O homem possui instintos nos quais, devido ao pecado original, há algo de desordenado. Para se conseguir a ordenação natural dos instintos é necessária uma espécie de educação e propensão pelo maravilhoso. Essa é propriamente a via pela qual as almas caminham no amor de Deus.
Por ser um animal racional, o homem tem dois jogos de instintos: os do corpo e os da alma. Os instintos da alma são muito mais nobres do que os do corpo, embora estes exerçam uma influência sobre aqueles. Basta ver, por exemplo, o instinto de conservação, como ele existe no bicho e no homem.
Os instintos do corpo se conjugam com os da alma
Ao ter notícia de uma coisa que lhe é nociva, o bicho foge ou avança. Isso é muito menos nobre do que faz o homem que conhece por que aquilo é nocivo, e estuda o modo de avançar ou de recuar.
No homem, por causa de nossa natureza espiritual e animal, os instintos do corpo se conjugam com os da alma formando um movimento harmônico, mas composto de elementos diversos. Não é, portanto, como se fosse um só tipo de instinto.
Comecemos por estudar os instintos do corpo para depois analisar o efeito disso nos da alma. Em seguida, consideraremos a relação deles com a temperança e a intemperança.
Conosco passa-se um fenômeno que com os animais não se dá. Por não ter sido atingido pelo pecado original, o animal tem instintos sempre harmônicos. Não se conhece um animal – exceto se estiver louco – que proceda de um modo contrário aos seus instintos. Estes são sempre equilibrados e, quase se diria, mecânicos, enquanto que no homem os instintos são desequilibrados e difíceis.
Tomemos como exemplo, num homem, a tendência ao repouso. Esse instinto existe de maneira diferente nos diversos corpos humanos, de tal maneira a se poder dizer que em cada homem há uma determinada peculiaridade, por onde o modo de repousar nunca se repetiu nem se repetirá em nenhum outro homem, o que corresponde às apetências e, neste sentido, aos instintos de seu corpo, como também, por conexão, aos instintos da alma.
Conheci um indivíduo com uma natureza, por alguns aspectos, tão plácida que ele não se movia durante o sono a noite inteira. Ele me disse ter feito várias experiências de, antes de se deitar, à noite, pegar uma parte do lençol, formar um tufo e segurar na mão. Na manhã seguinte, quando ele acordava, o mesmo tufo estava intacto. Quem o conheceu notava isso muito presente em várias maneiras de ser dele. Enquanto ele dormia, era um instinto animal que estava imperando, exclusivamente. Mas algo disso correspondia à alma, por onde ele levava uma vida muito calma, tranquila, metódica, com modos e gestos pacatos. Vê-se que o corpo tem um certo jogo de instintos diferente, mas condicionado ao da alma.
Repressão ou estímulo a certas apetências
Em função disso, algumas coisas podem causar bem ao instinto do corpo porque o estimulam, e outras por lhe fazerem contrapeso servindo de corretivo. Por exemplo, é possível que um homem exageradamente fogoso, por instinto, seja propenso a frequentar ambientes com penumbras, a tomar muito sorvete, a vestir-se com colarinho bastante largo. Por outro lado, alguém muito indolente pode receber uma “chicotada” tomando determinado tipo de bebida. Assim, para um, o instinto pede a penumbra, para outro, o licor.
Entretanto é possível acontecer que, para corrigir uma carência ou estimular alguma apetência, o instinto induza a pessoa a um exagero, o qual pode levá-la à intemperança, ou já constitua, de si, uma ponta de intemperança.
Posso admitir, por exemplo, que uma pessoa muito débil, obrigada a enfrentar condições de vida difíceis, sinta-se muito estimulada tomando Cointreau. Ora, pode-se conceber que um homem, sentindo-se dignificado e mais varonil depois de ter tomado um gole de Cointreau, fique viciado nesse licor, a partir disso. Não se trata apenas do bêbado pelo gosto de beber, mas é por uma razão mais complexa, mais delicada: um bom movimento por onde ele procura completar-se no Cointreau. Esse bom movimento leva-o a exagerar a dose.
Temos assim, ao contrário do animal, instintos nos quais sempre alguma coisa é desordenada e pede uma repressão ou um estímulo. Por conseguinte, o recurso a determinados agentes para reprimir ou estimular determinadas apetências dá ao homem um deleite no uso desses agentes, que o gosto pode conduzi-lo ao exagero.
