Quando ainda mocinho, Dr. Plinio tomou conhecimento das primeiras manifestações de “pacinismo” e nele encontrou logo o mau odor da Revolução com sua farândola imunda a que pretende chegar: acabar com as nações, constituir uma só religião, um só modo de viver, um só governo universal. “Oh, que torpeza, que infâmia, que maldade! Lodo, fora! Vou te expulsar do santuário onde tu entraste!”
Há quantos anos conheço a fisionomia do “pacinismo”1! Quando eu era mocinho, tomei conhecimento de suas primeiras manifestações, ainda muito débeis para o mundo pouco preparado para recebê-lo.
Meu primeiro encontro com o “pacinismo”
A Primeira Guerra Mundial, com seus horrores, impressionou mais o orbe do que a Segunda, porque foi uma surpresa para o mundo da Belle Époque2, dos cafés-concertos, da graça frívola, encantado com as fofas delícias de um mundo belo. Quando estourou a Primeira Guerra de repente, o confronto e as labaredas conquistaram tudo, e as pessoas ficaram horrorizadas. Terminada a guerra, houve uma ofensiva “pacinista”.
Lembro-me de um romance que li, chamado “Guerra à guerra”. Era um romancinho, uma bobagem, o qual narrava o caso de uma senhora que perdera o marido e filhos na guerra e resolveu, por causa do infortúnio da solidão na qual ficou, declarar guerra a todas as guerras. Então, ela teria inaugurado um movimento internacional contra a guerra.
Eu não tinha ainda as ideias formadas, nunca me passara pela cabeça um disparate tão grande quanto acabar com todas as guerras, de modo que li aquilo desinteressado, achando que era de um sentimentalismo açucarado; fui pulando as páginas, mas como uma certa curiosidade de ver no que terminava.
Percebi qual era o sentido do romance: todos os homens se amarem uns aos outros. A personagem chamava isso de cristianismo. Ora, é verdadeiro Cristianismo quando se amam por amor de Deus. Mas se amarem em termos de nunca mais nenhum homem combater outro homem… Senti uma espécie de náusea como se me oferecessem um doce feito de açúcar podre, e um brado de indignação se formou na minha alma. Joguei de lado o livro e pensei: “E os cruzados? E Carlos Magno, o incomparável? Num mundo onde não haja mais elmos, nem lanças, nem cavalaria, nem coisas épicas, nem heróis, esse mundo é pior do que a guerra. Acabe com ele.”
Tanto quanto me lembre, foi o meu primeiro encontro com o “pacinismo”. Eu cheirei logo nele o mau odor da Revolução.
O lodo não argumenta, mas insinua, amolece, deteriora, apodrece
Algum tempo depois – eu já ingressara no Movimento Católico –, comecei a ler os livros antimodernistas, os quais, sem dúvida, já envelheceram porque os males que denunciavam foram superados pela avalanche do lodo, o qual se tornou corrente em nossos dias. No entanto, ao ler aquelas obras tive uma certa ideia global da farândola imunda a que se pretende chegar: acabar com as nações, as peculiaridades regionais, os idiomas, para constituir um só idioma, uma só nação, uma só raça, uma só religião, um só modo de viver, um só governo universal. Essa massificação visa transformar tudo não em um lodo medicinal, mas venenoso, abjeto.
Li aqueles livros e pensei: “Para o mundo de hoje isso ainda não pega. Por enquanto esse assunto não vai me dar trabalho, não penso mais nessa porcaria.”
Mais tarde, quando cessou a Segunda Guerra Mundial e estabeleceu-se o que se chamou de paz – essa caricatura que foi tudo menos paz, porque se há algo que o lodo não nos deu foi a paz –, e vi os sorrisos cúmplices e otimistas dos chefes de Estado, compreendi: “O lodo está voltando.” E um suspiro brotou do fundo de minha alma: “Cavaleiros, onde estais?”
