um homem bem inteligente; fora meu professor universitário, mas ele ganhava mais sendo diretor daquela repartição.
Ele tinha uma escrivaninha grande, talvez sobre um estradozinho. Os datilógrafos permaneciam alinhados e de frente para ele. E de um lado havia três ou quatro escriturários mais velhos, cujas mesas eram maiores, um pouco mais confortáveis e perpendiculares à escrivaninha do diretor; eram os que precisavam escrever coisas à mão, por exemplo, livros ou registros, etc.
Faltava serviço, porque toda Secretaria de Estado que se preza tem mais funcionários do que trabalho. De maneira que ficavam horas vagas nas quais um certo pudor coletivo impedia de ostentarem que não tinham serviço. E havia um certo medo de que, ficando patenteado que não tinha trabalho, alguns fossem transferidos para outros lugares com mais serviços. Então, eles tinham interesse em não mudar de lá.
As datilógrafas, em geral moçoilas – lembro-me de uma delas, Da. Iolanda –, permaneciam sentadas em fila, e às vezes brincando um pouquinho com o teclado, mas sem acalcar. Em certos momentos, eu desconfio, anotavam uma coisa qualquer, uma besteira. Não conversavam consigo mesmas, nem liam nada, porque era contra os cânones ler, pois indicava que não estavam trabalhando; ficavam duas ou três horas assim.
Afinal de contas, o diretor cavava algum serviço para elas baterem à máquina. Então, chamava: “Da. Fulana!” Lá ia ela devagarzinho, meio contente de ter sido preferida. Ele falava com Da. Fulana baixinho, dava-lhe um serviço para fazer; ela sentava-se junto a sua escrivaninha e em poucos minutos o texto estava datilografado. Ela o levava para o diretor, juntamente com o envelope pronto; ele o relia, assinava, e Da. Fulana voltava para seu lugar.
Os homens das mesas laterais, ao pé da letra, faziam ponta de lápis, fumando, às vezes pedindo um auxílio a outro: “Tem fósforo?”, no silêncio daquela sala. Uma coisa de uma artificialidade…
Não sei se percebem que existe nisso uma imitação da máquina. Quando se quer, aperta-se um teclado e ela funciona. Quando não se deseja, ela fica parada. E eles estavam organizados à maneira de máquina ali dentro. Não davam uma organização completamente inumana àquele negócio, dentro da vadiagem e do não fazer? A meu ver, davam.
Um meio de quebrar o mito da máquina
Assim, diversos aspectos daquele tempo eram organizados na imitação subconsciente da máquina, considerada o supremo modelo do bem-fazer. Portanto, o sumo modelo dos vivos era a inércia da máquina. Qual a razão? Porque a máquina representava o resultado da ciência, do planejamento, e era uma coisa que produzia uma quantidade muito maior do que fabricava um homem. Logo, um ser meio angélico, de natureza superior à do homem, e segundo o qual este tinha que se modelar.
Se um sujeito saía do ritmo da máquina, causava uma indignação. Por exemplo, eu era impontual por natureza. Toda a minha família materna é impontual e puxei isto deles. Mas achei que a impontualidade era um meio de quebrar o mito da máquina, e afirmar a prevalência de determinados valores sobre o valor meramente mecânico da pontualidade.
Até houve, no século XIX, uma reação dos românticos expirantes contra a pontualidade e o sistema da máquina triunfante. Eu tinha um tio ao qual era próprio ficar corroendo continuamente as pontualidades. Mas por prestígio pessoal, fazendo com que todas as regras que impunham a pontualidade vergassem diante dele. Ele realizava isto como a minha geração não sabia mais fazer. Entretanto ele fazia tão prestigiosamente, que quebrava um certo igualitarismo existente nisto.
Por exemplo, sala de teatro. Depois de começada a representação, não se pode entrar. É uma coisa que se compreende, porque se todo mundo vai entrar, a atenção na cena se dispersa. Mas ele tomava uma frisa e se apresentava no lugar atrasado, com alguns de sua família. A porteira ou o porteiro não queria deixar entrar, mas ele exigia com tanta superioridade, deixando insinuado que apelaria para não sei que superpoderes terrestres os quais pairavam em torno dele, e ai de quem resistisse! Abriam e ele entrava devagarzinho, mas com um ar de quem estava dominando a cena. As pessoas olhavam com o rabo dos olhos e percebiam: “É o Dr. Fulano que está entrando.” O jeito de ele entrar tornava natural que para ele se abrisse aquela exceção.