Sem dúvida, muitas vezes o indivíduo adquire um vício daquilo que sua natureza não precisa. Por exemplo, numa roda de meninos fica bem fumar, e ele é o único que não fuma. Então, começa a fumar. A partir desse momento, ele se habitua ao deleite proporcionado pelo cigarro, para o qual, até então, não tinha apetência. Trata-se, portanto, de uma pura degustação a que ele se habituou inutilmente por um ato de servidão ao ambiente onde estava. Nesse caso não notamos nada de nobre na origem desse vício.
Contudo, creio que em muitos casos, quando se fala do mero bêbado, talvez se pudesse afirmar a existência de algo razoável na origem da bebedeira; mas, por se ter destemperado e desfeito o elemento razoável, entrou o mal.
Há instintos mais atingidos pelo pecado original
Isso tem o seu efeito prático: se vemos que um homem caiu na intemperança por um motivo originariamente bom, é uma ajuda para ele explicar-lhe o que se passou. Não é, portanto, a pura descompostura: “Seu bêbado, seu cretino, seu nojento!”, mas sim um auxílio.
Qual a vantagem dessa ajuda para ele?
Como percebe que nem tudo quanto estão recriminando nele é mau, ele guarda uma espécie de reserva contra a descompostura que está levando, como quem diz: “Vocês não compreendem bem, mas isso é bom por um lado. Logo, não posso aceitar essa descompostura por inteiro.” E por não poder aceitá-la inteiramente, ele toma isso como pretexto para continuar no seu vício.
Quem o ajude, deve tirar-lhe o pretexto dizendo: “Por esse lado, isso seria bom; mas você se desviou e por isso chegou a tal ponto…”
Acontece que em nós, seres humanos, há um ou mais instintos especialmente atingidos pelo pecado original. À medida que o homem peca nesses instintos, vai desequilibrando todos os outros, por via de consequência.
O jogo temperamental do homem é como um móbile
Há uma espécie de ornato de origem chinesa, chamado móbile, que se pendura nos lustres, constituído de um sistema de pequenas alavancas e hastezinhas, feitas com material delicado imitando cristal. Esse adorno é calculado de tal maneira que um vento, batendo num pontinho qualquer desse sistema de alavancas, move todas as hastes e inicia-se uma “dança” sempre diferente da anterior.
O jogo temperamental de um homem é como um móbile. Se em algum ponto ele consentiu que fosse puxado, todas aquelas partes do móbile começam a se mexer. E, por um consentimento a um instinto desordenado, entra a ciranda de uma espécie de desequilíbrio total.
Dizer que, ao contrário, a experiência demonstra haver pessoas equilibradíssimas em certos pontos, mas desequilibradas em outros, não corresponde à realidade. Podem existir alguns pontos menos desequilibrados do que outros; mas, onde se instalou um desequilíbrio, o sistema corrosivo de todos os desequilíbrios começa a estalar. E, à maneira de uma infecção que se instala em um membro, mais cedo ou mais tarde, se não é debelada, acaba gangrenando todo o corpo.
O problema é ter a integridade, eu quase diria, a pureza de não consentir em nada. Porque num ponto onde se consinta num desequilíbrio, todo o mecanismo se altera. Então, começa uma batalha para conservar o equilíbrio aqui, lá, acolá. Seria mais ou menos como um homem puxando um móbile, e eu querendo segurar com a mão todas as outras partes para não se moverem. Não vai! Enquanto estiver um homem mexendo ali, não há mão que segure todas as outras hastes.
Então, ou o indivíduo está num estado em que exerce sobre os instintos uma vigilância completa, ou, mais cedo ou mais tarde, ele começa a rolar para intemperanças progressivas que podem tomar, e muitas vezes tomam, proporções assustadoras.
Equilíbrio implícito dos instintos
Diante dessa descrição a pessoa se sente mais ou menos desconcertada e diz: “Não seguro isso. É desejável segurar e é uma miséria que eu não o faça; reconheço ter culpa em não segurar, mas não me peçam isso porque é um trabalho tão heroico, hercúleo e constante, que não tenho forças.”
