Em nossos dias tudo tende a negar a existência do absoluto e a conduzir ao relativismo que, no fundo, corresponde a uma postura ateia perante a vida. O ininterrupto desejo do absoluto e a desolação por ele não ser procurado constituem um elemento fundamental para a santificação e redundam no cântico mais agradável a Deus.
Um tema muito alto e bonito a considerar é como fazer para melhorar, clarear em nós o senso do absoluto, limpando-o de hábitos mentais errados e outras escórias que nos impedem de ter a visão do absoluto em toda a sua amplitude.
É um trabalho como o de limpar um para-brisa para, depois, ver o panorama. Não é ainda a pesquisa ou classificação doutrinária, mas uma ordenação de dados prévia à doutrinária, para avivar o senso do absoluto. Em cogitações dessa natureza é fundamental retificar as premissas num raciocínio puramente doutrinário. Vamos ao assunto.
Negação do absoluto, uma forma de ateísmo
Eu tenho a impressão de haver toneladas de coisas torcidas em nosso senso do absoluto, as quais nos amortecem para um tema dessa natureza. Por exemplo: Em geral, as pessoas dotadas de senso musical têm dois estilos de reações diante de uma música desafinada.
Uma atitude é a de quem, diante daquilo que estragou a música, se desagrada, fica maltratado em si mesmo e toma a torção da melodia como um outro sofreria um desaforo. Sobretudo, se verificasse tratar-se de uma escola musical errada, caipira, canhestra que deforma a música.
Outro estilo é de quem não se incomoda, pessoas as quais não faz a menor diferença se, em si, a música esteja bem ou mal cantada, e dizem: “Não tem nada, eles estão fazendo um bom dinheiro assim, deixa cantar como quiserem.”
A meu ver, essa reação de indiferença deveria ser qualificada por nós de ateia, mesmo quando praticada por um católico. Porque o senso pelo qual um homem sente que na profundidade da ordem do ser a música está transgredida por um erro, dá à pessoa a vivência de um determinado absoluto.
Todas as normas de ordem moral, estética, sapiencial, operativa têm com a ordem do ser um nexo que, violado o senso do absoluto, a pessoa deve se sentir chocada. Se não houver choque, é ateísmo, pois é a negação do absoluto. Deus é o Absoluto. Assim, violar esse senso – vou usar uma expressão muito incorreta – é como quebrar a antena que o homem tem por um lado de sua alma, que o ordena em relação a Deus.
Nesta linha nós teríamos um número quase incontável de elementos a mencionar. Por exemplo, o cimento e a matéria plástica incutem a ideia da inexistência do absoluto. A facilidade com que esses materiais se prestam à manipulação do homem, o inexpressivo daquela matéria-prima com a qual se constrói qualquer coisa, de qualquer jeito, a qualquer momento, dão uma impressão de relatividade de todas as coisas, segundo a qual as elaborações mais imponentes, no fundo, são nada. Com o cimento constrói-se facilmente uma ponte que ri e escarnece de quem passa embaixo.
Se fôssemos considerar quantas pessoas de subconsciente ateu há por aí e quanto de subconsciente ateu há em nós, é uma coisa simplesmente de aturdir!
A partir do momento em que o homem resolveu despojar-se dos mantos régios para bancar o fauno no mato, afirmou o fardo do absoluto na alma e o delicioso de passar pela pradaria do irresponsável e do relativo. Há pessoas que, às torrentes, se entregam a isso.
Compreender como o mundo de hoje é assim foi uma das realidades mais duras que constatei em minha vida. Eu devia conservar-me fiel ao absoluto, dentro de um mundo que já relativizara não sei quantos valores e ia relativizando tudo, num galope cada vez mais crescente.
O quadro L’Indifférent de Watteau1 é o relativista: “Estou andando aqui e vou para onde qualquer zéfiro soprar, porque tudo é relativo.” Isso tudo é ateísmo.
Esquema das principais posições relativistas das quais é preciso limpar a alma
Seria preciso fazer uma lista de atitudes assim. Um elenco completo seria impossível, mas pelo menos deveria ser tão vasto que várias categorias estivessem compreendidas, sob pena de, irremissivelmente, conservarmos restos de ateísmo dentro da alma.
Para efeito prático de despoluir de reflexos relativistas as nossas almas, eu acho que já teríamos caminhado muito se fizéssemos um elenco constituído de certos tipos de situações na vida humana.
