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A importância do apostolado leigo na “consecratio mundi” – II

Cabe aos leigos tornar sagrada a própria sociedade temporal, tarefa que exige grande dedicação e a generosa disposição de a ela consagrar toda a existência. A quem seguir esta via de renúncia e entrega está prometida uma grande glória: viver nos braços de Maria Santíssima e sob a proteção d’Ela.

O que vem a ser a consecratio mundi?

A sociedade temporal, como todas as coisas criadas, deve ser consagrada a Deus, oferecida a Ele e ordenada segundo os desígnios divinos, para assim colaborar em sua obra. Nisto consiste a consecratio mundi: tornar sagrada a própria sociedade temporal, tarefa que Pio XII1 afirma ser especificamente dos leigos.

Apostolado próprio e insubstituível

Às vezes ouço pessoas elogiarem certos sacerdotes nos seguintes termos: “Fulano é formidável. Tem-se a impressão de que ele não é padre. É divertido, camarada, conversa sobre tudo, sabe quem ganhou a última competição, anda de lambreta. Ninguém imaginaria o que ele faz. De padre assim é que eu gosto: bem moderno e igual a nós.” E o pobre Pe. Fulano pensa do mesmo modo…

Trata-se de uma concepção errada da condição sacerdotal. O padre é um ministro do Senhor. Ele faz parte do clero, daqueles chamados a viver numa atmosfera sagrada e não na que se move o comum dos homens. A sacristia e o Altar constituem o lugar próprio do padre e, se ele não está ali, tudo fica deserto e a igreja não funciona. Se há alguém que não deve levar a vida de um leigo é o padre.

Então quem vai levar aos diferentes meios sociais a Palavra de Deus? Nós, os leigos. E, por isso, no discurso ao Segundo Congresso Mundial do Apostolado dos Leigos o Santo Padre Pio XII mostra bem que a Igreja está constituída de tal maneira que nunca haverá padres em número suficiente para atender às necessidades do apostolado. Para entrar nas faculdades, nas oficinas, nos bondes, nos ônibus, em qualquer parte, é preciso que haja leigos e que estes sejam portadores habituais da Palavra de Deus.

Por uma razão de número e de missão própria, o apostolado leigo não é substituído pela ação do sacerdote. E, portanto, a principal tarefa do sacerdote não consiste em fazer tudo, mas em formar grupos de bons leigos, que por toda parte entrem, atuem e produzam aquela parcela de bem que cabe à sociedade temporal realizar para a santificação das almas.

Flávio Lourenço
Peregrinação a Saint-Josse-sur-Mer Museu de Belas Artes, Arras, França

Conta-se que, em certa ocasião, Pio XII perguntou a um grupo de cardeais com os quais conversava: “Eminências, o que é mais necessário para a santificação do mundo nos dias atuais?” Um cardeal pensou um pouco e respondeu que faltavam igrejas grandes, porque com igrejas tão pequenas ninguém ia à Missa. Outro disse que seria preciso desenvolver a imprensa católica, pois por meio dela todos ouviriam a Palavra de Deus. E um terceiro levantou o tema das missões. O Papa ouviu a todos e concluiu: “Nada disso é verdade. O mais necessário hoje é que em cada paróquia exista um punhado de leigos realmente católicos, que levem a Palavra de Deus à sociedade temporal. Se houvesse isto, a crise do mundo contemporâneo estaria conjurada.”

Eu não apresento esse fato como argumento, porque não gosto de jogar com palavras pronunciadas pelos Papas em conversas particulares. Mas, si non è vero, è bene trovato2. Ainda que ele não as tenha dito, isso é verdade e eu estou inteiramente de acordo com o inventor dessa fábula, se foi inventada.

Doação especial a Deus no estado laical

Ora, se o apostolado dos leigos é tão necessário, percebe-se sem dificuldade que ele exige uma grande dedicação. Essa ação jamais será suficientemente desenvolvida se um certo número de leigos generosos não for além de um simples apostolado comum e não consagrar a ela sua vida, dentro do seu ambiente próprio.