Ele tomava cuidado de não fazer barulho, etc., para as objeções contra isto não poderem se realizar; sentava-se e a cena teatral corria. E sem contar cem outras coisas que ele fazia.
Isto, que a minha geração não sabia fazer, meu tio realizava tão primorosamente que era um triunfo para ele. Mas a admiração interna pela máquina fez com que pouco tempo depois não se compreendessem homens assim. Mais ainda, não nascessem homens capazes disto, porque o homem começou a ser educado a ficar de quatro patas diante da máquina.
E a máquina não admite exceções. De fato, quebra de algum modo a “majestade” da máquina se estabelecer exceções. Então, a era da máquina era simplificante e planejadora. E quanto a um salão de teatro, a educação passava a consistir nisto: é falta de educação entrar depois de começada a sessão. Para os casos não excepcionais, é verdade. Mas é preciso saber fazer a exceção.
Esse horror à exceção era, a meu ver, causado um pouco por preconceitos igualitários, por aquela ideia de que, se não funcionou à maneira da máquina, não vale nada.
Refeição calma e animada pela conversa
Outra coisa também é a seguinte: a refeição no século XIX era calma e animada pela conversa. Alguma coisa que não vou analisar aqui fez decair em todos os sentidos o gosto pela refeição do século XIX. Fez baixar o gosto pela abundância, pela conversa, pela tranquilidade. A refeição no século XIX era sempre um encanto solene. O prazer pela solenidade passou; entrar em um restaurante e comer em pé alguma coisa que já se tem pronta para servir e ir embora logo, tornou-se divertido. Como quem se libertava do constrangimento e do aperto daquela refeição do século anterior.
Eu alcancei muitas casas de chá organizadas assim: uma entrada, dois balcões sobre os quais havia estufas com empadas, sanduíches e uma série de outras coisas. Os melhores bares faziam sanduíches na hora. Mas nos outros bares já estavam prontos e guardados em uma campânula; quem quisesse suspendia a campânula e comia quantos sanduíches desejasse. O feito na hora era para a pessoa poder dizer: “Ponha mais presunto, mais língua, passe mostarda”, ou seja, individualizasse. Porém levava um pouco de tempo. Tirava a rotação mecânica com que o empregado fazia. Isto podia parecer insolência à boa cadência das coisas. E o bem comum – pensava-se – era servido pela produção rápida e ágil feita pelo homem.
No fundo da sala, havia mesas onde serviam chá com leite e torradas. As senhoras levavam as crianças, a música tocava, elas se cumprimentavam; tratava-se de um encontro social, necessariamente vagaroso. Aquilo era a família da geração anterior. Os filhos delas ficavam na entrada. As moças, como não podiam estar na parte da frente e não gostavam de ficar no fundo, não iam nunca. Por fim, o bar tomou conta de tudo.
Então, poderíamos tirar dois princípios: além do efeito próprio da indústria, existe um deslumbramento do homem pela máquina, que transforma a indústria numa espécie de padrão de exemplo metafísico, em função do qual a pessoa se move. E o que para nós é a transesfera, para eles é a subesfera; para nós o mundo da transesfera orienta, guia e encaminha para Deus; para eles o mundo da subesfera é que guia, orienta e encaminha para o que está embaixo.
Creio não existir, hoje em dia, um só domínio da vida humana no qual, por alguns aspectos, não encontremos elementos modificados em relação à situação anterior, em atenção ao desejo de agir à maneira da máquina.
A partir desse ponto já não se visa mais a funcionalidade e muito menos a personalidade, mas é a contrafuncionalidade que toma a máquina como uma espécie de valor metafísico a ser seguido.
A não funcionalidade da máquina
Onde está a não funcionalidade disso?
Uma vez que o homem quer não só a quantidade, mas a qualidade e nos seus desenvolvimentos tende mais para a qualidade do que para a quantidade, ele aplica seu gênio, sua inteligência, sua capacidade para promover melhoras de qualidade.
Quando o indivíduo chega a uma tal humilhação diante da máquina, e perde o melhor que ele tem – o desejo da qualidade – para preferir a quantidade e viver no ambiente da máquina, querendo só aquilo que é mecânico, de fato ele mostra a não funcionalidade da máquina, porque a funcionalidade deveria adaptar-se às exceções, aos gostos pessoais, à qualidade, porque essas são coisas necessárias à natureza humana. Portanto, é uma negação do princípio da funcionalidade que o homem se adapte à máquina, como seria uma aberração que o patrão se adaptasse e obedecesse ao criado.
