A criação de uma falsa evidência e a abolição das regras do raciocínio são os dois braços que arrombam a porta da razão. Nesse processo, a opinião dos círculos mundanos tem um grande papel.
Uma das grandes dificuldades que a formação das novas gerações encontra é a diferença entre as convicções formadas a partir de bons raciocínios e as vivências, as quais, vistas sob algum aspecto, podem se definir como impressões que dão uma aparência de serem evidentemente certas, colhidas diretamente da realidade, e que resistem, por isso, a qualquer raciocínio.
Evidências que resistem a qualquer raciocínio
Exemplifico. Digamos que uma pessoa queira fazer um raciocínio para provar que eu estou delirando, como um homem drogado ou com muita febre, e me perguntasse:
– Dr. Plinio, que prova o senhor tem de que não está delirando?
Eu diria:
– As provas me vêm de mil evidências externas e internas que excluem completamente a hipótese do delírio!
– Mas cuidado, Dr. Plinio, o homem, quando delira, pensa ter a mesma certeza que o senhor. Ao menos em certos casos.
– Meu caro, você não perca seu tempo. Porque eu sei que não estou delirando. É uma coisa evidente, segura e indiscutível.
– Vou dar ao senhor um argumento-bomba por onde lhe provo que o senhor está delirando.
– Eu não estou delirando! Não me interessam seus argumentos.
Admitamos que esse homem seja um hipnotizador e me diga o seguinte:
– Vou provar que o senhor está com 42 graus de febre.
– É ridículo, mas para você não me amolar vou pôr o termômetro.
Ele me dá o termômetro, eu o coloco, passam-se os minutos regulamentares, retiro-o e, como ele é um hipnotizador, constato: 42 graus.
Então respondo para ele:
– Não é verdade, seu argumento não me convence, não estou com febre, não tenho delírio.
– Então, o senhor está delirando tanto que precisa ser amarrado, porque não há o que lhe prove que está delirando.
Eu grito:
– Agressor!
Por quê? Porque sei, por um testemunho interno, que não estou delirando. Quer dizer, há estados de evidência externa e interna que resistem a qualquer raciocínio.
Impressões que agridem interiormente as pessoas
Ora, acontece que na minha dileta “geração nova”1 há impressões mais ou menos parecidas com essa. Não quero dizer que essa geração delira quando está sem febre, ou que vive permanentemente numa febre de delírio. Seria muito pouco amável e, ademais, inverídico.
Mas, apesar disso, na minha cara “geração nova” observo, muitas vezes, que certas impressões entram com tal violência, que mesmo quando todas as razões provam que algo não é conforme a impressão recebida, o membro dessa geração aceita os argumentos, afirma estar persuadido racionalmente – e está mesmo –, porém, noutra esfera de sua personalidade, aquela impressão continua a perturbá-lo, a agredi-lo, ele sofre uma verdadeira agressão interior pela sensação que ele recebeu; e essa agressão torna-lhe muito difícil acertar o passo na alma. Porque ele fica capenga, no sentido próprio da palavra: uma perna será o raciocínio, caminha bem; a outra se arrasta.
Tenho um grande empenho em ajudar os que se encontram nesta situação a se desvencilharem desse gênero de coisas, porque é verdadeiramente um infortúnio.
Posso afirmar que na minha geração, ao menos na média normal dos homens, isso não era assim. Nunca, na minha vida, esse assunto me deu o menor trabalho. Eu ter que me desarticular de uma impressão que a minha razão não justifica, ah, não! Impressões moderadas, à distância, e que não me amolem! Servem-me até muito para captar a realidade, degustá-la, sobretudo para analisá-la. Mas na hora em que a impressão tentasse me assaltar de maneira a impedir uma análise racional, eu “torceria o pescoço” dela, e não permitiria que a minha mente ficasse obnubilada por uma impressão. Isso não! Notem como, instintivamente, vou tomando ares de defesa e até de agressão.
Então, desejo muito que minha cara “geração nova” se dê conta do fenômeno e lute contra ele. Para isso é necessária uma descrição do fenômeno, porque assim nós podemos chegar melhor às suas causas.
Duas metáforas: a moeda e a âncora
Encontrei uma descrição tão bem feita, que me pareceu ser o caso utilizá-la aqui. Fiz dela uma tradução do francês, um pouco livre, intencionalmente. Livre em que sentido? Não me amarrei estritamente ao texto, para que o pensamento do escritor ficasse inteiramente claro2.
Passemos a comentar, por partes, o texto.
Hoje em dia é preciso cunhar uma imagem como se cunha uma moeda, ancorar essa imagem na memória visual de tal maneira que nela fique impressa por força da surpresa ou da repetição.