Primeiro: posições relativistas do homem em face de si mesmo. Atitudes que acontecem na vida de um indivíduo, para as quais ele pretende dar uma solução relativista.
Segundo: posições relativistas dos homens em face dos outros, em matéria de polidez, de discussão, de dignidade, etc.
Terceiro: posições relativistas dos homens em face das outras coisas. Diante de realidades notavelmente belas ou feias, boas ou más, analisar como a pessoa reage.
Poderíamos compor um dicionário do relativismo, no qual um capítulo grosso seria a posição de relativismo perante a própria vocação.
Em face disso, algumas pessoas me diriam: “Eu não tenho coragem para levar uma tal vida diante do absoluto.” Eu responderia a essas pessoas que isso se dá porque o senso do absoluto nelas ficou amortecido. É mais ou menos como um homem que quebrou a antena do rádio e depois reclama não ter paciência de estar ligando um rádio sem antena. Se essa gente vibrasse com cada absoluto que vê, não teria coragem para viver sem ele. O resto é defeito.
À força de remover esses entulhos, o senso do absoluto começaria a respirar e o indivíduo se transformaria. Seria uma retificação sem nome!
A simples cognição não basta, é preciso sentir o absoluto em outra pessoa
Em última análise, não acredito que com um simples conhecimento de um elenco desses alguém passasse do relativismo para o senso do absoluto. A cognição talvez seja até indispensável, mas o que estimula é tratar com pessoas que possuem o senso do absoluto. Do contrário não dá em nada.
A sede se mata com água e, assim como era missão de São Francisco Solano tocar violino para apaziguar os índios, é missão nossa, pelo nosso senso do absoluto, fazer os tupiniquins dos tempos modernos se sentirem animados a caminharem para o absoluto pelo contato conosco. Podem até querer nos matar, é uma outra questão sem importância nenhuma. Mas ou se sente o absoluto em outro ou não se tem nada feito.
Por um jogo parecido com as consonâncias entre os cristais, essas almas, postas no mundo, tocam e despertam o alarme de tudo quanto é cristal ainda consonável. Fundamentalmente a Contra-Revolução é isso. E todas as nossas ações, embora visem seu fim imediato, são feitas com a impostação de despertar esse senso e atrair essas almas.
O erro da “heresia branca”: substituição da convicção pela impressão
Como era o senso do absoluto para a “heresia branca”2? A “heresia branca” aceitava o princípio de que a impressão substitui a convicção. Não assim tão radicalmente, mas no fundo era isso. Ela procurava despertar emoções, muito mais do que apologética; e quando esta entrava em cena, era completamente no ar, despida de qualquer senso da vida real.
Se o sujeito desmaiou, equivale ao ato de fé absoluto. Se ele chorou, é um ato de fé insigne. Vamos dizer que o desmaio é a “visão beatífica” da mística deles, e o pranto é um alto “estado místico” ou uma “confirmação em graça”. Ora, isto é romantismo religioso.
Faz parte do mesmo erro a ideia de que a emoção muito viva tem qualquer coisa de exagerado e não corresponde bem à realidade. Diz a “heresia branca” que a realidade está enferma ao produzir atos que causam estremecimentos de alegria ou de tristeza. Segundo esta mentalidade, é saudável quando provoca sentimentos médios, os quais comportam, de maneira também mediana, todas as gamas do sentir humano. Então, não é chorar, mas ter um chorinho, pequena emoção, pequeno gáudio, pequena alegria.
Neste sentido, por exemplo, para a mentalidade “heresia branca” o medieval dá uma impressão carregada demais de algo eterno, com belezas e alegrias excessivas. Não vai! É preciso algo que impressione menos.
O senso moral que caminha para o relativismo
Desta consideração resulta um senso moral que caminha para o relativismo.
“Pecado? Claro, não se deve cometê-lo! Praticar a virtude é muito bom. O Céu existe, o Inferno também. Mas, no total, Deus acaba perdoando os pecados. A alegria d’Ele diante do ato de virtude não é tão imensa. A diferença entre virtude e pecado não é tão grande, não há uma oposição verdadeira, irremediável e profunda entre ambos. Ademais, não se chora tanto quando alguém morre, nem se fica tão alegre quando alguém é batizado; no casamento não se olha tão fundo se aquilo vai trazer desilusão ou não. Tudo isso traz sentimentos extremos e estes são mórbidos. Fique no meio termo e você terá o resto.”
