Ilustrações: J. Pinchon
Becassine

DESCREVENDO OS COSTUMES AINDA MEDIEVAIS  
DA BRETANHA, A HISTÓRIA DE BÉCASSINE MARCOU  
PROFUNDAMENTE A FORMAÇÃO DAS CRIANÇAS DE  
ANTES DA II GUERRA MUNDIAL, PERVADINDO  
A INFÂNCIA DE ENCANTO E INOCÊNCIA.


A meu ver, em fins do século passado até a II Guerra Mundial, mais ou menos, todas as crianças francesas, ou grande parte delas, e inclusive as estrangeiras educadas ao estilo francófilo, encantaram-se na infância com as histórias de Bécassine.

Reminiscências da Bretanha medieval

Trata-se da história de uma menina bretã pouco dotada de inteligência, porém, que representava a bondade. Ela tinha uma prima-irmã, chamada Marie Quillouch – louche, louchée, em francês, significa vesga; Marie Quillouch significava Maria Vesga – a qual representava a maldade. Ambas nascidas na Bretanha.
Esta região fora evangelizada remotamente por São Luís Maria Grignion de Montfort, constituindo-se um dos redutos católicos e monarquistas da França, onde os costumes medievais conservaram muita força até quase a II Guerra Mundial. 

Ilustrações: J. Pinchon
Becassine – J. Pinchon

Depois deste terrível acontecimento estive na França e, ao visitar o castelo de Versailles, tive a alegria de ver uma bretã com sua touquinha entre as pessoas do povo que vi-sitavam o castelo. No tempo de Bécassine, a Bretanha tinha ainda castelos com seus castelões; a população era agrícola, todo mundo se vestia como na Idade Média. Nas aldeias em que viviam, os automóveis ainda não tinham penetrado.

Clocher-les-Bécasses era uma aldeiazinha que tinha ali perto um castelo onde morava a família dos castelões; o marquês e a marquesa de Grand-Air – Grand’air quer dizer grande ar, grande estilo ou grande categoria.

O marquês, na hierarquia nobiliárquica, é o título que mais exprime o misto da alta distinção com a delicadeza. O duque já tem qualquer coisa do imperativo, de mandão, e está quase na realeza. O marquês, não. Ele é o ápice da nobreza média, onde ela floresce no que tem de mais delicado, mais suave, afável, ameno, e quintessenciadíssimo também. Então, quando se quer dizer que uma senhora tem a plenitude da graça, do charme, da delicadeza e da fragilidade feminina, além da quintessência da aristocracia, se diz: é uma marquesa. Ou então, em estilo masculino, o marquês.

A história de Bécassine nos apresenta muitos de-senhos dispostos em quadrinhos, com dizeres embaixo – naquela época as crianças liam –, contando a his- tória da menina bretã, e descrevendo os costumes ainda medievais da Bretanha daquele tempo . Os quadrinhos tinham desenhados céus bonitos e paisagens repousantes, com cores claras, pois esse colorido inocente da Bretanha era muito próprio para formar a mentalidade de uma criança e dar-lhe todo aquele equilíbrio psíquico e estabilidade que ela deve ter, totalmente opostos ao Drácula e ao mostro norte-americano de rosto deformado.

Profunda tradição no ambiente natal de Bécassine

Ilustrações: J. Pinchon
Becassine

No primeiro quadrinho aparece a casa onde nasceu Bécassine e o texto explica o desenho . Era uma casa de camponeses, em geral, feita de pedra, com o teto de palha, e uma criação de porcos . Por mais pobre que fosse, a casa era bonitinha, proporcionada e acolhedora.

Annaïk Labornez, destinada à celebridade com o nome de Bécassine, teve por primeira morada a granja que seus pais cultivavam em Clocher-les-Bécasses, não muito longe de Quimper.

Seu nascimento não foi assinalado, como o dos heróis da antiguidade, por tremores de terra e chuvas de fogo. Ob- servou-se somente nessa época uma grande revoada de pássaros selvagens, gansos, patos e galinholas.

