Considerando os exemplos de ilustres antepassados, Dona Lucilia hauria os princípios que lhe serviam de fundamento para a prática da virtude da confiança.
Para compreender o papel da confiança na minha vida é preciso considerar esta virtude na história de Dona Lucilia.
Ancestrais exemplos de confiança
Minha mãe pertencia a uma das antigas famílias de São Paulo, às quais se costumam chamar de “paulistas de quatrocentos anos”, e estava habituada à ideia de que poderia ocorrer com ela o mesmo que se dera com alguns de seus antepassados, os quais, embora fossem pessoas de muita projeção e importância, capazes de realizar grandes esforços e se tornarem célebres por praticarem ações insignes para cumprir seu dever e a vontade de Deus, estiveram por vezes sujeitos a riscos de sofrerem terríveis fracassos. Foi o que se deu com o avô dela, a quem não cheguei a conhecer, Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos.
Ele era um homem alto, com porte muito nobre, dotado de uma capacidade oratória digna de nota. Ao mesmo tempo, um político exímio e capaz de se impor com firmeza. Entretanto, compreendia os “azares”, as dificuldades da política e, por causa disso, também as derrotas que não raras vezes ela impunha.
A narração de um episódio de sua história pode nos dar uma ideia de como era a mentalidade dele e qual o papel da confiança em sua vida.
Passando do brejo para o forno, de Secretário de Estado a tropeiro
Sendo muito bom político e orador, esse meu bisavô tornou-se logo Secretário de Estado – uma espécie de ministro – do Governador de São Paulo daquele tempo, Rafael Tobias de Aguiar1.
Houve em São Paulo uma revolução contra o Imperador, à qual Tobias de Aguiar aderiu, e Dr. Gabriel acabou “embarcando nessa canoa”.
As tropas comandadas pelo Duque de Caxias2 invadiram São Paulo e meu bisavô teve de fugir, de noite, escondendo-se no atual Parque Dom Pedro II, que era então um pântano enorme onde havia muita vegetação. Ali passou a noite inteira, metido no charco, o grande político e orador que dançara com a Imperatriz, causando sensação na corte.
Depois, com o auxílio de correligionários, conseguiu partir para Sorocaba, uma das cidades mais próximas de São Paulo.
Porém, não tardou para que os soldados do Duque de Caxias chegassem àquele lugar. Ao ouvir a notícia da entrada das tropas na então pequena Sorocaba, e vendo que facilmente o encontrariam, procurou refúgio na casa de um padeiro conhecido e simpatizante seu. Este lhe disse:
— Minha casa é pequena e qualquer pessoa nota que o senhor está aqui. Só vejo uma solução: o meu forno está apagado e é enorme; o senhor entra nele e fica aí até a tropa passar adiante.
Assim, o Secretário de Estado passou do brejo para o forno. Mas vendo que se continuasse naquela cidade por mais tempo seria capturado, disfarçou-se de tropeiro e, com a intenção de se refugiar na Argentina, engajou-se numa tropa que conduzia gado rumo ao Sul do Brasil.
Dr. Gabriel é descoberto pela esposa de seu patrão
Tendo partido de Sorocaba e estando já a caminho do Rio Grande do Sul, seu patrão resolveu vender algumas cabeças de gado a um sujeito interessado em comprá-las. Contudo, na hora do pagamento começou uma discussão intérmina e não havia meio de entrarem em acordo.
Dr. Gabriel, que tinha pressa em partir dali porque corria grande risco de ser preso, notou que o problema estava nos cálculos matemáticos errados, pois ambos não sabiam fazer as contas. Então, interferiu na negociação e, com muita destreza, apresentou-lhes a solução. Os negociantes ficaram muito satisfeitos, e assim puderam continuar a viagem.
Ora, a esposa do chefe da tropa presenciara a cena e, estando a sós com seu marido, disse-lhe:
— Você não percebeu que esse homem que está trabalhando para você não é tropeiro?
— Mas por que você diz isto?
— Veja com que facilidade ele fez as contas. Você acha que um simples tropeiro é capaz disso?