Então, o que nós chamamos de Revolução Industrial é uma dupla revolução. Ela tem como causa a máquina, mas a partir desta há um trabalho de guerra psicológica revolucionária, impostando o espírito do homem numa situação especial, diante do funcionamento da máquina. E isto é uma coisa, até certo ponto, não inteiramente autônoma da máquina.
E até eu me pergunto se os que fazem coisas destas não são levados mais ainda para produzir no homem essa mudança de estado de espírito, do que para todos os outros efeitos da máquina.
A livre iniciativa e a propriedade individual de fato começam nesse direito a exigir qualidade; aí floresce realmente a faculdade do homem de criar alguma coisa. Porque quando uma pessoa, por exemplo, ao ter que adquirir luvas, pode passar por um luveiro que as confeccione como ela idealizou, a pessoa se põe a imaginar umas luvas. E consegue as que exprimem o seu temperamento, seu desejo, e correspondem à forma de suas mãos também; e lhe dão uma forma de bem-estar e de conforto que a fabricação em série não proporciona. Ali o indivíduo afirma a sua livre iniciativa muito mais do que na operação econômica, em que ele toma a iniciativa de fazer uma coisa. A livre iniciativa econômica é uma coisa muito boa, mas é um capítulo da livre iniciativa pessoal.
E o direito de ser eu mesmo e, portanto, de ser servido por coisas que façam para mim as coisas que quero, é propriamente aquilo que dá élan a uma sociedade.
Compressão das individualidades
Estou vendo dizerem o seguinte: “Mas isso é só para os ricos.” Não é verdade. O rico faz isso para si mesmo; o pobre, para o seu grupo social. Por exemplo, existe um estabelecimento que não vende matérias fabricadas, mas os condimentos com que uma cozinheira doméstica, quer dizer, dona de sua própria casa, cozinha para os seus. Uma boa cozinheira pode fazer os pratos que ela, o marido e as crianças gostam; então ela vai ao estabelecimento, compra isso, aquilo, aquilo outro. E gosta de desenvolver originalidades com os pratos da casa, tem a livre iniciativa para si, que é um direito natural.
Não sei se faço notar o caráter comunista e totalitário da compressão disso, que está na origem de uma série de outras formas comunistas de viver e preparam para o advento do comunismo.
Mais ainda, o vendedor tem que ser psicólogo. Ele precisa compreender como é a mentalidade de seu cliente, senão não fixa a freguesia. Mais do que fazer anúncios, o vendedor necessita de clientela que faça a propaganda dele. Portanto, a excelência da mercadoria é a condição da sua prosperidade.
Isso tudo define muito mais uma sociedade livre, com iniciativa, do que a liberdade de fazer um discurso anarquista, ou a de um terrorista para meter uma bomba no aeroporto; enfim são abominações em comparação com esta liberdade da pessoa ser inteiramente ela mesma.
A meu ver, a verdadeira escola do talento do povo existe quando ele se habitua a servir de modo individualizado pessoas de uma categoria superior. Nisso ele se requinta e, requintando-se, vai depois produzir para si, de modo a participar, em algo, da classe mais elevada. É uma roldana que transmite qualidade de alto a baixo na escala social, e faz uma continuidade harmônica que amamos tanto.
Mas acho que o lado miserável nisso é que aí entra também uma pressão qualquer ambiental, a qual a partir da admiração da máquina, da rapidez, do divertido – coma depressa, saia logo, não tenha cerimônias, nem pompas, etc. – produz uma civilização inferior que leva o indivíduo a querer comprimir as suas individualidades para se encaixar, voluptuosamente, dentro de um ritmo geral, totalitário.
Presenciei isto: homens bem mais velhos do que eu entrando num bar e dizendo, com uma musicalidade de voz que a minha geração já não tinha:
– Fulano, me prepare aquele sanduíche que você sabe!
Em geral, o homem que dirigia esses bares era um alemão ou um italiano bonachão. Ele dava uma gargalhada e preparava o sanduíche como o freguês queria. Este comia e batia no ombro dele, dizendo:
– Fulano, não há como o seu sanduíche!
Isso era dito em voz alta, constituindo propaganda junto a toda a clientela. Depois o freguês saía satisfeito, dando uma boa gorjeta. O dono do estabelecimento fazia uma grande reverência, e o copeiro ia passar um paninho na mesa, porque esses pratos eram tais que o sujeito deitava migalhas de todo lado.
Essas peculiaridades dentro de uma sadia liberdade são o ponto de partida da sociedade orgânica, e não adianta tratarmos indefinidamente sobre a sociedade orgânica sem compreender que sem este tipo de liberdade ela não se forma.