Ora, a alma fortemente habituada a considerar as belezas metafísicas, transesféricas1, voltada fortemente para o Absoluto e o sobrenatural tem uma atitude – instintiva também – de oposição aos desequilíbrios. Isso oferece ao indivíduo a possibilidade de não fazer de cada repressão ao instinto uma caçada consciente, mas lhe dá uma atitude de equilíbrio implícito, que é o primeiro equilíbrio diante do primeiro desequilíbrio. Dou um exemplo:
Imagine um homem viajando a bordo de um navio que está balançando muito. Se ele tem seu jogo de instintos bem feito, mesmo estando em pé e conversando com alguém sobre uma notícia no jornal, é só o navio começar a se mover que seu corpo vai fazendo contrapeso sem ele estar pensando nisso.
Nessa situação, vindo um movimento mais forte, o qual lhe exija mais atenção, ele já está muito mais adiantado na repressão ao tombo do que um homem que só se dará conta da sacudida do navio quando quase tiver ido para o chão. Isso porque, neste segundo caso, a tendência dos instintos para o equilíbrio é muito frouxa, está habitualmente como uma trouxa de carga. Resultado: até se mobilizar, ele não aguenta.
Assim, o equilíbrio moral e o psicológico comportam essa posição. Um é o homem dotado de senso do maravilhoso, diante de quem tudo que o desequilibra instintivamente toma essa postura; e ele tem uma prevenção contra o desequilíbrio mais forte e sério, que é uma condição de vitória. Pelo contrário, o homem largado, não voltado para o maravilhoso, tem uma condição prévia de preguiça para se entregar e, portanto, resistirá mal à força do jogo dos instintos.
Outro elemento a considerar – uma coisa muito mais adquirida do que inata – é a boa educação. Ao se tornar instintiva, a boa educação leva o indivíduo a notar logo quando não está agradando e, espontaneamente, tomar uma posição acertada diante da pessoa com quem ele trata para agradá-la. Pelo contrário, quem não tem essa formação, vai desagradando, cometendo gafes, fazendo besteiras, e se lhe disserem:
– Preste atenção no que você disse!
Ele responde:
– Não consigo! Ou trato do tema de que estou falando, ou cuido de suas “bonequices”, do modo de pegar os talheres, etc. Tratar de uma coisa séria e, ao mesmo tempo, manusear com distinção e elegância uma xicarazinha de café ou cortar bem um bife, não faço. Não é possível.
Mas por quê? Porque o jogo dos instintos não foi bem afivelado. Em última análise, porque o gosto do maravilhoso, do transcendental, do absoluto não dominou a alma dele. Se dominar, tudo isso, por um movimento espontâneo, vai tomando posição.
Ordenação natural dos instintos e senso do maravilhoso
Nós deveríamos conhecer o jogo dos nossos próprios instintos a partir da posse habitual, do interesse maior, do gosto pelo maravilhoso.
Quando a alma se dá ao maravilhoso, o efeito próprio dele é fazer voltar a apetência de todos os instintos – que de algum modo se satisfazem no maravilhoso – para esse ponto maravilhoso. De maneira que só naquilo que os instintos têm de baixo é que são incompatíveis com o maravilhoso. Em tudo o mais não são.
Tomem, por exemplo, um menino com o senso do maravilhoso muito desenvolvido e que, tendo recebido objetos feitos de madrepérola, está brincando encantadíssimo. Se alguém quiser puxar com ele uma conversa muito banal sobre mecânica, isso não fará mal à sua alma porque ele está tão voltado para coisas mais altas que poderá ouvir aquela conversa por amabilidade, por afabilidade, e até pôr duas ou três perguntas sobre o assunto, mas seu coração não estará naquilo. Se lhe sugerirem renunciar a brincar com suas madrepérolas para assistir a uma corrida de automóveis, aquela torcida pela velocidade não lhe diz nada, porque ele prefere o gosto de ver as madrepérolas.
Isso porque, ao conhecer algo muito maravilhoso, somos levados a amar, por conexão, ou estar abertos para uma série de outras coisas maravilhosas que não conhecemos. É um universo. Essas maravilhas de tal maneira desdobram nossas apetências harmônica e ordenadamente, que a tendência para as coisas mais baixas decai muito.
É uma ordenação natural dos instintos, mas que vem do amor ao maravilhoso. Essa espécie de educação e propensão pelo maravilhoso, antes de tudo pelo maravilhoso moral, mas também pelo artístico e por todas as formas de maravilhoso, por assim dizer, chumbando o homem no maravilhoso, é propriamente a via pela qual as almas caminham no amor de Deus.
(Extraído de conferência de 9/4/1986)
1) Relativo a “transesfera”. Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.