O Batismo dá ao senso do ser a luz que ele procura, proporcionando um equilíbrio de todos os instintos, sem o qual o homem cai nos desatinos característicos do mundo de hoje. O desvario dos instintos é um fator muito importante do progresso da Revolução. O grande instinto fundamental é o senso do ser, que o indivíduo conhece por conaturalidade e por evidência absoluta.
As leis de funcionamento dos instintos constituem princípios muito claros que ajudam enormemente a compreender a história da Revolução tendencial. Porque os instintos humanos não jogam apenas em função de coisas materiais, mas, colocados diante de quadros de caráter intelectivo, são também capazes de reação. Sobretudo quando se trata de quadros que, por meios sensíveis, fazem-lhes perceber coisas intelectivas. Por exemplo, uma cerimônia eclesiástica faz entender ao homem realidades doutrinárias – como normas, princípios, verdades – através de meios sensíveis.
Equilíbrio instintivo e santidade
Essa correlação é evidente e tem por efeito que o instinto, com as suas mutabilidades, possui capacidade de saciar-se de verdades, como de erros, e querer modificações, porque é próprio do instinto mover-se assim.
Essa mobilidade dos instintos, essa espécie de desconjuntamento do instinto com a razão constitui uma causa profunda do perpétuo sofrimento do homem concebido no pecado original. O homem sem o pecado original não tinha isso.
É muito bonito ver como a graça atua na alma humana, porque ela dá ao homem, por uma espécie de experiência mística, um prenúncio do Céu e da vida de Deus, o sabor de uma eternidade longínqua da qual se tem uma antecipação aqui na Terra, e que é uma certa degustação – dentro de um caos que é preciso aceitar na batalha, no ardor, na consolação, no sacrifício – sempre acompanhada de algum elemento que tem seu papel no jogo dos instintos, enquanto ordenativo e que eleva. É a graça de Deus, única e incomparável, atuando até o fundo e dando um equilíbrio que o homem, pelos seus instintos, não seria capaz de conceber, mas que pacifica seus instintos e lhe confere santidade.
A meu ver, um exemplo magnífico disso são as obras de muitos pintores do século XV, mas de Fra Angelico de modo muito saliente e excelente.
Por exemplo, aquele quadro que representa São Domingos meditando provavelmente o Evangelho. O que há de equilíbrio instintivo ali, na linha do que estou dizendo, é um tesouro tal que, olhando para aquela pintura, não se sabe o que dizer. Faria bem ter esse quadro na sala de trabalho, com o intuito de embeber os próprios instintos daquele equilíbrio e daquela paz conferidos pela Escritura e pela graça.
Em grande parte, por sermos católicos, sentimos em nós o sumo equilíbrio e a santidade que esse fator coloca, pois o Batismo dá ao senso do ser, na sua inocência primeira, a luz que ele procura, proporcionando, in radice, um equilíbrio de todos os instintos. A pessoa que não tenha esse equilíbrio cai em convulsões, exageros, espasmos, torvelinhos, doidices, característicos desse mundo que estamos vendo.
O gótico flamboyant
Com efeito, é preciso olhar para o desvario dos instintos como um fator muito importante, embora não seja o único, do progresso da Revolução. Exemplifico com o fim do gótico. Quando chegou o gótico flamboyant, sentia-se que o gótico tinha dado de si tudo quanto devia. Entretanto, o gótico é tão excelente que se diria ser um estilo perfeito e, uma vez abandonado, qualquer outra coisa que viesse depois corresponderia a uma prevaricação.
Ora, há qualquer coisa por onde, se a virtude tivesse continuado, ter-se-ia a percepção artística de qual era o caminho por onde, continuando o gótico, ir-se-ia, entretanto, além dele. Mas como entrou a degenerescência da Idade Média, os homens não foram capazes de prolongar o gótico. Veio a Revolução que apresentou a Renascença. Por quê? Porque os instintos estavam exaustos do gótico também. A perpétua ogiva, o perpétuo vitral…
De fato, o perpétuo equilíbrio também precisa encontrar as suas variedades harmônicas ousadas, porque, do contrário, neste vale de lágrimas, até o equilíbrio perfeito cansa. Então, o próprio equilíbrio deve saber gerar, não os desequilíbrios, mas as unilateralidades harmônicas que tocam para um lado e depois para outro, fazendo disso um equilíbrio original.
Quer dizer, ir para a frente na linha da tradição, inovar no sentido da continuidade, tudo isso está relacionado com as leis de como os instintos podem ser alterados. Há certos momentos em que é preciso fazer a variedade, e outros nos quais as civilizações mudam e caem porque não houve a originalidade para tocar adiante.
Os instintos podem progredir. Quando eles se movem ordenadamente, vão exigindo continuidades e mudanças pelas quais eles se afinam e progridem.