Na cena, os camponeses aparecem muito  espantados vendo passar os bandos de pássaros . Notem os trajes . Um deles está montado a cavalo, trajando um chapeuzinho de fita preta, um paletó azul claro, uma calça marrom claro com uma espécie de polaina feita de pano, e sapatos . Os demais homens que estão a pé, vestem-se da mesma forma . As mulheres estão todas cobertas, com vestidos muito decentes: saiões grandões, taman-  cões, uma touca sempre limpa e muito bem arranjada . Ademais, vemos aquelas construções herdadas dos drui- das, e que são características da paisagem bretã .

Em outra figura podemos ver mais de perto o traje do camponês e da camponesa . Vestes que não indicam nenhuma vaidade, mas uma certa preocupação em se apresentar digna e decentemente; tudo isso dá uma ideia de gosto e muita inocência . Não há a menor sensualidade ou faceirice neles .

Notem os personagens: não têm nervosismo; são camponeses calmos, que andam devagar, comem, pensam e também vivem devagar .

Annaïk Labornez era um bebê forte, rosado e roliço. Ela tinha olhos e uma boca minúscula, e seu nariz era tão pequeno que mal se podia ver.

Aí está ela deitada no berço . É interessante notar como era bonito o berço de uma criança nesse contexto . Trabalhado a mão, provavelmente de carvalho, o berço era feito de tábuas justapostas, com um dispositivo embaixo para poder rolar enquanto ninavam a criança; e a parte frontal era toda trabalhada à mão .

Ilustrações: J. Pinchon
J. Pinchon – Becassine

Durante a longa temporada do inverno, quando não tinham o que fazer, pois a natureza estava toda enregelada, dia e noite os camponeses se dedicavam a fabricar móveis, tecer roupas, além de aprimorar as respectivas casas, organizando-as e limpandoas, de maneira que quando começava o período de trabalho, eles já tinham tudo pronto para trabalhar .

Nessas longas noites, artesãos anônimos faziam objetos para serem depois transmitidos como herança familiar durante séculos . Hoje são objetos expostos nos museus por causa de seu bom gosto, mas qualquer homem simples daquele tempo os possuía .

Uma estranha crença entre o povo

O tamanho do nariz desolava seus pais, que todos os dias mediam o pobre narizinho. “Ele não cresce! Que infelicidade! Vamos ser a chacota de toda a região.” De fato, em Clocher-les-Bécasses acreditava-se que a inteligência está em proporção com o tamanho do nariz.

Annaïk tinha o rosto em forma de lua, com os olhos aparvalhados e um nariz minúsculo . Aliás, bécasse é exatamente um passarinho de bico muito pontudo, e por irrisão, chamavam a menina de Bécassine, porque ela quase não tinha nariz; usava uma touca de camponesa bretã com aquelas duas abas . Com frequência, a ingênua menina ficava sem compreender as coisas que ela própria dizia, mas era muito bem intencionada, carregando aquela tradição bretã de fidelidade, bondade e dedicação .

Esse narizinho curto aborrecia ainda mais ao casal Labornez por causa de uma prima da mesma idade de Annaïk, Marie Quillouch, que nada deixava a desejar do ponto de vista do nariz.

Marie Quillouch, ao contrário, era vesga, tinha o rosto comprido, o nariz pontudo e sua boca estava sempre pronta para dizer desaforos, pois era mal-humorada .

Essa estranha crença ligava-se, sem dúvida, ao que se observava no pequeno burgo, durante a temporada de verão, ou seja, a presença de um grande sábio, membro de numerosas academias e que era dotado de um formidável apêndice nasal.

É a caricatura de um velho professor de antes da I Guerra Mundial . Este personagem tinha um narigão, era quase inteiramente calvo, portava um chapéu e vestia uma espécie de paletó de casimira, sobrecasaca e calças de brim . Na cena, o grande sábio vê-se na praia e as crianças dos camponeses – vestidas com roupas de praia no estilo camponês, não no sentido ruim da palavra –, conversam com ele muito es- pantadas, porque acham-no esquisito . Estão perguntando qualquer coisa, e estão pasmas com o sábio .

Ora, há muito existia uma rivalidade entre a família Labornez e a família Quillouch. Yann Quillouch detestava Conan Labornez porque num almoço oferecido pelo deputado aos notáveis da região, Labornez sentara-se mais perto do que ele, do dono da casa.

