Não existe formação cultural que não tenha como raiz uma apetência metafísica, embora esta, na maior parte dos casos, seja subconsciente. Se alguém busca o conhecimento sem estar movido por essa apetência, jamais se tornará um sábio.
Queria dar um exemplo concreto, ainda do tempo de minha infância, de como a Revolução Industrial falseia todas as coisas. Houve tempo em que a egiptologia tomou grande realce, pois dois homens, Lord Carnarvon1 e Howard Carter, este mais célebre do que o outro, andaram fazendo pesquisas no túmulo de Tutancâmon.
Conhecimento artificial e o nascido do interesse
Parece que encontraram a entrada de uma pirâmide e levaram para fora tudo o que ela continha. Estava-se ainda no período em que a influência e o domínio ingleses sobre o Egito eram muito grandes. E a Inglaterra, naturalmente, se aproveitou disso, mandando levar para o Museu Britânico quantidades indefinidas de tesouros egípcios. De maneira que a parte egiptológica desse museu é uma coisa colossal.
Em virtude das descobertas da Revolução Industrial, uma viagem da Inglaterra para o Egito se realizava com muito maior facilidade do que em épocas anteriores. O estabelecimento do poder inglês no Egito também se tornava muito mais fácil, porque podiam transportar armamentos e tropas a toda hora. E foi o que eles fizeram: ocuparam o Egito, e depois desocuparam.
Com certeza foram usados meios técnicos de toda ordem para detectar onde era a porta da pirâmide, como eram os meios de arejamento do interior, como tirar objetos de dentro, o modo de guardar, transportar em caminhões para o Cairo e de lá levar para navios onde estava tudo preparado para ser enviado ao British Museum.
Entretanto, com o superávit de objetos que esse museu não conseguia abarcar, estabeleceu-se um mercado de egiptologia no Cairo para vender essas coisas a outros países. Daí o afluxo de colecionadores, de negociantes, concorrendo para a montagem de hotéis a fim de receber essa gente. Então os hotéis, as casas de diversão, as agências de turismo que se espalhavam por toda a Europa, Estados Unidos, colocavam anúncios deste gênero: “Venha se divertir… Divertimento moderno? Sem dúvida é muito agradável. Mas por que você não experimenta um divertimento de dois mil anos atrás? Venha ver como se divertia fulano…” E colocavam um egipciozinho estilizado. “Venha conhecer o mundo fabuloso das pirâmides…”
Esses meios de agir levam artificialmente para junto da pirâmide todo um turbilhão de gente. Tudo isso é um movimento artificial, no sentido de que, tornando tão fácil o acesso à pirâmide, cria em torno dela múltiplos interesses de pessoas que não têm entusiasmo pela pirâmide, mas vão por causa do turismo e de mais sei lá o quê, ficando o tema “pirâmide” misturado numa série de outros assuntos…
Esse material vai para a Inglaterra. Constroem – estou imaginando – dependências especiais no British Museum: “Sala Tutancâmon” ou “Pavilhão Tutancâmon”, só com coisas desse faraó. Depois, montam o “Pavilhão do deus Ra” e enchem aquilo de coisas de toda ordem. Junto se estabelecem pensões e hotéis para os cientistas que queiram estudar lá. Constitui-se um novo mercado de pequenas lembranças, imitações fabricadas das coisas das pirâmides, vendidas como souvenirs.
Em determinado momento, o governo inglês resolve: “É preciso, na maior urgência – não se sabe por que “na maior urgência” –, decifrar tudo quanto tem aqui.” Monta-se, então, na Universidade de Oxford, uma faculdade de Egiptologia, e mandam vir egiptólogos do mundo inteiro para morar ali e, dentro de um programa para daqui a trinta anos, quando se comemorar o “tantésimo” aniversário da descoberta de Champollion2, poderem apresentar tudo decifrado.
Acabam por atrair para aquilo uma porção de gente que não tem verdadeiro interesse pela pirâmide, mas que vai estudá-la como poderia, por exemplo, trabalhar numa fábrica de cordões de sapato no Canadá. Tem ali bom ordenado, boas condições de vida, então vai estudar a pirâmide.
Forma-se assim, de maneira forçada, uma máquina destinada ao estudo da Egiptologia. Resultado, o sujeito não estuda aquele material egiptológico na medida do seu interesse, nem tem uma livre iniciativa para aprofundar o tema, mas se vê na obrigação de aprontar um relatório sobre tal ponto dentro de tal assunto, para o trigésimo aniversário da decifração de Champollion, por exemplo. Está acabado.
Sai uma produção arqueológica enorme. Quanto ao resto, o aproveitamento todo é muito inferior ao que seria se a coisa fosse feita sem a Revolução Industrial.