Em 1945, quando essas coisas se deram, eu já era um homem feito. Lembro-me de que o lodo me meteu medo, porque pensei o seguinte: “Eu sou todo feito para travar outro gênero de combates, para enfrentar, de viseira erguida, um batalhador que venha contra mim montado no seu corcel, de lança em riste. Mas isto?! Então, chego praticamente ao meio de minha vida – não sei se ela vai durar duas vezes trinta e sete anos, mas não durará três vezes isso –, quando eu sonhava com legiões de cavalaria para combater, disposto a enfrentá-las sozinho se fosse preciso, ufano ainda quando fosse prostrado por terra, e compreendendo e amando o caminho que Nossa Senhora me deu para trilhar… De repente vejo as legiões de cavalaria se desfazerem, e é o lodo que me cerca de todos os lados, é a confusão, o sofisma baixo. O lodo não argumenta, ele insinua, amolece, deteriora, apodrece. É isso o que noto de todos os lados. Oh, que horror!”
Mas se fosse só isso… Se eu pudesse recolher-me ao santuário e rezar! Porém de dentro do santuário – que eu concebia, devia conceber e continuo a conceber como sendo uma fortaleza – eu via que o lodo começava a escorrer entre as pedras, penetrava pelos vitrais quebrados, entrava pela soleira das portas, pelos buracos das fechaduras, penetrava até no coração dos sacerdotes, e ei-los que começam a abrir as portas para que entre o lodo, e me dizem: “Tu não ficas lodo também? Não vais te misturar ao lodo?”
Eu odiei ainda mais o lodo e refleti: “Imaginei que o lodo surgisse de dentro dos pântanos, mas não do interior do santuário. Oh, que torpeza, que infâmia, que maldade! Lodo, fora! Vou de te expulsar do santuário onde tu entraste!”
Dois livros escritos para denunciar e combater o lodo
Escrevi Em Defesa da Ação Católica. Por que eu faço a relação entre esse livro e o lodo? Porque a tática dos que se infiltraram na Ação Católica era a do lodo, ou seja, não combater o adversário, nunca lutar contra ninguém; aqueles que nos combatem só o fazem por equívoco, se tivermos o cuidado de agradá-los e nos deixarmos agradar por eles, descobriremos de repente que há um engano entre nós, e que eles têm uma parte da razão, nós temos outra. Lodo é água misturada com terra, mescla que avilta tanto a água quanto a terra; assim também a mistura que avilta até a própria heresia quando se mescla com a verdadeira Igreja, é esta a mistura que o lodo representa, diante da qual todas as heresias passam a ser arcaicas porque algo pior aparece: é a síntese podre de todas as religiões, mais nojenta do que a própria irreligião.
Mas é evidente que quanto mais o lodo me cercava de todos os lados e eu sentia a ação dele, eu começava a reunir os primeiros cavaleiros e lhes perguntava:
— Trazeis “espadas”? – sempre no sentido figurado da palavra.
— Sim – respondiam eles.
— Mostrai-as.
Mas eu via que esses “gládios” estavam sujos de lodo e era preciso limpá-los.
Nessas condições, para separar os terrenos, pondo de um lado a terra e de outro a água – fazendo essa separação o lodo acaba –, escrevi o livro Revolução e Contra-Revolução. Quem examine essa obra desse ponto de vista a interpreta pelo seu aspecto profundo: guerra ao lodo.
Descrição de um varão-gládio
De duas coisas eu me dei conta pela minha experiência: o lodo tem as macias e imundas delícias de ser lodo, mas há uma linda e forte delícia de ser gládio, uma vigorosa e rija alegria em tender para cima com a sua ponta e cortar os ares com o seu gume, em erguer-se como um jato de metal a que nada resiste e que, voltado para qualquer lado, resolve as situações. Há uma satisfação da alma nisso parecida com a da saúde do corpo. O homem saudável confere em si que tudo está funcionando bem, e percebe que seu organismo se encontra em ordem. O homem que se dá à combatividade sente-se coerente, seguro e forte, sente-se ele mesmo e diz: “Assim Deus me queria. Louvada seja minha Mãe, Maria Santíssima, cujo Coração é comparado a um exército em ordem de batalha, e cujos pés esmagam para todo o sempre a serpente infernal!”
Como seria belo compor uma Ladainha da combatividade de Nossa Senhora! No ofício de Maria Santíssima se reza: “Vós sois a Virgem florida, o velo de Gedeão, divino portal fechado, o favo do forte Sansão.” Como eu amo isso! Mas como seria belo dizer: “Vós já éreis prefigurada no irredutível ódio de Judite quando ela cortou a cabeça de Holofernes.” E tomando todas as prefiguras de Nossa Senhora, enquanto um exército em ordem de batalha, compor uma ladainha e um cântico para um desfile, que poderia se chamar “o desfile dos gládios e das alabardas mariais”. Que maravilha!