J. Pinchon
J. Pinchon

É o tipo do deputado de antes da I Guerra Mundial . Porta a faixa tricolor com as cores da república francesa; é gordão, porque tem amplas remunerações, tem barbicha, e o cabelo está um pouco à maneira do sábio, porém é mais moço do que ele; é verboso, demagogo eleitoral, um orador tal que deixa os camponeses apatetados, sem saberem o que dizer .

O pai da  Bécassine está bem próximo do deputado e  este fala só para o Sr. Labornez. No desenho aparece outra notabilidade: é um velho meio surdo, que põe a mão no ouvido para ver se entende o que o deputado fala para o pai da Bécassine . E o pai da Marie Quillouch está sentado em terceiro lugar, louco para ouvir e não consegue . Então, ficou inimigo do seu próprio primo .

Também porque na fanfarra municipal, Conan era encarregado do bumbo, instrumento que não passa desapercebido, enquanto que ele, Yann, devia se contentar com a função modesta de tocador de triângulo.

Chamo a atenção, mais uma vez, para a variedade dos trajes e das cores . As roupas tinham uma vaga inspiração na vestimenta da nobreza, mas não era para bancar o nobre. É a roupa típica de camponês.

De outro lado, Conan Labornez não podia perdoar o seu primo de haver obtido, no concurso agrícola, uma medalha para seus porcos, enquanto que ele só obtivera uma menção honrosa.

Havia então um pouco de ciúme entre eles e isso se notava na maneira como as mães falavam de suas filhas.

J. Pinchon
Mae de Becassine com Marie Quillouch

Olhem a mãe da Bécassine, como se parece com a filha, enquanto a mãe da  Marie Quillouch,  está  irritada. As duas estão brigando no duro.

“A vossa – dizia a Sra. Quillouch – é mais gorda, mas a nossa tem um nariz mais bonito.” Ao que  a  senhora  Labornez   respondia   vivamente: “Provavelmente ela está orgulhosa de seu nariz, pois o observa o tempo todo com os dois olhos ao mesmo tempo.” Brincadeira bem camponesa A menina era vesga.

Batismo carregado de tradição e inocência

 Entretanto, decidiu-se que os dois batizados seriam celebrados ao mesmo tempo. Quase todo mundo é mais ou menos primo em Clocher-les-Bécasses. Por isso toda a aldeia foi convidada para a cerimônia religiosa e para o jantar.

J. Pinchon
Batismo de Becassine

Analisemos o cortejo que vai para o Batizado. É a reprodução dos costumes da época. Na frente, dois camponeses tocando um instrumento típico da região chamado biniú ou cornemuse; depois, a mãe da Bécassine, e a mãe da Marie Quillouch, cada uma carregando a própria filha nos braços, entretanto, as duas se olham com desdém. Atrás delas vêm os respectivos maridos, que, tirando o chapéu, cumprimentam cerimoniosamente o carteiro. Em seguida, um personagem do qual se falará mais adiante, o tio Corentin; e por fim, de dois em dois, o resto da aldeia seguida pelos patos e porcos.

O tio Corentin, grande caçador, um pouco original, e que tem sempre uma palavra espirituosa, foi escolhido para padrinho de Annaïk. “Uma bela menina – disse ele erguendo a nos braços – e que vale seu peso. Pena que ela tenha esse nariz, ou melhor, que ela não tenha nariz.”

“E depois, essa ideia de chamá-la Annaïk… Com todas as Annaïks que há na aldeia, ha- verá confusão. Quando na rua eu gritar ‘Annaïk’, serão vinte meninas que virão. É preciso encontrar-lhe um apelido.” O sinal da partida interrompeu suas reflexões.

Foi um belo Batismo. A proprietária do castelo, a Senhora Marquesa de Grand-Air, para quem a mãe de Annaïk trabalhava por dia, veio assistir a cerimônia. Os Labornezes não ficaram pouco orgulhosos vendo-a chegar em sua caleça, puxada por dois cavalos.

A cena da chegada de Madame de Grand-Air para um Batizado é uma obra prima. Nela podemos ver como é a nobreza autêntica, além de comprovar como a verdadeira plebe é simpática, interessante, um foco contínuo de cultura. É uma organização social ao estilo antigo.