Era preciso que, ao longo da História, a Igreja fosse mostrando a sua santidade, mas sempre variando harmonicamente, de tal maneira que a santidade da Igreja não fatigasse nunca. Ela só cansa os homens que não têm a alma reta. Aos homens de alma reta, ela não fatiga nunca. Porém, vai gerando santos e mais santos diferentes. É um progresso, portanto, com uma variedade enorme dentro da unidade. Suponho que os santos dos últimos tempos vão ser uma síntese de tudo isso.
Mongezinhos do Convento de São Bento, no Rio de Janeiro
Então, eu imagino ser esse o modelo de todas as variedades que os instintos humanos fariam, se os homens fossem fiéis à sua vocação e à graça. E que nós teríamos modalidades assombrosas de beleza da alma humana e das civilizações, se isso fosse feito assim.
Isso contraria a ideia errada pela qual se pode ser ranzinza, aborrecido, agressivo, medroso, dar largas aos instintos como quiser, não tem importância, desde que não se caia em pecado. Ora, isso não é verdade porque traz consigo raízes de pecado. E se essas raízes passam por convulsões loucas, as plantas delas nascidas o que podem ser?
Pelo contrário, os instintos educados desde quando a pessoa é pequena – com amor, bondade, continuidade e força – têm uma ordenação que mostra o quanto a vida não se reduz a raciocínios, mas consiste na educação que produz essa ordenação.
Eu não posso me esquecer da primeira vez em que fui ao Convento de São Bento, no Rio, e vi passar diante de mim, de repente, menininhos de doze ou treze anos vestidos de fradinhos, conversando no claustro, de dois em dois, com ares de mongezinhos. Perguntei a um frade que estava lá:
– Que crianças são essas?
– Esse é o pré-seminário beneditino.
Era preciso ver aquele hieratismo beneditino, o passo que eles davam, o modo pelo qual o escapulário preto caía para trás, aquele jeito todo como já ia se formando; uma maravilha.
Quando mais tarde conheci a palavra espanhola monaguillo, achei um encanto, e creio que originariamente designava esse “fradezinho” que estuda, ainda criança, no seminário. Suponho que o coroinha, por analogia, é chamado monaguillo, porque esses meninos com certeza ajudavam a Missas no convento. Eram os coroinhas do convento.
O grande instinto fundamental humano
A tendência ao mutável faz com que certas apetências do instinto caduquem legitimamente. É uma caducidade saudável, correspondente à tendência do ser humano para a mudança, que é um elemento propulsor do homem.
Na parábola do filho pródigo, Nosso Senhor deixa entender que a casa daquele pai era irrepreensível, por ser o pai irrepreensível, e que o filho deixou a residência paterna sem razão nenhuma. Teria mesmo deixado a casa paterna sem motivo algum? É evidente que houve uma saturação má dos defeitos, em relação à ordem dentro da residência. Esta saturação representou uma mudança das paixões desordenadas sobre os instintos. Os instintos passaram a pedir coisas más, em nexo com as paixões desordenadas. E isso o levou a sair de casa. Depois ele apanhou, passou a amar a ordem, e a graça o fez mudar. É muito bonito.
Eu julgaria ousado dizer que haja um instinto fundamental, o qual seja matriz de todos os outros instintos. Mas que exista instintos básicos dos quais os outros são variantes, nesse sentido matriz, se poderia afirmar. Tenho a impressão de que, nesse sentido, o grande instinto fundamental é o senso do ser, que o indivíduo conhece por conaturalidade e por evidência absoluta.
O senso do ser, com toda a sua riqueza prodigiosa, é correlato com o conceito de ser, mas não se deve confundir um com o outro. Tudo quanto o indivíduo pense em função do conceito de ser, tudo que se mova nele na linha instintiva é uma derivação do senso do ser. Por exemplo, o horror da morte, da podridão, de certas coisas hediondas, que são como que a expressão do aniquilamento, é instintivo e correlato com o senso do ser.
Nesse sentido, a meu ver, ele é um grande instinto fundamental humano. E esse instinto do ser, assim considerado, o animal não tem. Embora seja dotado de instintos, o animal não sabe o que ele é. E o senso do ser ao qual me refiro é intelectivo. É, sem dúvida, um sentido, mas é o homem inteligente que sente, embora não seja propriamente um ato de abstração. É o fundamento de todo o outro jogo dos instintos.
O senso e o conceito de ser existem para viverem juntos, completam-se. Como eu não sou um Anjo, o meu senso do ser tem que ser corroborado por um conceito. Tão logo minha inteligência comece a funcionar, o meu senso do ser passa a se desenvolver e a se aperfeiçoar, porque já existe a noção do ser, embora muito embrionária, própria de uma criança. Mas a criança já tem um conhecimento do ser, em si, primeiro, evidente, como que instintivo, ou seja, que toca nos instintos; o senso e o conceito de ser vêm juntos. Se o ser humano não tivesse, com a inteligência, também o instinto do ser, não seria capaz de ter o conhecimento do ser. São elementos que se completam.
