A sábia organização que o espírito católico tinha dado à estrutura social da Idade Média se baseava no princípio de subsidiariedade, o qual vivificava todas as classes, inclusive o operariado. O próprio Karl Marx afirmou que a era de ouro do operário europeu foi a Idade Média. O liberalismo e o socialismo, obcecados pelos erros da Revolução Francesa, desprezaram esse sapiencial princípio, o que causou graves desgraças.
As duas formas mais conhecidas, mais consagradas de democracia são a socialista e a individualista. A democracia individualista, também chamada liberal, considera que o tríplice lema sobre o qual a Revolução Francesa pretendeu construir o mundo moderno – liberdade, igualdade, fraternidade – se executa por meio de um regime em que todo o poder vem do povo, onde, para os homens serem verdadeiramente livres, o Estado tem a menor interferência possível.
Lema da Revolução Francesa: uma contradição
Os socialistas, pelo contrário, julgam que esse lema não se realiza bem no liberalismo porque, uma vez que se dê liberdade, aparece necessariamente a desigualdade. Dado o fato de que os homens, por seus predicados, suas qualidades, são desiguais, cria-se a possibilidade de um enriquecer-se, tornar-se célebre mais do que o outro; depois naturalmente transmitem isso aos filhos por via de hereditariedade, e por esta forma se estabelecem desigualdades também de famílias e de educação.
Então é preciso haver um Estado muito autoritário que intervenha para assegurar a igualdade, obrigando as pessoas a terem mais ou menos o mesmo nível.
Chegar-se-ia, assim, à conclusão de que o lema da Revolução Francesa existe apenas na aparência, havendo uma contradição por onde quem quer realizar a igualdade com a liberdade não consegue, pois uma traz o sacrifício da outra: quem quiser a liberdade prejudica a igualdade, quem desejar a igualdade lesa a liberdade.
Essa situação deu origem, já no século XIX e depois no século XX, a discussões, polêmicas, lutas partidárias e até guerras civis sem fim. É de se perguntar como no século XIX as pessoas não viam os absurdos dessas duas formas de governo.
Antes de entrar, então, na exposição do que seria uma democracia equilibrada, verdadeiramente católica, devo mostrar um pouco qual é o fundamento último dessas duas posições, de maneira a compreendermos como cada uma, levada por uma unilateralidade, pode não ter visto o absurdo da outra posição. Assim entenderemos melhor o que há de sensato, de criterioso na postura católica.
Segundo o liberalismo, o Estado somente deve zelar para que não haja crimes
Para entendermos bem o individualismo precisamos considerar os princípios fundamentais do liberalismo, um dos quais é o seguinte: o homem é naturalmente bom e, portanto, concedendo-lhe a liberdade, ele faz o bem. Aplicado ao nosso País, por exemplo, o bem do Brasil é o bem dos brasileiros. Ora, cada brasileiro entende melhor do que ninguém qual é o seu próprio bem. Logo, se deixarmos a cada brasileiro a liberdade, ele vai providenciar do melhor modo possível seu próprio bem. Conclusão: se dermos toda a liberdade a noventa milhões de brasileiros, o Brasil realizará a sua própria felicidade. Portanto, liberdade é igual a felicidade.
A isso se faz a seguinte ressalva: esse raciocínio está exagerado, pois há conflitos de interesses nos quais a liberdade absoluta pode chegar até ao crime.
Ao que o liberal responde ser verdade, e por isso a função do Estado consiste exclusivamente em assegurar um governo que evite as ações de caráter criminoso, as injustiças. Desde que sejam evitadas as injustiças e os crimes, dê liberdade a todo mundo para tocar para a frente sua vida como quiser. O Estado é principalmente policial e judiciário, faz leis para impedir crimes, tem uma polícia para pegar os criminosos, um aparelho judiciário para julgar, prender, ou matar, conforme a legislação, as pessoas que tenham cometido crimes.