— Hum, é verdade…
— Para evitar encrencas para nós, vá e pergunte quem é ele. De repente é um fugitivo político…
O chefe dos tropeiros seguiu o conselho da mulher e interrogou meu bisavô, o qual acabou por revelar sua identidade.
Surpreso, o patrão tirou o chapéu e disse:
— Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos! Pois saiba que sou um grande admirador do senhor. Conte comigo para o que precisar.
Na Argentina, recebendo o socorro materno
Por fim, ele conseguiu chegar até a fronteira com a Argentina e ingressar nesse país. Mas ali não tardou a que lhe faltassem os meios de subsistência. Quando se encontrava naquele apuro, vendo o dinheiro acabar, de repente ele ouviu uma voz conhecida que cantava em português. Ele prestou mais atenção e reconheceu ser uma negra escrava da mãe dele.
Ele foi correndo à janela e chamou a mulher. Ao entrar onde ele estava, a primeira coisa que ela fez foi tirar um xale que a cobria e desamarrar uma espécie de colete no qual estavam costuradas, por dentro, uma grande quantidade de moedas de ouro. Então contou sua aventura.
Preocupada com a situação do filho, a mãe de meu bisavô mandara essa escrava de confiança viajar de São Paulo para a Argentina à procura do Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos para lhe entregar essas moedas.
Chegando à fronteira, ela precisava atravessar a ponte limítrofe entre Brasil e Argentina, guarnecida por soldados brasileiros e que ninguém podia atravessar sem permissão. Como essa mulher não tinha autorização e nem meios de obtê-la, começou a produzir doces que ora vendia, ora dava de graça para os soldados brasileiros.
Certo dia ela quis atravessar a ponte, mas os guardas suspeitaram do pedido dela e disseram:
— Nós deixamos passar, mas temos que revistar você antes.
Ela respondeu:
— Isso não! Ninguém toca em mim, eu proíbo absolutamente.
Declarou isso com tal dignidade que não ousaram revistá-la, e deixaram-na passar. E lá foi ela com o coletezinho repleto de ouro.
Já em terras argentinas, ela começou a perguntar por um exilado brasileiro, mas ninguém sabia informar. Então ela resolveu ir andando pela cidade, cantando uma canção que meu bisavô conhecia, confiando que ele ouviria e viria à janela. E assim aconteceu. Ele a reconheceu e se encheu de dinheiro.
A vitória da confiança
Dr. Gabriel José ficou ainda morando algum tempo na Argentina, até receber o recado de que o Governo imperial estava disposto a dar anistia aos revoltosos caso não se levantassem mais em armas. Ele aceitou e voltou para o Brasil. Mas a anistia não tinha sido concedida e, vindo a São Paulo, ele foi preso.
No julgamento dele, o advogado de defesa foi o Conselheiro Crispiniano3, muito amigo de meu bisavô, e era um famoso Conselheiro de Estado.
O discurso de defesa feito pelo Conselheiro Crispiniano se tornou célebre pela ostentação do orador, cujas primeiras palavras ao subir à tribuna foram:
— Egrégios membros do tribunal, a minha simples presença nesta tribuna prova a importância da causa que vou defender.
Isso, na vida pacata da São Paulo daquele tempo, marcava muito: “Olhe o vaidoso!”
Afinal, meu bisavô foi julgado e absolvido.
Quando ele saiu do tribunal, os alunos da Faculdade de Direito e as moças da sociedade de São Paulo formaram uma ala ininterrupta da Praça João Mendes até a casa dele, na esquina da Rua 15 de Novembro com a Praça da Sé. À medida que meu bisavô passava, as moças iam jogando flores. Essa fase de carreira política dele estava encerrada.
Aí está a vida desse antepassado de Dona Lucilia, feita de diversas tensões e situações difíceis, mas da qual mamãe tirava a lição de que, tendo confiança, ele vencia tudo.
(Extraído de conferências de 29/6/1977 e 19/8/1995)
1) Político e militar, um dos líderes da Revolução Liberal de 1842 (*4/10/1794 – †7/10/1857).
2) Luís Alves de Lima e Silva (*25/8/1803 – †7/5/1880).
3) João Crispiniano Soares. Jurista e político paulista (*24/7/1809 – †15/8/1876).