GCI (CC3.0)
A Santa Missa – Museu J. Paul Getty, Califórnia

Compreendem-se, então, as diretrizes do Santo Padre Pio XII na Encíclica Sacra Virginitas, na qual ele afirma que o celibato representa o estado ideal, ainda que não se trate de padre nem de freira, porque, em si mesma considerada, a castidade perfeita significa uma doação maior a Deus nosso Senhor e proporciona mais tempo para servir à Igreja.

Quer dizer, um movimento leigo não pode manter-se sem muitas pessoas que dediquem a vida inteira a ele, quase como um sacerdote, embora continuem nas fileiras do laicato. E essa doação especial a Deus, no estado leigo, é tão agradável a Ele que atualmente a Igreja conta com associações só de leigos, que continuam a morar em suas casas, mas praticam a pobreza, a castidade e a obediência para melhor atuarem no apostolado. Vê-se aí a importância que a Igreja dá a essa ideia do leigo que se conserva no mundo, nele trabalha para a salvação das almas e liga-se ao serviço de Deus pelo celibato, à semelhança do sacerdote. Trata-se de um apostolado em que muitos – intencionalmente não digo todos – consagram-se inteiramente, de tal maneira que renunciem a todas as coisas da Terra.

Entretanto, cabe ressaltar que aqueles que constituem família devem continuar servindo a esse apostolado na medida em que os laços matrimoniais o permitam, sem deixar-se dominar pelo seguinte estado de espírito: “Faço apostolado porque quero, não sou obrigado a fazê-lo.”

Arquivo Revista
Dr. Plinio com o uniforme da Linha de Tiro, em 1929

O Santo Padre Pio XII nos ensina o contrário: o leigo também está obrigado a fazer apostolado porque é filho da Igreja. A vida foi-lhe dada não para gozar, mas para ele carregar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e santificar-se. Todos os problemas de carreira e outros desse teor são completamente secundários ante a santificação das nossas almas e a do próximo. Nesse esforço que os leigos desenvolvem, ninguém tem o direito de dizer que devem se sacrificar apenas aqueles que são muito inteligentes, organizadores e capazes. Não é assim. Aqui se aplica a parábola dos talentos: cada um deve prestar contas a Deus ainda que seja por um só talento recebido. Ai de nós se deixarmos o talento enterrado, sem fruto!

Dois caminhos, uma escolha

Lembro-me de uma série de problemas que se apresentaram a mim quando eu contava entre dezenove e vinte anos. Eu tinha muita vontade de fazer carreira e dispunha dos meios para isto. Por outro lado, vinha-me a ideia de dedicar-me ao apostolado e a sensação viva do que eu poderia realizar pela Igreja.

Andreas F. Borchert (CC3.0)

Eu imaginava os dois caminhos. O primeiro, sem fazer apostolado: via-me homem provecto, rico, bem colocado, usufruindo de todos os deleites que a vida pode dar. Depois imaginava-me fazendo apostolado e sentia que, neste caso, o mundo não me receberia bem e minha carreira ficaria gravemente prejudicada. Ademais, percebia que, se quisesse me conservar um homem reto, jamais conseguiria os cargos que desejava.

Contudo, ao pensar na primeira hipótese, via-me com as mãos vazias de méritos e contemplando a Igreja, minha Mãe, esbofeteada, pisoteada, negada, abandonada, servida com negligência e ininteligência, por covardes que fugiam quando ela era seriamente atacada, enquanto eu me empanturrava do que a vida oferece, com o peito coberto de medalhas, sentado num palacete ou num automóvel de luxo, confesso que sentia náusea destas coisas, náusea de mim mesmo, náusea de tudo quanto não fosse o cumprimento de meu dever. A visão de Jesus Cristo no Horto das Oliveiras e sendo crucificado, numa renovação de sua Paixão, fazia-me compreender que esta via não só me conduziria à perdição, mas também me daria um constante asco de mim mesmo.