Senso de nossa contingência
A única ideia inata existente no homem é a do ser. Compreende-se, porque toda ideia o homem adquire em função de outra ideia. Assim, é preciso haver uma primeira ideia que não nasceu do nada, do contrário o ser humano não é capaz de ter nenhuma.
São Tomás, para provar que existem evidências, argumenta que todo raciocínio é deduzido de premissas. Se não existissem premissas evidentes que independem de um silogismo, nunca haveria um primeiro raciocínio certo.
Assim, uma pessoa como Helen Keller1, por exemplo, que só conheceu o mundo externo pelo tato, ao receber o primeiro contato, concluiria instintivamente o seguinte: algo que não sou eu tocou em mim. Donde se vê que esta ideia “eu e algo” – que são noções de ser – estava dormente nela.
É essa espécie de monarquia do senso e da ideia do ser que preside toda esta matéria de que estamos tratando.
Quando um indivíduo toma droga para entrar no reino do irreal, ele tem o seu instinto do ser viciado, deformado. O desejo de ingerir droga para evadir-se da realidade, uma vez consentido, é um pecado contra o instinto do ser, porque a pessoa deve ter apetência da realidade, mesmo quando dolorida, inclusive porque, sendo concebidos no pecado original, nós temos e devemos ter uma certa apetência de sofrer, como algo que põe em ordem nossa alma.
O senso de nossa contingência é, a meu ver, uma das modalidades do instinto do ser. Certamente, se não sentíssemos nossa contingência, não tenderíamos para Deus. Por outro lado – e isso é muito bonito – se sentimos nossa contingência é porque dorme em nós um certo senso do absoluto. Exatamente, um dos pecados que a Revolução Industrial mais alimenta em nós é dispensar esta necessidade que a alma tem do absoluto, da lógica última, da regra certa, e substituir pelo superficial, episódico, efêmero que produz um contentamento de periferia no homem, por onde as profundidades da alma ficam abandonadas e se transformam em antros tenebrosos.
Revolução Industrial: perpétua evasão do absoluto
A Revolução Industrial leva a uma perpétua evasão do absoluto para dentro de uma miragem, que é o efêmero, o circunstancial, dando-nos a ilusão de que isso pode preencher a falta que nos faz o absoluto. Então, pondo uma impressão em cima da outra e levando essas impressões ao paroxismo. O sofisma do demônio está nisto: “Queres o absoluto? Está bem. Eu te dou o paroxismo que te faz tocar com os dedos o absoluto.” Ora, isso é mentira. O paroxismo não faz tocar o absoluto. O absoluto leva determinadas coisas a seu legítimo paroxismo, mas o mero paroxismo não conduz ao absoluto.
Então, a pessoa sai correndo de um trem, entra num avião, desce do avião e toma um ônibus que a espera na pista e a conduz até o local para onde um outro mecanismo já levou as malas; ela fica esperando junto à esteira que vem trazendo a bagagem. Depois, toma um táxi e ruma para o hotel onde, à maneira de uma colmeia, entra num alvéolo… São impressões, arranjos, etc.
Quando um indivíduo, cansado de valores relativos, chegou a esses paroxismos tem uma ilusão de que se deu a ele o absoluto. Ora, o absoluto não é isso. Pelo contrário, a continuidade patriarcal, esta sim, faz tocar no absoluto, e é muito mais conforme às exigências do senso do ser.
Em francês faz-se a distinção entre gourmet e gourmand. O gourmet é a pessoa que aprecia alimentos de excelente sabor, enquanto o gourmand ingere quantidades. Mas por ser concebido no pecado original, o homem procura, por uma via ou por outra, de algum modo satisfazer apetências de seu corpo que dão ao seu instinto do ser a ilusão de que ele está satisfeito. Porém, o que comanda tanto o gourmet quanto o gourmand é uma necessidade do senso do ser.
Senso da família
Algo disso se passa em relação ao instinto de sociabilidade. Por mais que a pessoa tenha horror à multidão, à massa, se ela é obrigada a passar longo tempo de cama devido a alguma enfermidade, ao sair pela primeira vez tem uma sensação de que ver muita gente completa uma exigência do instinto do ser.