Fora isso, o Estado não deve fazer nada. Então, dirigir o comércio, ter escolas, indústrias, estimular a cultura, as belas artes, é sair de sua tarefa. O Estado precisa exclusivamente evitar o crime o que, na expressão dos liberais, se chamava zelar pela ordem pública e os bons costumes. Assim, evitada qualquer infração à ordem pública e aos bons costumes, o Estado realizou sua tarefa.
Países prósperos, modelos de liberalismo
Para os liberais, a maior prova da eficácia desse sistema é o fato de que as nações onde há uma ampla liberdade alcançam uma grande prosperidade, e argumentavam com os Estados Unidos, os quais, na época em que essas questões se punham, estavam em plena fase de progresso.
Esse exemplo da América do Norte se justificava da seguinte maneira: se o homem é feito para ser livre, então o melhor modo de explorar os recursos naturais deve ser a liberdade, porque a natureza não pode conter uma contradição. E se está na natureza do homem ser livre, deve estar também na natureza da agricultura, da pecuária, do comércio, da indústria que sejam exercidas por homens livres, do contrário haveria um choque na ordem natural.
Então, a essa bondade do homem correspondia uma bondade da ordem da natureza. A ordem natural é boa, o homem trabalhando à vontade não pode causar colisão. Viva os Estados Unidos, essa é a experiência!
Compreende-se facilmente que essa doutrina pode ter provocado no século XIX muita admiração, porque ela também foi praticada pela outra grande potência industrial de então, a Inglaterra. Durante grande parte do século XIX, a Inglaterra foi fundamentalmente liberal e, sendo a rainha dos mares, constituía o maior império financeiro da Terra, de maneira que a vida econômica do mundo se regia muito mais a partir de Londres do que de Washington. As duas nações mais liberais da Terra estavam no ápice da conquista, do liberalismo, do progresso.
Havia outra nação superliberal também que, embora pequena, funcionava como um relógio: a Suíça. Então, argumentava-se: A Suíça é uma nação liberal, reunindo povos de três línguas diferentes – o alemão, o francês e o italiano – convivendo perfeitamente uns com outros; não há problemas entre eles porque se deu liberdade. A liberdade é a fórmula!
Convulsão social nas relações entre patrões e empregados
Contudo, essa impostação durou apenas algum tempo porque, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos, começou-se a constatar que, pela própria pressão do desenvolvimento econômico, a liberdade tão falada estava gerando absurdos. O primeiro deles era na relação entre patrões e operários.
Com efeito, verificou-se da parte dos patrões uma tendência a oprimir os operários, pagando-lhes o menor salário possível. Isso ocasionou na Europa as primeiras crises sociais.
Essa tendência encontrava sua causa no próprio progresso. Quando começaram a ser introduzidas nas fábricas europeias as primeiras grandes máquinas, decorrentes do progresso da metalurgia no século XIX, isso ocasionou a demissão de dezenas e até de centenas de operários, conforme as capacidades e as características da máquina e da indústria. Lançados assim na miséria, esses operários passavam a constituir mão de obra facilmente explorável pelos patrões que, devido à grande quantidade de desempregados, contratavam operários pagando salários muito baixos.
Essa tremenda opressão do patronato sobre o operariado se generalizou por todos os países que possuíam indústrias.
Considerando tão somente esse campo da vida social, já se nota como uma liberdade completa não é possível. E os socialistas tomavam essa impossibilidade – que realmente deu origem a agitações sociais, conflitos graves de toda ordem na Europa e nos Estados Unidos – para tentar impor a igualdade por meio de leis niveladoras.
Por exemplo, diminuindo a diferença entre o salário do trabalhador manual e o do trabalhador intelectual, dirigindo a economia de maneira a fazer com que, nas relações capital-trabalho, a distinção entre patrão e operário tenda a desaparecer também.