Flávio Lourenço
Jesus sendo cravado na Cruz – Museu Nacional de Port-Royal-des-Champs, França

E hoje eu percebo que, se houvesse morrido nesse caminho, Deus teria me pedido contas das almas de todos aqueles que pertencem ao nosso Movimento. Eu Lhe responderia que não os conhecia e nada sabia a respeito deles. Então o Divino Juiz me diria: “Segundo os planos eternos de minha Providência, você deveria ter estabelecido relação com eles. Entretanto, na hora em que eles precisaram de sua ação direta ou indireta, você, pela sua covardia, pela sua ambição, pela sua falta de senso moral, pela sua fundamental indiferença em relação a Mim, pela sua vergonhosa adoração a si mesmo, você não sabia que essas pessoas existiam. Agora você será medido, pesado e julgado. E irá para o Inferno, porque todas as vezes que um daqueles que Me personificavam – pois todo católico é membro do meu Corpo Místico – precisou de você, era Eu que tinha sede de um bom conselho e você não Me deu, Eu que estava nu de forças para resistir ao adversário e você não Me vestiu. Eu lhe dei recursos para agir como devia, e você o que fez? Empanturrou-se de comida, inebriou-se de bebida, cobriu-se de condecorações e gloríolas, tornou-se um homem importante e se refestelou em palácios e cadillacs, mas a Mim deixou só.” Se isso me acontecesse, teria sido merecido.

Responsabilidade do apóstolo, mesmo sendo leigo

Recordo-me que, algum tempo depois de ter resolvido entrar para a Congregação Mariana e intencionalmente não fazer carreira, li um fato da vida de São João Bosco que muito me impressionou. Ele era menino e sonhou que homens de todas as raças cercavam sua cama, de mãos postas, pedindo-lhe que fosse logo até eles. Muito anos depois Deus lhe deu a interpretação do sonho. Os Salesianos são missionários e se espalharam pela Terra, e eram essas almas que eles deveriam evangelizar que estavam ao lado da cama de Dom Bosco pedindo que ele se apressasse, porque precisavam ser salvas.

Se eu, aos vinte anos, houvesse tido um sonho assim, certamente veria os Anjos da Guarda de muitos dos que entraram e ainda entrarão em nosso Movimento pedindo que me apressasse.

Mas o que vale para mim, vale para qualquer batizado. Se cada um pudesse ver as almas que deve edificar e salvar, veria também, ao lado do próprio leito, os Anjos da Guarda dessas almas pedindo que se apressasse. Porque os acontecimentos correm, o Inferno não dorme, o demônio trabalha constantemente e a todo momento almas se precipitam no Inferno. Compreende-se então a tremenda responsabilidade de um apóstolo, mesmo quando leigo. Devemos nos dedicar ao apostolado de alma e coração, como o bom sacerdote que vive para o seu ministério com toda a dedicação, pois sabemos quantas contas Deus nos pedirá do imenso bem que podemos fazer.

Uma recompensa demasiadamente grande

Deus bate no coração de cada um de nós dizendo: “Filho, vem e segue-Me.” Houve um pintor alemão que fez um quadro representando Nosso Senhor batendo numa porta, como símbolo do Bom Pastor que bate à porta do coração humano. Quando foi exposta, a tela causou sensação. Então certa pessoa se aproximou do pintor e disse: “O quadro é muito bonito, mas falta uma coisa. O senhor se esqueceu de colocar fechadura na porta.” O pintor respondeu: “Fiz isso de propósito. A porta do coração não tem fechadura do lado de fora; ela só abre por dentro.”

Flávio Lourenço
O sacrifício de Isaac – Igreja dos Clérigos, Porto, Portugal

De modo análogo, o Divino Espírito Santo nos pede que Lhe abramos a porta. Dar-Lhe tudo, consagrar-Lhe tudo é o que Deus pede de nós. E consagrar tudo não é consagrar muito, mas consagrar aquilo que dói mais. Aquele que tem mania de ser orgulhoso, que seja humilde. Aquele que tem tendência para a impureza, procure ser casto. Aquele que tem desejo de fazer carreira, procure apagar-se. Cada um dê a Nosso Senhor aquilo que lhe custa mais, porque Ele realmente o merece.

Agora cabe uma palavra sobre a recompensa.