Não existe formação cultural sem uma apetência metafísica
Se não houvesse a Revolução Industrial o que aconteceria? Iriam para junto das pirâmides apenas os fanáticos da Egiptologia. Esses teriam mesmo condições para ir, estudariam lentamente, muito mais a fundo. Teriam vencido a barreira da preguiça, da indolência, da timidez. Seriam quase os bandeirantes da Egiptologia que iriam para lá. Pesquisariam sem encomenda, mas levados pelo desejo desinteressado de conhecer a Egiptologia. Seriam homens que não trabalhariam nem sequer para ficar célebres, porque a máquina de propaganda não estaria montada em torno deles.
Então teríamos uma Egiptologia dirigida e executada pelos egiptólogos que, embora andando mais devagar, no passo que seguissem teriam estudado todos os escaninhos do assunto “Egito” adequadamente. De maneira que quando se desse a publicação desses estudos, eles talvez até já tivessem morrido, mas eram obras de primeiro valor, e uma escola de egiptólogos estaria instalada ali, não tão diferente dos setenta sábios do farol de Alexandria.
Resultado: teriam produzido mais devagar, sem pressa, sem propaganda, muito mais a fundo, coisas de qualidade muito superior.
A meu ver, não existe formação cultural nenhuma que não tenha como raiz uma apetência metafísica. Esta apetência, que na maior parte dos casos deve ser subconsciente e não conscientemente metafísica, dá ao sujeito a vontade de conhecer algo por perceber que sua alma fica mais integrada, mais completa se ele souber aquilo. Esse é o detonador de toda a vida intelectual de uma pessoa. Quem não conhece algo por apetência metafísica, jamais dará um sábio. Esse desejo metafísico supõe, portanto, uma posição perante o assunto semelhante à da alma piedosa, séria, direita perante a Doutrina Católica.
Conhecimento abarcativo, mas desigual
Tomem um bom católico que quer estudar a Doutrina Católica. Isso já supõe o seguinte: não querer conhecer por igual tudo, mas adquirir um conhecimento suficiente do que lhe diz respeito, daquilo que ele deve saber, e alguns pontos ele deve almejar conhecer a fundo. O indivíduo cujo objetivo é conhecer tudo por igual, não quer conhecer nada, mas apenas se mostrar. Este não serve.
Aquele que quer conhecer alguns pontos com maior profundidade, à medida que estuda, vai enriquecendo sua alma e toma uma atitude contemplativa. E a sua sofreguidão pelo assunto vai indo mais longe, vai subindo, e quase que se poderia dizer existirem nele as três vias da vida espiritual: a purgativa, a iluminativa e a unitiva.
Na via purgativa, ele vai se interessando tanto por determinado assunto que ele acaba se desinteressando dos outros temas, a não ser enquanto se ligam com o principal. Na via iluminativa ele vai crescendo cada vez mais em conhecimento. Na via unitiva ele se torna um sábio, porque com suas reflexões, de tal maneira ele está unido ao assunto, que se torna capaz de adicionar coisas novas.
Eu gostaria de acrescentar que há alguma coisa vagamente comparável à união mística. O indivíduo como que se transforma no assunto, e o assunto se transforma nele. De tal maneira que é impossível estudar a matéria sem sentir a marca da personalidade dele. Mas é igualmente impossível tratar com ele sem ver a matéria, por assim dizer, viva nele. É o auge da via unitiva.
Despertar interesse e relacionar o conhecimento com os fatos da vida
O ponto de partida da formação seria despertar no curso secundário, e talvez já no primário, uma apetência. Mas não se trata de impor assim: “Você vai ser tal coisa.” Não. É interrogá-lo: “O que a sua alma pede?”
Então, encaminhar naquela direção, com um cuidado muito grande de não formar maníacos. Eu não acredito que um egiptólogo verdadeiro seja um maníaco que passa o dia inteiro dentro da pirâmide. Esse não serve de nada. Deve ser um homem comum, um chefe de família que cuida de algum negócio, se interessa pelos fatos que acontecem, está a par da vida, da Revolução e da Contra-Revolução, e daí tira as interrogações para seu estudo.
Quer dizer, as interrogações são um dos pontos mais importantes da vida intelectual. As perguntas devem surgir de dentro do cotidiano comum e dos problemas do indivíduo em contato com a vida de todos os dias.
Se não perguntou é porque não entendeu. Essa história de pensar que quando alguém nunca pergunta é porque entendeu tudo é própria a quem não entendeu nem mesmo o que é entender. Então, ele está no bas-fond da vida intelectual.
À procura do maravilhoso
Um dos pontos pelos quais o apostolado de alguns dentre nós é tão fecundo, antes de tudo é a bênção de Nossa Senhora, mas também é o fato de não ter nada do ensino cartesiano, de dizer o seguinte: “Eu vou então explicar a vocês o que é a Egiptologia. Porque antes de estudar o Egito é preciso saber o que é Egiptologia, senão não vai!” Dão naquelas coisas de um estudo escolar “ploc-ploc”3. Neste caso não, mistura-se aquilo com a vida, conta-se um fato. É nesse contato com a vida que se forma o cientista. É preciso ser um homem vivo.