Nessa luta entre patrões e operários criaram-se os sindicatos de trabalhadores que passaram a se revelar mais poderosos do que as associações de patrões, pois os operários, fazendo uma greve, o governo socialista os mantém, mas se a empresa ficar parada durante a greve, quem perde é o patrão porque ele é obrigado a manter toda uma estrutura custosa, correndo o risco de ir à falência.
Esses sindicatos começaram a tomar a direção e a impor a proletarização das indústrias e a transformar-se no maior poder no Estado, de maneira que já Pio XII assinalou o perigo de governos se tornarem dominados pela pressão sindical.
Mito comunista à maneira de uma religião fanática
Compreende-se perfeitamente que liberais e socialistas não tenham visto o seu próprio erro durante algum tempo, pois uns e outros estavam obcecados pelas máximas da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Máximas fundamentalmente falsas na perspectiva em que aquela Revolução as tomava. Por outro lado, também porque, antes de pôr em prática essas teorias, tudo parecia bonito; quando se ia aplicá-las, davam num verdadeiro desastre.
Desastre do socialismo, por exemplo, é a queda da produção. Em todos os países socialistas a produção cai porque não há estímulo para o progresso. Imaginem um bom datilógrafo consciente de que, se ele trabalhar muito, será bem remunerado, quiçá promovido, e permanecerá vários anos numa empresa como excelente profissional. Ainda que não passe de um datilógrafo, o ordenado vai subindo, porque ele será disputado por outras empresas e, por causa disso, poderá impor o salário que queira.
Suponhamos um outro datilógrafo ciente de que, por mais que ele trabalhe, não vai ganhar mais do que determinado valor, pois o socialismo nivela os ordenados. Esse homem não vai trabalhar com afinco. Pelo contrário, vai produzir o mínimo possível.
Vemos o resultado dessa política nos países comunistas, onde não há promoção alguma e os salários são todos nivelados. Consequência: as produções decaem, todo mundo faz corpo mole. Daí a pobreza desses países.
Qual a razão pela qual os comunistas, levados pelo mito da igualdade, querem impor a todo custo esse regime ao mundo inteiro, apesar do fracasso? Evidentemente porque eles têm um mito à maneira de uma religião fanática, por onde a igualdade na miséria é melhor do que a desigualdade na prosperidade.
Necessidade da autoridade
Vejamos agora, em linhas gerais, a posição da Doutrina Católica diante desse problema.
O homem foi constituído por Deus de tal maneira que até no Paraíso terrestre haveria necessidade de uma autoridade. Se Adão e Eva não tivessem pecado, seus descendentes continuariam no Paraíso e ali constituiriam a sociedade humana.
Naturalmente seria tudo diferente do que é hoje. Por exemplo, isentos do pecado original, os homens não estariam sujeitos à doença e à morte. Seu trabalho seria um exercício agradável de suas faculdades para atingir objetivos equilibrados de progresso, com o emprego de tempo deleitoso e, portanto, ninguém procuraria sonegar o trabalho. Por outro lado, o homem teria um domínio e um conhecimento extraordinários da natureza. Isso determinaria uma organização da vida completamente diferente do que é hoje. Não obstante, os homens organizariam uma civilização.
Ora, apesar da grande inteligência e da vontade reta de todos os homens no estado de inocência com a graça, a Igreja nos ensina que seria necessária a existência de uma autoridade, não para reprimir os crimes, pois estes não existiriam, mas a fim de mandar. Porque as pessoas têm pontos de vista diferentes e é preciso haver quem olhe para a esfera de ação coletiva, preste atenção não apenas no bem privado, mas diga a cada um como agir em favor do bem comum.
Essa autoridade, portanto, decorre da natureza das coisas. E como Deus é o Autor da natureza, toda autoridade vem de Deus e é preciso respeitá-la. Considerar que a autoridade existe só para a mera repressão do crime é um verdadeiro disparate.
Então, nos perguntamos qual é o limite da autoridade, como podemos limitá-la de maneira que ela não dê nos absurdos do liberalismo nem do socialismo.