Aqui é enunciada apenas a tese. Não está dada nenhuma argumentação. Nessa introdução o autor se utiliza de metáforas. Uma moeda é cunhada num metal que está superaquecido; para se cunhar um brasão, por exemplo, se utiliza um lacre.
Ancorar essa imagem na memória visual.
São duas metáforas: uma é da violência com que se cunha a moeda, outra é do modo pelo qual a âncora deita seu dente no fundo do mar. Portanto, é uma imagem fugitiva que passa e deita sua âncora na memória visual. De maneira que a imagem não se torna mais fugitiva; ela está metida dentro da memória visual e não pode mais sair dela. Não é mais só da memória visual, como veremos, mas no primeiro momento o autor fala apenas da memória visual. A seu modo, as duas figuras exprimem a mesma ideia: uma efígie que fica carimbada no metal, ou no lacre, ou uma imagem que permanece ancorada na memória visual. São duas metáforas que ele aproxima uma da outra.
Em seguida, ele indica qual é a força, o modo pelo qual essa cunhagem ou ancoragem se faz: é a força da surpresa ou da repetição.
Há, então, dois modos de ancorar ou de cunhar. Um é a surpresa; uma surpresa enorme grava a fundo, no espírito do homem, uma impressão. Outro é a repetição muito insistente, que também grava. É assim, por exemplo, que se amestra um papagaio, levando-o a reproduzir as palavras que insistentemente são ditas junto a ele. À força de repetição, aquilo entra na memória do papagaio.
Algo indelével que se fixa sem o consentimento da razão
Aqui está enunciada a tese. Ele vai indicar a força dessa fixação.
Tal imagem não pede mais que se reflita, nem que se adira a ela. Por um choque ótico, impõe ela uma noção simples: por intermédio dos olhos, ela procede a uma espécie de arrombamento do espírito, estabelece dentro deste uma vinculação indestrutível entre o objeto que se quer vender e o desejo ao qual o objeto pretende responder.
Está dito nesse trecho que todo espírito humano possui sua porta, que é a reflexão. É por meio da reflexão, não mais dos sentidos apenas, que no espírito humano uma determinada associação de imagens adquire direito de cidadania. Quer dizer, é por meio da análise que o homem vai ver se aquela associação de imagens é fundada ou não. Ele rejeita a associação de imagens infundada e aceita a razoável.
René Huyghe mostra, muito judiciosamente, a existência de um fenômeno de suspensão da capacidade de análise. O espírito sofre um arrombamento como uma porta cujas folhas são forçadas, cuja fechadura estoura em virtude de um grande choque. Uma mera imagem imprime no espírito – por arrombamento, por supressão da razão – uma convicção da qual o espírito não consegue se desembaraçar.
Esta é a noção fundamental que ele acrescenta à primeira parte. É a noção de que há uma coisa indelével, que entra sem análise racional e se fixa sem o consentimento da razão. É uma coisa, portanto, involuntária e que passa a atormentar o homem porque se instalou dentro da alma dele. Com sobriedade e concisão francesa, esse conceito está supremamente bem expresso, a meu ver, no trecho que acabamos de ler.
Arrombamento da razão
Prossegue o autor, dando uma explicação um pouco mais ampla a respeito do que ele disse.
Os argumentos não são mais ponderados, não podem mais ser ponderados pelo simples motivo de que nem sequer há mais argumentação. A imagem torna solidário tal remédio e a apresentação florescente de um homem em boa saúde…
Evidentemente, ele está aludindo a um anúncio de remédio em que o rótulo apresenta um homem em boa saúde. A pessoa lê o nome do remédio ou vê, através do vidro, aquele homem saudável apresentado pelo rótulo; essas duas ideias se conjugam de um modo definitivo. O espírito dele foi marcado, carimbado, nele se ancorou a convicção irracional de que aquele remédio produz saúde. A pessoa sabe que é pueril, infantil acreditar num rótulo; não há argumento, portanto, que justifique isto. Contudo, ainda que se dê argumento contra isso, ele confia no remédio. Foi uma convicção irracional que se carimbou na alma de um homem racional, por via de um processo de arrombamento. O pensamento do autor é o mais claro e lógico possível.
…um crânio calvo se cobre com uma exuberante cabeleira, quando é visto através da transparência do frasco posto à venda.