Daí decorre uma espécie de deterioração, de maneira a resultar na farândola da imoralidade e dos problemas sociais crescentes. Apesar de se perceber tudo isso, não se quer olhar porque a boa ordem interna saudável se perturbaria. Mas, por não querer olhar, deixa-se para amanhã e o processo se desenvolve. O resultado é uma tragédia. Ora, como a tragédia faz parte da gama da realidade que a “heresia branca” renunciou a ver por ser mórbida, um grande sacrifício, então opta-se por ceder.
Esse estado de espírito diante da tragédia, por exemplo, da Guerra Mundial resultou no pacifismo. Disseram: “Isso, nunca mais! Custe o que custar, gente que faça campo de concentração e provoque guerra, jamais!” Resultado: falso ecumenismo, banalidade dentro de uma vidinha em proporções pequenas, moderadas, com luxo cada vez menor, alegriazinha da coisinha ordinária. As pessoas imbuídas de tal espírito estão certas do seguinte: “Todas as coisas extremas conduzem a tragédias. Na pequena alegria entretida e mediana o homem encontra o único ponto de equilíbrio que evita a tragédia. Vamos para lá!”
Assim, o absoluto nas melhores figuras de si próprio é expulso. E para reportar ao que dizia no início, isso é ateísmo. Portanto, quem pensa assim não tem somente o espírito relativista, mas ateu.
Elemento fundamental para a verdadeira santificação
Em contraposição, o ininterrupto desejo do absoluto e a desolação por ele não ser procurado redundam no cântico mais agradável a Deus em nossos dias.
O que foi para Deus o cântico da pobreza no tempo de São Francisco de Assis, tenho a impressão de que é o nosso cântico do absoluto hoje. É o cântico da axiologia aflita porque o absoluto parece esconder-se.
Desde que tenha sido dada ao homem a graça de compreender o senso do absoluto perseguido, tal como foi Nosso Senhor durante a Paixão, e de que esse senso está propriamente no momento do brado “Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me?”3, ver isso e estar atento a outra coisa é errar o passo.
Não acredito que se possa alcançar uma verdadeira santidade sem isso. As mil fórmulas de santificação sacratíssimas, pelas quais nós damos nosso sangue, tornam-se ocas se não têm a atenção voltada especialmente para esse ponto. São sagradas, mas a questão é que, para nossos dias, pede-se a complementação do senso do absoluto, pois com a alma humana trincada como está, não daria em santidade.
Atitude dos contrarrevolucionários em face do Absoluto
O senso do absoluto é mais ou menos como a serpente de bronze no deserto, que os judeus, olhando-a, eram curados das mordidas das serpentes. Nossa Senhora nos concede a cura de lados da alma em relação aos quais somos fracos, se contemplarmos o absoluto.
Dou um exemplo para me exprimir melhor. Imagine uma pessoa impura. Se ela fosse inteiramente correta nessa prova de olhar para o absoluto, ganhava elementos a mais para vencer a impureza. E assim com o orgulho ou quaisquer elementos da Revolução, sobretudo o relativismo.
A Contra-Revolução não é senão o movimento inteiro de certas almas desde o relativismo onde estão imersas para esse estado de prova em relação ao absoluto, onde nada nelas reste de relativo. As almas contrarrevolucionárias, portanto, expiam suas faltas, adoram o Absoluto e põem de lado tudo quanto é relativo.
Na sua Paixão, desde o Horto das Oliveiras até a Ressurreição, Nosso Senhor Jesus deu ao homem relativista dos dias de hoje um exemplo admirável daquilo que em nós se chama o senso do absoluto e a Fé. Ele quis expiar esses relativismos e curar nossas almas dessas chagas.
É, portanto, legítimo que meditemos a sua Paixão à luz disso, porque devemos carregar o peso de nossa época e fazer nossa meditação em confrontação com ela. Podemos, portanto, tomar a Via Sacra desde o início e percorrê-la sob este aspecto: De quanto relativismo todos nós não estamos cansados! Como ele mente, exaure, desnorteia, envelhece e enlouquece!
Afinal, acaba sempre acontecendo isto: o relativismo finge que dá muito e não dá nada; o absoluto aparenta não dar nada e dá tudo.
(Extraído de conferência de 3/2/1982)
1) Jean-Antoine Watteau. Pintor francês (*1684 – †1721)
2 ) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.
3) Do latim: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46).