No sapientíssimo princípio da subsidiariedade se conciliam a liberdade e a autoridade
Para isso a Doutrina Católica usa um princípio muito empregado na Idade Média e que deu, naquela época, os melhores resultados: o princípio da subsidiariedade.
Com efeito, há diversas situações para as quais o homem, ou mesmo um grupo, não basta a si próprio, necessitando ser auxiliado, subsidiado.
Poderíamos exemplificar com várias famílias morando em torno de uma fábrica ou de uma igreja. Em certo momento, o número de famílias torna-se bastante grande para entenderem a necessidade de um governo que fizesse o que nenhuma família realiza: cuidar das ruas, do calçamento, da iluminação pública e de uma porção de coisas análogas. Como uma família não pode fazer isso, constitui-se um município que dá às famílias o que elas sozinhas não poderiam ter.
O mesmo se poderia dizer dos municípios. Vários municípios de uma mesma zona se congregam para formar um Estado porque, ligados entre si, melhor tratam dos interesses comuns. Cada município é tão livre quanto possível, mas o que ele não pode fazer só, o Estado realiza para vários municípios.
Para dar o exemplo brasileiro, a Federação ou os Estados Unidos do Brasil existem para assegurar ao conjunto dos Estados aquilo que cada um não consegue só por si: exército, marinha, aeronáutica, relações exteriores, uma série de outros recursos que só a federação pode obter em quantidades e proporções suficientes.
O princípio de subsidiariedade se compõe dos seguintes elementos: primeiro, a ideia de que a sociedade é constituída de membros vivos; segundo, cada membro deve tender livremente a se bastar a si próprio; terceiro, essa autossuficiência tem limites; quarto, esses limites conduzem a uma hierarquização que rege os limites da liberdade e da autoridade da seguinte maneira: o que cada um não consiga realizar por si, o grau superior supre. Assim, tanto quanto possível, liberdade na base; tanto quanto necessário, autoridade na cúpula. Por esta forma se conciliam liberdade e autoridade. Este é o sapientíssimo princípio da subsidiariedade que não dá nem em liberalismo nem em socialismo.
Observem como os revolucionários quase não falam disto. Os socialistas e liberais discutem ente si como se o princípio de subsidiariedade não existisse, embora ele venha mencionado nas encíclicas do Magistério da Igreja, pelos bons sociólogos católicos de todos os tempos; foi largamente praticado na Idade Média. Esse princípio não é considerado, nem pelos liberais nem pelos socialistas, porque estraga com a mania dos dois. Quer dizer, ele não dá lugar nem à liberdade completa nem à igualdade total com que sonhava a Revolução Francesa, pois esse princípio estabelece uma hierarquia, limita tanto a autoridade quanto a liberdade, e isso irrita os revolucionários.
Como surgiu o feudalismo
Na Idade Média, esse princípio teve aplicação no feudalismo. Compreende-se bem isso considerando como surgiu a maior parte dos feudos.
Imaginemos as terras lavradas, cultivadas, no tempo de Carlos Magno. Começam a aparecer as invasões dos hunos, normandos, sarracenos, etc. As comunicações entre as várias partes de um país eram muito difíceis por causa das estradas más; aparecem de repente os hunos. O resultado é que todos os trabalhadores tendem a reunir-se em torno da casa maior, mais forte, mais rica, e dali lutar para se defender contra o invasor.
Sendo a casa do patrão de interesse de todos, ela foi se transformando aos poucos em castelo: construíram-se as torres, primeiro de madeira e depois de pedra, para de longe poderem ver se o inimigo vinha. Avistado o inimigo, do alto da torre tocavam o sino ou o olifante para se reunirem todos na casa do patrão, e na torre eles resistiam.