Há uma necessidade que o indivíduo tem, do fundo da alma, de viver. Ele teria a necessidade de fugir desse mundo industrializado de hoje para uma forma de maravilha que ele só encontraria se fosse capaz de viver debaixo do mar, onde há um universo que refresca todas as imagens dele e lhe dá toda uma série de outras ideias. De maneira tal que ele é capaz de tomar um escafandro e ir ver um galeão sepultado nas águas. Mas se esse galeão for restaurado, levado para um porto e transformado em um museu, ele não vai, pois não tem interesse pelo galeão a não ser enquanto submerso. Por quê? Pela especial poesia existente no mar.
Direi uma coisa que parece muito audaciosa: um homem como esse, se tivesse fé e talento, poderia pintar aspectos do Céu parecidos com a vida submarina. Isso refrescaria as noções sobre o Paraíso, tirando-o desse padrão perpetuamente renascentista e pondo-o numa outra clave.
É provável que o Céu empíreo tenha uma porção de coisas dessas que nós não somos capazes nem de pensar, mas isso refresca uma série de noções.
Já pensaram o progresso que a cultura e a arte poderiam fazer a partir disso?
Quantos de nós, sem perceber, padecemos porque nunca nos embrenhamos pelas searas ignotas que dariam respiração a nossas almas.
Não estou certo do que vou dizer, mas é uma hipótese que levanto: Não seria um complemento interessante de toda cultura que o indivíduo fosse habilitado a imaginar, a se interessar e a estudar um, dois mundos mais ou menos reais, mais ou menos inexistentes, mas que representam o possível, o maravilhoso para ele?
Por exemplo, o menino gosta de comer aquele “algodão” de açúcar. Criança gosta de saborear aquilo, não tanto pelo gosto de açúcar, mas pelo maravilhoso. Ora, por que não explicam, não comentam tanta coisa assim? Pelo contrário, dizem: “Olha, menino, deixa disso. Chegou a hora de estudar Matemática!” Lá vai ele com raiva da Matemática.
Quando vemos descrições sobre como era o ensino no Ancien Régime4, vemos que ia nessa linha, mas sem o aspecto do maravilhamento e da temática “Revolução e Contra-Revolução”.
Discernindo o caráter sobrenatural e preternatural das realidades
Entretanto, alguém poderia pensar que essa temática R-CR não é senão o conceito católico do caráter militante da Igreja e da vida, de maneira tal que tendo esse conceito, domina-se toda a temática. Portanto, estude Anjos, demônios um pouco, pecado original, fraqueza do homem e ascese, pratique os princípios contidos no livro Revolução e Contra-Revolução (RCR), reprima seus defeitos, desenvolva suas virtudes, e você terá uma RCR viva em si mesmo!
Haveria muita gente que diria: “Está vendo? Esse é um homem de Fé e que dá doutrina sólida.”
Ora, não é só isso. Estamos neste mundo não só para travar esse combate, mas para conhecê-lo. E conhecendo-o, ver a vida, que é um objeto de contemplação, como reflexo de Deus na sua santidade e de luta contra o demônio na sua ignomínia. Evidentemente, não há identidade de situação. Não são dois deuses: um bom e um ruim. O demônio não se reflete nas coisas como Deus, mas mesmo assim, ele tem seus reflexos. Devemos aprender a amar a Deus nessa realidade chamada “luta”, em que conhecemos o bem e o mal, amamos o bem e odiamos o mal, em concreto, como existem. Porque isso nos foi dado para subir, depois, às mais altas cogitações do amor de Deus na medida em que nossas almas peçam.
Mas para isso, temos que amar a ordem do universo. Para amar essa ordem, temos que amar as várias ordens que a constituem, e odiar o contrário daquilo, isto é, o que o demônio está fazendo.
Não é uma luta em tese, mas como ela existe hoje. Esta é a batalha que devemos conhecer. Nosso amor e ódio devem estar postos ali, vendo Deus enquanto infinitamente superior a todas essas realidades, Autor de tudo quanto é bom e oposto a tudo quanto é mau. Pairando por cima de tudo isso há uma graça correspondente a um certo discernimento do caráter sobrenatural e preternatural dessas realidades e que, em certo sentido, é o melhor sol delas. Aí temos a R-CR.
(Extraído de conferência de 15/10/1986)
1) George Edward, 5o Conde de Carnarvon. Financiou a expedição liderada por Howard Carter, descobrindo a tumba de Tutancâmon em 1922 no Vale dos Reis.
2) Jean-François Champollion (*1790 – †1832). Egiptólogo francês que encontrou as bases para a decifração dos hieróglifos.
3) Expressão onomatopeica criada por Dr. Plinio para designar o defeito de certas pessoas que, desprovidas de intuição, minoram a importância dos símbolos e negam o valor da ação de presença. Querem tudo explicar por raciocínios desenvolvidos de modo lento e pesado, à maneira de um paralelepípedo que, ao ser girado sobre o solo, emite o ruído “ploc-ploc”.
4) Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.