O homem pode fazer, isto sim, um sacrifício saudável, que já não vem de uma apetência instintiva, mas é a vontade de sacrificar-se. Contudo, mesmo nisso creio estar presente algo de instintivo, porque o pecado deixa uma marca que “frita” o instinto. Enquanto não vem a absolvição, o homem ferve. Recebida a absolvição, ele tem vontade de limpar-se daquilo que já não está nele, mas que lhe deixou uma certa sujeira. Então ele faz penitência. Daí o Purgatório, aliás. As almas do Purgatório têm que restituir um certo gozo ilegítimo que tiveram. Elas estão contentes de estarem no Purgatório para se libertarem disso. Sofrem sim, mas por uma necessidade onde o senso do ser participa e, em certo sentido, comanda.
Há, ao lado do senso do ser, o que se poderia chamar o senso da família, que não é senão um desdobramento do senso do ser. Quer dizer, é um aspecto das operações do senso do ser por onde o indivíduo sente que, pelo fato de pertencer a uma mesma estirpe, o ser dele participa mais do de seu pai e sua mãe e seus irmãos do que dos parentes mais distantes. Mas que ele e os parentes participam mais um dos outros, como ser, do que os estranhos à família. Isso forma exatamente uma ordenação que vai se diluindo quase até não existir, como hoje em dia. Precisamente porque o senso do ser está obliterado, perseguido de todos os modos possíveis em nossos dias.
Temperamento
Com base em minhas observações – não fiz um estudo aprofundado sobre o assunto –, eu seria levado a dizer que o temperamento se refere ao modo pelo qual vibram nos nervos do indivíduo as impressões e emoções. Pode ser que a inteligência crie condições muito difíceis para o bom funcionamento dos nervos, das glândulas e tudo o mais, quando o indivíduo adota uma ideia ou um sistema filosófico falso; como pode ser também que o conjunto das disposições nervosas, glandulares e outras criem condições muito difíceis para o indivíduo ver a verdade. Mas fica sempre como fiel da balança a inteligência e a vontade capazes de discernir e responsáveis por não seguir a verdade.
Isso tem relação evidente com os instintos, no seguinte sentido: o senso do ser, que concebemos como sendo espiritual, não é um elemento do puro espírito; tem um certo nexo com o próprio ser do corpo e com algo que determina a unidade do corpo e de todos os seus movimentos, e que comanda o corpo como o senso do ser comanda todo o resto.
Por assim dizer, seria a “torre de comando” do homem: a alma com a inteligência e a vontade, suas deliberações espirituais e livres; em seguida, essa parte dos sensos e, depois, a dos temperamentos, a vida biológica, influindo uns sobre os outros continuamente. Porém, com o comando da inteligência e da vontade. Comando não fácil, mas certo; às vezes, na bruma, mas diáfano. O homem, se for reto, sente que ele pode, por sua inteligência, saber o que deve saber e decidir o que deve decidir. A questão é saber navegar na bruma.
“Eu sou aquele que é”
Seria muito bonito se pudéssemos constituir uma análise de toda a vida espiritual a partir do exame de como é nosso senso do ser, se ele está em ordem; como é a ordem do senso do ser e como nós estamos construídos em função disso. Seria uma meditação que eu colocaria como desdobramento do primeiro Mandamento, porque amar a Deus sobre todas as coisas é conexo com isso. Aliás, na busca do efêmero oferecido pela Revolução Industrial, descrita acima, há um ateísmo virtual, é uma civilização ateia. O coletivismo, enquanto nega a individualidade e quer absorver tudo numa pansociedade, nega o senso do ser.
Em Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo contrário, nós encontramos a afirmação desse Ser numa plenitude, numa força, numa bondade, numa irradiação solar especial, sublime, equilibrada, harmônica. E de modo muito eloquente na devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Evidentemente, este é o cerne.
Na concepção da Revolução, o Deus transcendente é uma mentira que o homem, iludido pela ideia de que Ele é um indivíduo, fabrica. Mas verdadeiro é o pandeus, que tem como imagem na realidade o pan-individualismo, o pampsiquismo.
Nessa clave, nosso grande brado deve ser no sentido de despertar nos indivíduos a experiência, por assim dizer, moribunda do próprio “eu”. Então, diante da morte do próprio “eu” alguns não se deixam tragar pela morte, e aceitam a ideia do seu próprio ser, da transcendência recíproca dos seres e da ordenação hierárquica das coisas. No fundo, veem que algo transcende. E se algo transcende, todas as alteridades são verdadeiras.
Essa é a ordem do bem. A conversão leva à aceitação da Religião Católica nas suas expressões mais genuínas, puras e nobres. Ao dizer “Eu sou aquele que é” (Ex 3, 14), Deus Nosso Senhor afirmou: “Eu sou o Ser absoluto, em função do qual todos os seres relativos e contingentes se explicam.”
(Extraído de conferência de 29/12/1985)
1) Escritora e conferencista norte-americana. Foi a primeira pessoa surda e cega de nascimento a conquistar um bacharelado (*1880 – †1968).