Aos poucos também foram fazendo muralhas cada vez maiores e também com suas torres, os valos de água, tudo construído em comum acordo entre os donos da propriedade e os trabalhadores, para não serem mortos ou aprisionados pelos bárbaros invasores. O castelo nasceu, portanto, da necessidade de todos de se defenderem.
Era necessária uma autoridade para dirigir o castelo e a resistência contra o adversário. Ora, a autoridade é o patrão.
Na época de paz, o patrão acabava servindo de juiz e de prefeito na zona onde o castelo está construído, e se tornava um senhor, ou seja, o agricultor com funções de juiz e delegado no lugar onde morava.
Mas as invasões normandas, hunas, eram muito grandes, e tornava-se conveniente e até necessário estabelecer ligações entre vários donos de castelos. A resistência se põe em torno do mais poderoso e, quando um castelo é ameaçado, levam todas as tropas para defendê-lo. Criava-se, assim, uma hierarquia de senhores feudais, por cima dos quais estava o rei.
Qual é o princípio de um feudo? Um senhor feudal manda em sua terra e faz nela tudo quanto pode. O senhor feudal superior só intervém ali para realizar o que senhor feudal menor não consegue fazer. O rei só intervém na esfera da autoridade do senhor feudal superior pelo mesmo mecanismo.
O feudalismo não foi planejado, não houve um sociólogo que se sentou, começou a desenhar um “f” bonito, escreveu “Feudalismo” e, tendo inventado uma palavra, pensou: “Agora vou inventar uma realidade.” Nasceu naturalmente das invasões e das aplicações do princípio de subsidiariedade.
Aplicação do princípio de subsidiariedade às cidades, universidades e condições de trabalho
Em alguns lugares formaram-se cidades que por esse mesmo mecanismo se fortificaram. Mas como não nasceram da agricultura, essas cidades não tinham nenhum proprietário para seu chefe, e começaram a eleger autoridades. Essa organização eletiva nasceu da ordem natural das coisas, e ia tão longe que, em várias cidades, cada bairro possuía seu governinho, um prefeito para governar o bairro. De tal maneira eles amavam esse princípio de subsidiariedade do poder público pequeno e próximo ao indivíduo que está sendo governado.
Um exemplo disso foram as universidades que eram colossais. Uma universidade ocupava um bairro, no qual o reitor da universidade mandava em tudo. Ele era o prefeito, o delegado de polícia, o juiz, e ninguém mandava dentro da universidade a não ser o reitor.
Essa estrutura se aplicava também para o trabalho. Na Idade Média as condições de trabalho davam muito mais valor ao homem e menos à máquina; a época era pouco mecanizada e as máquinas existentes primitivas, pequenas e em geral de madeira. O operário valia mais do que a máquina e não havia propriamente o capitalista como existe hoje, que entra com o dinheiro para montar uma fábrica. Todos eram artesãos e os operários entravam como aprendizes; o talento deles concorria muito mais para a produção do que a máquina. Os melhores tornavam-se mestres.
A fábrica era, em geral, um quarto ou dois no mesmo prédio onde morava o dono da empresa, e os operários comiam com a família do dono. Aquilo formava uma espécie de família grande em que o mestre mandava porque era o mais competente, e se ele saísse também se retirava a freguesia. Era esta a preeminência, baseada, portanto, no trabalho.
O costume tinha na Idade Média uma importância enorme. Os medievais tomaram o costume de reunir todos os estabelecimentos de um mesmo ofício, o que naquelas cidades pequenas era muito fácil. Assim, quem quisesse comprar uma joia ia à rua dos ourives, quem estivesse à procura de sapatos dirigia-se à rua dos sapateiros, e assim por diante.
Os homens que exerciam uma determinada profissão foram se constituindo em corporação, com direção própria. Assim, tão logo se formasse um todo, esse todo se organizava e reivindicava a sua autonomia. Era o princípio de subsidiariedade.
Um grande hospital como a Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, na Idade Média seria autônomo à maneira de um pequeno município: teria suas próprias leis, autoridades e até polícia, juiz e cadeia.