Deus prometeu: “Eu mesmo serei a vossa recompensa demasiadamente grande” (cf. Gn 15, 1). Ou seja, Ele não dá uma recompensa, mas Ele é a recompensa! E nisso Se assemelha a um rei que diz aos seus soldados: “Não os condecorarei, não lhes concederei o título de duque, nem mesmo lhes entregarei meu trono; darei a Mim mesmo aos soldados que tiverem combatido por Mim.” Trata-se de uma recompensa verdadeiramente demasiada.

Sebastião C.
Jesus salva São Pedro enquanto caminha sobre as águas – Convento de Santa Maria Novella, Florença

Essa recompensa não consiste apenas na salvação eterna, mas se inicia na Terra. Uma imagem pode ajudar a compreendê-lo. Imaginemos dois barcos que singram o Lago de Tiberíades. Um deles leva pescadores comuns, sobre os quais paira a proteção divina, segundo a Providência geral que Deus tem para com todos. No outro barco a situação é diferente… Os ventos soprarão sobre esta embarcação. Mas Nosso Senhor Se levantará e, como narra o Evangelho (cf. Mt 8, 26-27), os ventos e os mares Lhe obedecerão e a tormenta será aplacada. Às vezes Ele pedirá aos tripulantes do barco que andem sobre as águas, como São Pedro, e os sustentará.

De mesmo modo, quem foi chamado por uma providência especial de Deus, tem direito e obrigação a uma confiança especial n’Ele.

Daniel A.

Deus exige muito daqueles aos quais deseja dar muito

Quando tivermos problemas de vida interior sobremaneira difíceis e nebulosos, rezemos a Nossa Senhora, certos de que Ela nos ajudará a progredir. Quando nosso apostolado estiver em crise, rezemos a Nossa Senhora, certos de que sobre nós paira uma providência especialíssima.

Quando surgirem dificuldades financeiras, lembremos que Deus ama aqueles que trilham a via da incerteza. Quando notarmos que as coisas se encrencam com facilidade, firmemo-nos na certeza de que somos do número daqueles a quem Deus protege. Quando ficarmos numa dependura, sem ter ninguém a quem apelar, e nos conservarmos em inteira paz, certos de que Deus nos ajudará, aí seremos verdadeiros filhos d’Ele.

Então teremos o que Deus nos prometeu, isto é, a recompensa demasiadamente grande: após atravessarmos muitas dificuldades, nós O sentiremos ao nosso lado, constantemente nos protegendo e apoiando. Esta é a via da confiança especial na Providência, mas confiança em cada caso concreto, que tem direito de seguir aqueles que se entregam a Deus nesta vida.

É bem conhecida a história de Abraão. Deus lhe prometera que seria pai de uma numerosa descendência, da qual nasceria o Messias. No entanto, este homem que daria origem a uma prole fecunda permanece estéril até velhice e, quando tem um filho, o Senhor lhe pede que o imole. Com uma confiança cega na Providência, ele não discute nem raciocina. E só no momento em que o sacrifício está interiormente realizado, a ponto de ele levantar o braço para o golpe, que o Anjo aparece e o detém. Diante desta prova de confiança o mensageiro celeste lhe diz que sua descendência seria mais numerosa que as estrelas do céu e as areias do mar.

Às vezes Deus exige muito de nós, para dar muito também. A raça dos que vivem na dependura é a raça daqueles a quem Deus nunca faltará. Desejemos a graça de ficar, pelo menos algumas vezes, neste estado, de renunciar a todas as coisas da Terra para só almejar as do Céu, de compreender essa vocação especial, da qual teremos de prestar contas severíssimas. Mas compreendamos tudo isso à luz do amor de Nossa Senhora, que tem um amor inexprimível por cada um de seus filhos e os ampara sempre.

A vida de renúncia e de dedicação completa do leigo tem esta grande glória: é uma vida nos braços de Maria e sob a proteção d’Ela.

(Extraído de conferência de 21/1/1958)

1) Cf. Alocução ao Segundo Congresso Mundial do Apostolado dos Leigos, 5/10/1957.

2) Do italiano: “Se não é verdadeiro, está bem achado.”

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