Sente-se que o gládio cresce na própria medida em que a fumarada do lodo se levanta, e há momentos em que ele se espanta com sua própria estatura e percebe que virou lança.
Essa é a descrição de um varão-gládio, que se julga com isso no direito de representar, como todos os varões nas mesmas condições, a verdadeira civilização do amor. Porque o autêntico católico nega o nome de amor cristão àquilo que ama promiscuamente a verdade e o erro, o bem e o mal, o belo e o horrendo. Isso não é amor, mas ambiguidade e prostituição. O verdadeiro católico ama a verdade, o bem e o belo, e por isso não pode deixar de ser um gládio vivo contra o erro, o mal e o hediondo.
Costuma-se dizer: “Detesta o erro e ama quem erra!” Como isto é verdade, mas pode ser mal entendido… O que é amar? É querer não golpear alguém? Se amar é desejar não golpear alguém, nem moral nem fisicamente, então se deve entender que essa frase induz em erro. Sabemos que um dos melhores símiles do amor de Deus é o amor dos pais para com seus filhos. E isto vai tão longe que Nosso Senhor Jesus Cristo – num desses auges de ternura dos quais só seu Coração Divino era capaz –, antes de ser abandonado pelos Apóstolos, numa agonia insondável que iniciaria a sua Paixão e depois a sua morte terrivelmente triste, disse: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados, quantas vezes Eu quis reunir os teus filhos como a galinha recolhe os seus pintinhos debaixo das asas, o não o quisestes!” (Mt 23, 37).
Um homem comparar-se a uma mãe e, mais ainda, a uma galinha para mostrar a forma de sua ternura! Não se pode levar mais longe a misericórdia miúda, capaz de agradar, gentil, afável, inebriante. Mas Nosso Senhor também disse que o castigo estava preparado para Jerusalém.
Catedral em louvor de Cristo gladífero
Lembrado assim o esplendor do amor paterno, eu me recordo da Escritura: “O pai que poupa a vara ao seu filho, odeia seu filho” (Pr 13, 24). Alguém dirá:
— Dr. Plinio, uma coisa é a vara do pai, o qual, ao mesmo tempo em que vergasta, sabe que não produz ferimento profundo; outra coisa é este gládio de que o senhor fala, no qual há saudades das Cruzadas e de todas as formas de resistência animada pelo espírito religioso. Digamos numa palavra, há fanatismo.
E eu afirmo:
— Lodo, embora! Porque há uma frase da Escritura, a qual é o código do amor, que diz: “Maldito seja o homem que poupa a sua espada de derramar o sangue” (Jr 48, 10).
Quer dizer, bem-aventurado o homem que não usa a sua espada para fins injustos, sabe contemporizar e perdoar quando é o caso; maldito o homem que não a utiliza quando é necessário. São palavras do Divino Espírito Santo.
Algum partidário do lodo objetará:
— É verdade, Dr. Plinio – o lodo tem essas entoações de voz, meio sentidas e roncando ameaças –, mas o senhor não toma em consideração que este é o Antigo Testamento e nós estamos no Novo Testamento.
Respondo:
— Tu, lodo, mentes a ti próprio, não és senão mentira, eu te conheço. Entre o Antigo e o Novo Testamento não pode haver colisão, porque Deus não mente a Si mesmo.
Não adianta dizer isso para o lodo; ele olha com uma cara quieta, como quem diz: “Veja como eu sou doce!” E com isso procura fomentar a indignação de todos contra nós, ele que é a paz, a paz de mentira.
Não posso deixar de mencionar o trecho do Apocalipse que alude a Nosso Senhor vindo num magnífico corcel branco, no fim dos tempos, com um gládio na boca para punir o mundo: Cristo gladífero (cf. Ap 19, 11.15).
Oh! No Reino de Maria nós teremos uma catedral a Cristo gladífero.
(Extraído de conferência de 17/7/1982)
1) Neologismo criado por Dr. Plinio para ressaltar a falácia do “pacifismo”, indicando que a imposição de uma falsa paz visa ocultar cinicamente seus reais objetivos revolucionários. Palavra que agrega “paci” a “cinismo”: “pacinismo”.
2) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social.