A família era o modelo da sociedade humana
A célula principal, o fundamento da sociedade era a família, considerada o modelo da sociedade humana. Na França, os juristas empregavam uma expressão muito bonita para definir o que era a família em função do Estado: diziam que o pai era o rei dos filhos, e o rei o pai dos pais. De maneira que o regime era paterno.
Sente-se muito isso em velhas gravuras brasileiras do tempo da colônia, nas quais se veem famílias portuguesas ou luso-brasileiras saindo aos domingos. Em geral, na frente vai o pai, um “portuguesão”, às vezes com um cigarrão, uma bengala, um chapéu de dois bicos e andando como quem não se preocupa com nada. Atrás dele vai a esposa, depois os filhos em ordem de idade, depois dos filhos os escravos. Por onde ia o pai, caminhava a família inteira.
Em geral, o pai de família deixava o patrimônio para o filho mais velho que deveria gerir a propriedade, sem descuidar do indispensável auxílio aos irmãos mais novos. Aqui vemos uma vez mais a aplicação do princípio de subsidiariedade.
Os filhos mais novos do castelão iam tentar a vida em outras terras, mas se lhes advinha o fracasso, a tragédia ou a doença, tinham direito a voltar ao castelo com sua família, encontrando ali uma espécie de instituto de aposentadoria e pensões.
Entretanto, aquele pessoal estava habituado à aventura, tanto mais que a monotonia da vida agrícola os impelia a isso. Então, a maior parte deles fazia um esforço tremendo para progredir, lançando-se na aventura. Daí aquela atmosfera que mais tarde se refletiria em D’Artagnan e os três mosqueteiros – Athos, Porthos e Aramis –, ou Cyrano de Bergerac, filhos mais moços que deixaram a vida monótona do campo na esperança de que, se batalhassem como leões, poderiam galgar altos postos e se tornar, eles mesmos, donos de grandes castelos.
A sede de aventura era assim estimulada pela seguinte ideia: “Se eu for para a cidade, ainda mais apoiado pelo meu maioral, posso fazer uma grande carreira. Que delícia! Se eu ficar no campo, não mando, sou um puro pensionista. Que monotonia! Então vou me arriscar. Mas de outro lado, sei que se eu fracassar tenho onde me refugiar.”
O mesmo se dava, a seu modo, com os trabalhadores manuais. Por vezes estes eram arrendatários hereditários de uma parte das terras do senhor feudal, e trabalhando ali podiam viver bem. Se os seus descendentes ou colaterais viessem morar ali por necessidade, naturalmente se apertavam mais, porém tinham o mesmo direito; correspondia à situação do castelão, em ponto menor.
Mas também entre eles a linhagem não correspondente ao primogênito saía em busca de novas terras a explorar, por vezes recebidas do senhor feudal ou do rei mediante um pagamento que as colheitas deviam proporcionar. Por esta forma a família se espraiava, e em torno dela se constituía esse princípio de subsidiariedade.
Era, novamente, a linha primogênita da família ajudando a não primogênita, mas esta devia dar tudo quanto pudesse. Se fracassasse, a linha primogênita ajudava.
Daí serem contrários à partilha igual do patrimônio, porque então ninguém pode garantir nada para ninguém. Enquanto que, por esse sistema, funcionava um verdadeiro instituto de aposentadoria e pensões, em base pequena e doméstica.
Poder público influenciável pelos indivíduos
Esses princípios existiram na Idade Média e foram praticados com tão grande êxito que o próprio Karl Marx, numa de suas obras, afirmou que a era de ouro do operário europeu foi a Idade Média. Eis a sábia organização que o espírito católico tinha dado à estrutura social. Essa estrutura era baseada no princípio de subsidiariedade.
Trata-se, nessa organização, da formação de inúmeros corpúsculos que dirigem a vida do homem na medida em que ele precise de uma direção, e esses corpúsculos se encaixam constituindo uma verdadeira malha de autoridades.