Outro exemplo de anúncio. Há certos frascos de remédio nos quais o rótulo é colado de maneira a ser visto através do vidro. O líquido funciona quase como uma lente de aumento, e o anúncio fica do outro lado. Então, o sujeito viu através daquele líquido, por meio de um recurso ótico, a frase: “Contra calvície use o remédio Clodion, le Chevelu. Era o nome de um Rei dos Francos: Clodion, o Cabeludo. Aparece o Rei Clodion com um cabelão de hippie, e o comprador se convence. Ele sabe que não há remédio para isso, mas o indivíduo fica convencido de que, usando aquele remédio, ele cura a calvície. É um arrombamento que foi feito na alma dele.
Falsa evidência e abolição das regras da razão
A percepção reveste sempre um caráter de fato constatado, de evidência, que nenhuma ideia, sujeita à crítica, jamais poderia adquirir.
Aqui está o melancólico da conclusão. Quer dizer, aquilo que um raciocínio primário derrubaria – ou seja, é preciso ter desconfiança em relação ao comerciante ou ao industrial que apregoa no seu próprio interesse um produto –, esse raciocínio elementar não é suficiente para evitar que o homem dê crédito à propaganda. Ele fica escravizado, no sentido próprio da palavra, àquilo que ele leu. Tem uma ilusão, como se houvesse uma prova evidente, de que aquele remédio torna o homem possuidor de uma saúde florescente.
Vemos, então, dois fenômenos mentais capitais que se conjugam para produzir o arrombamento. O primeiro é uma suspensão da razão; e o segundo é uma sensação de evidência num ponto onde não há nenhuma evidência.
A criação de uma falsa evidência e a abolição das regras da razão são os dois braços que arrombam a porta. Dessa maneira agem tanto um anúncio, quanto um slogan político ou uma vivência.
Um anúncio muito grande produz, mesmo sobre um homem de minha geração, uma certa impressão. Mas trata-se de uma impressão que, se analisarmos bem, é racional. Quem vê afirmado muito categoricamente, e com um anúncio enorme, que certo fortificante é bom, é levado a achar o seguinte: tanta desinibição no afirmar traz, provavelmente, uma verdade.
É uma regra da psicologia comum: as coisas muito afirmadas têm a seu favor um pressuposto – relativo apenas, mas real – de que são verdadeiras. Depois, uma empresa que tem tanto dinheiro para gastar num anúncio tão grande deve ser séria. Ela não teria lançado um medicamento sem algumas das qualidades mencionadas. Então, a pessoa conclui que vale a pena consultar o médico. Estando com o médico, o sujeito pergunta: “Doutor, o que o senhor acha: esse remédio é bom?” Ou então ele mesmo fará uma experiência para verificar se o remédio atende às conveniências de seu organismo. Mas o juízo da razão preside a tudo.
Ditadura dos círculos mundanos
O fenômeno descrito aqui é diferente. Não há juízo da razão. Há uma falsa evidência. Por exemplo, vejo no alto do Edifício Martinelli, no centro de São Paulo, durante muitos anos, uma garrafa enorme anunciando as excelências do vermute. Então se torna evidente para mim que o vermute é uma bebida muito boa, antes mesmo de eu ter posto uma gota de vermute na boca. Quando tomar o vermute, vou achar bom porque, ao ver aquela propaganda, convenci-me de que é bom. Ora, essa falsa evidência é uma besteira. De outro lado, nem sequer permito à minha razão analisar isso. Já vou na onda, está acabado.
Eis a atitude do neoconsumidor de vermute, de ideias políticas, de slogans de toda ordem, de todas as manobras da Revolução. Vem daí também a ditadura dos círculos mundanos.
Durante muito tempo, os ambientes frequentados pelo indivíduo no mundo correspondem à própria imagem que ele tem do universo. O resultado é que, se ele se habitua a achar que aqueles círculos representam a verdade absoluta, basta alguém desses meios sociais dizer para ele, com voz grave: “Vermute, esta sim, é a bebida!”, para que o nenezinho conclua: “Sim, vermute é a bebida!” Cria-se uma ditadura sobre o espírito dele, de onde ele pode até não gostar de vermute, mas se sente inibido e bebe vermute até o fim da vida. Quer dizer, o vermute conseguiu um consumidor perene, pelo dogma vivencial enunciado pelo representante de um determinado círculo mundano.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 6/4/1973)
1) Sendo já homem maduro, Dr. Plinio foi notando entre os jovens com quem fazia apostolado uma mudança de modos de pensar, querer e agir. Enquanto as pessoas de igual ou maior idade que ele demonstravam certas qualidades de espírito, esses mais novos apresentavam debilidades, tais como falta de perfeita lógica, de segurança, de direção, de perseverança, etc. Aos primeiros, Dr. Plinio chamava de “geração velha”, e aos últimos, de “geração nova”.
2) HUYGHE, René. Dialogue avec le visible. Paris: Flammarion, 1955, p. 46.