A industrialização produzirá a contraqualidade
Em contrapartida, parece-me que esse industrialismo que estamos descrevendo é mais de ontem e do entardecer do que de hoje e do dia de amanhã.
O industrialismo cibernético, interdisciplinar, nascido da conjugação de várias ciências, produzirá o extremo oposto do que eu disse: máquinas enormes que deslocam, sem barulho e sem esforço, quantidades colossais de matéria, de um modo que não choca, limpo, procurando produzir qualidade, em certo sentido da palavra. Qual é esse sentido?
Tudo isso é feito para o gosto do homem que perdeu sua individualidade e virou um anônimo. Essa industrialização produzirá a contraqualidade levada ao auge e encaminha para o que há de pior. Este sistema pode nos dar o padrão de uma civilização onde o panteísmo, o pampsiquismo tende a fazer degustar a coisa cada vez mais ordinária, feita em série, pelo gosto das pessoas se libertarem do cárcere de sua individualidade e vibrarem em uníssono. E isso se transforma num vício para o homem, que deve ser indivíduo, poder afirmar-se, querer ser diferente dos outros – porque essa é a ordem boa do homem –, e intoxica com a narcose de ser um qualquer e se afundar na multidão.
A indústria nova, forçosamente, explora esse estado de espírito e prepara para acentuá-lo. A coisa nova, sensacional e meio extravagante tem que contrariar a ordem em alguma coisa. A surpresa faz as vezes de qualidade.
Aos poucos, o que fará as vezes da qualidade é a continuidade monótona, apagada e que liberta o homem para sonhos. Nunca ouvi dizer de um drogado que fosse gastrônomo. A droga elimina completamente os outros gostos. Este gosto de ser um perdido na multidão é algo à maneira da droga.
A sociedade orgânica é repleta de arquetipias que orientam
Surge um problema interessante: Quando se trata de uma instituição de cunho religioso, no que ficam as individualidades?
Na sociedade orgânica – pelos movimentos próprios da natureza e não os da máquina – forma-se uma espécie de guias, por onde alguns têm melhor faro do progresso qualitativo por onde vai. Porque não é qualquer um que vê tão bem o progresso qualitativo. Se há uma coisa por onde os homens são desigualmente dotados é no faro do progresso qualitativo, visto no seguinte sentido: um indivíduo tem uma noção de para onde as coisas tendem e de como estas, realizando suas tendências retamente, chegam ao melhor. Esse indivíduo, porque modela pelo seu exemplo as outras coisas, leva todos os outros num movimento que os representa de fato. Não é um homem que inventa um figurino e impõe ao outro, mas ele sente o consenso de todos e anda naquela direção. Os outros o tomam como um guia, de boa vontade, com satisfação.
Nisso não há uma tirania, mas uma verdadeira liberdade, e nesta os arquétipos são os próprios arautos da aspiração geral.
As instituições que visam um fim muito especial e elevado precisam ter muito mais acentuado esse fluxo do arquétipo, e de todo aperfeiçoamento que gravita em torno disso. De maneira que cada indivíduo deve ser protegido contra a fraqueza humana, contra as soluções que o levariam para um objetivo diferente do fim social, e para alguma coisa dissonante da arquetipia autêntica evolada daquilo.
Uma sociedade, como estou descrevendo, ou é toda cheia de arquetipias que orientam, ou dá numa liberdade descabelada. E aí nós chegamos à Revolução Francesa de novo.
O Fundador é a garantia da liberdade de seus súditos
O Fundador é esse arquétipo até depois da morte, e a regra tem por fim proteger o religioso contra os extravasamentos, as dissipações, e colocar sempre diante dos olhos aquela espécie de profetismo do Fundador, que leva a alcançar um determinado ápice.
De maneira que, para esse tipo de organização, a proteção da liberdade individual consiste em proteger o indivíduo contra o seu próprio arbítrio, levando-o, facilitando-o a adquirir o espírito do arquétipo. Mas é uma proteção e não uma diminuição da liberdade. O Fundador é a garantia da liberdade de seus súditos. Se a figura do Fundador não é vista assim, há um equívoco fundamental entre o religioso e sua condição de religioso. É preciso parar e tratar de dar a explicação, porque isso deve ser entendido assim, pois, do contrário, não se entendeu nada e saiu-se da ótica da questão.
Quando isso se realiza bem, há uma comunicação do espírito do Fundador com o que se deixa proteger, que completa o espírito do discípulo, sem o cortar em nada, exceto nos defeitos. É mais ou menos como o jardineiro que poda, mas não mutila a planta, pelo contrário, dá-lhe mais força.
(Extraído de conferência de 12/9/1986)
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 229, p. 18.