Um desses “prefeitos” da rua sofre muito mais a influência daqueles em que ele manda do que um prefeito de uma grande cidade, como São Paulo, com milhões de habitantes. A distância é grande demais.
O prefeito da rua mora naquela mesma via pública; e quando algum morador está descontente, sem pedir audiência vai na casa dele e diz: “Fulano, tem sujeira diante de minha casa, porque o Serapião não limpou. Agora você vai mandar o Serapião limpar!” E vão os dois juntos chamar o Serapião. Quer dizer, toda relação é próxima e pessoal. Então se exerce a influência do indivíduo no governo, e ao homem interessa muito mais influenciar a própria rua do que o Estado, porque ele não mora no Estado, e sim naquela via pública.
Também o fabricante ou o industrial. O operário tem um contato direto com sua corporação com dezenas ou centenas de operários ou industriais. Na hora da eleição, o voto dele terá importância, pois o voto de um em cem ou duzentos pesa na balança. O poder público é, assim, muito influenciável pelos indivíduos, e essa é uma forma de democracia.
O costume
Outro aspecto democrático é o costume. Quando se estabelece um costume, cria-se um direito. Por exemplo, numa rua tal certo homem, desde tempos imemoriais, tem o hábito de amarrar o cavalo dele numa determinada argola, que está do lado de fora de seu prédio. Se numa ou duas gerações se fez assim, ninguém mais pode ir contra isso; é um direito adquirido porque foi aprovado por todos e, a menos que se prove que isso começou a ser nocivo para todos, esse costume subsiste. Não são leis gerais feitas para milhões de homens, mas situações individuais que o costume vai criando para este ou aquele. A tal ponto que havia famílias, às vezes da plebe, que por lei o sistema de herança dos bens era diferente do que vigorava nas outras famílias. Provavam a existência do costume, e o juiz o aplicava; por quê? “Porque na nossa família o temperamento, o gosto é assim.”
Havia, por exemplo, numa região da França um costume curioso: quem herdava a fortuna do pai falecido não era o mais velho, e sim o mais moço, por julgarem que este teria melhores condições de levar adiante a fortuna da família. É um ponto de vista que, uma vez constituído o costume, era acatado pela legislação. Assim, a grande maioria das leis era feita de costumes que o rei só anulava quando estes se tornavam injustos.
Não existia a classe dos políticos profissionais
Isso tem como resultado curioso impedir o aparecimento da classe dos políticos profissionais, porque ninguém faz carreira sendo diretor de uma pequena unidade. A pessoa só dirige essa unidade porque os outros pedem. Isso lhe dá um pouco de prestígio, mas é uma atividade colateral.
Mesmo um senhor feudal, que governa toda uma extensa região, não é principalmente governador, mas um agricultor, vive de suas terras que ele tem que fazer valer para ter o prestígio necessário e manter sua família. Ele é secundariamente o governador daquelas terras e, portanto, não é um político profissional.
Esse sistema de governo não tem os defeitos do liberalismo nem do socialismo. Todos possuem uma influência no Estado, mas no âmbito em que entendem, e está no seu campo de ação mais imediato. Há até eleições livres, mas não existe a figura do político profissional. A política como tal está ligada à profissão de cada um, à vida de todos os dias, e todo mundo cuida da sua própria existência.
É profundamente diferente do Estado liberal democrático onde há uma classe de políticos que vive de fazer leis e de ocupar cargos públicos, eleita uma vez a cada quatro anos por uma grande massa pública que quase não se conhece e que, fora da ocasião da eleição, não tem nenhuma ou quase nenhuma influência no panorama político.
A situação anteriormente descrita eu reputo mais democrática, no bom sentido da palavra. Um regime no qual, embora não seja igualitário nem liberal, existem a igualdade e a liberdade legítimas.
(Extraído de conferência de 4/1/1975)