A marquesa, muito esguia, frágil, risonha e amena, protegendo-se do sol com uma sombrinha, chega numa caleça imponente, puxada por dois cavalos brancos; segundo o costume e a etiqueta, a nobre vem sentada no lado direito da carruagem – posição na qual se deve sentar a pessoa que está sozinha num transporte –, sorrindo muito gentilmente para o camponês extasiado com a sua chegada. Enquanto o cocheiro, trajado com uma espécie de cartolinha, uma libré com colete vermelho e paletó preto, e um chicote imponente, está muito mais orgulhoso a propósito da marquesa do que ela própria, e nem olha para o camponês.

J. Pinchon
Tio Corentin

Na saída da igreja, o tio Corentin lançou para o ar dragées e moedas para as crianças.

Dragées são umas balas, em geral, de fruta e licor, re- vestidas de açúcar. Era costume, terminado o Batizado, os padrinhos jogarem moedas e balas para a criançada toda que esperava ao lado de fora da igreja para apanhar tais objetos. Veem-se os meninos pisando uns em cima dos outros para pegar as balas e moedas que caíam no chão. A seguir, dava se a comemoração.

Annaïk torna-se Bécassine

Depois, ao som do biniú, dançou-se no local.

Aparece, então, uma parte da festa. Os pais dançando em torno de uma barrica, enquanto as crianças permanecem deitadas sobre a grama, em cima de um tecido azul-claro. Bécassine, plácida, faz um gesto amigo e a prima vesga com seu narigão, ao contrário, já está se mexendo mal à vontade, pulando e fazendo acrobacias; são dois tipos, dois caracteres que eles querem repre-sentar.

No meio do público está um sujeito cantando e animando a festa. É a alegria popular de um festejo inocente, que terminava em comilança e beberagem, mas tudo numa atmosfera familiar.

As duas meninas tinham sido instaladas à sombra de um grande carvalho. Annaïk ria com todo o seu rosto redondo, prenunciando seu bom caráter, enquanto sua prima era, mais do que nunca, Maria qui-louche: Maria que olha com inveja.

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Becassine

A hora do jantar chegou: todos os estômagos estavam famintos, mas houve um movimento de inquietação, o tio Corentin havia desaparecido. O que acontecera ao padri- nho? Ele chegou, finalmente: “Enquanto vocês dançavam, fui caçar. Toma, minha sobrinha, assa bem essas aves. Não vai ser este o pior prato do jantar.”

Depois, voltando à sua ideia de antes do batismo, e olhando Annaïk, disse: “É pena que ela não tenha no meio do rosto um nariz como o dessas aves.” Dizendo isso, ele tomou uma das narcejas que trouxera, escondeu o corpo com sua mão enorme e colocou o bico em frente de sua afilhada. “Uma verdadeira bécassine – disse, rindo, a Sra. Quillouch”. Eis, tio Corentin, o apelido que o senhor procurava.

“Sim, sim”, gritou toda a assistência. “Bécassine, Bécassine!” “Por minha fé, confessou Corentin, isso lhe cai como uma luva”. E foi assim que, apesar dos protestos indignados de sua mãe, Annaïk Labornez tornou-se Bécassine.

Bécassine na alta sociedade

Agora, Bécassine já mocinha vai visitar o castelo, onde se vê a Madame de Grand-Air sentada numa poltrona, muito lânguida, mas numa posição muito composta e distinta. A ilustração contém uma cortina e uma palmeira, objetos que constituíam o sinal de luxo na Europa; e um cachorrinho com um manto vermelho .

J. Pinchon
Becassine na alta sociedade

A Sra. Labornez vai frequentemente trabalhar para a Marquesa de Grand-Air. Um dia esta lhe disse: “Traga-me a Bécassine na quinta-feira de manhã. Ela almoçará conosco e depois brincará com minha pequena Simone.”

“Ah, ela fará um papel ridículo entre as pessoas finas” – exclamou a Sra. Quillouch quando soube da novidade. Mas o tio Corentin assegurou que Bécassine se sairia galhardamente da prova. Além do mais, acrescentou ele, eu me encarrego de ensinar-lhe boas maneiras, pois as conheço bem. A prova disso é que quando eu era picador do falecido marquês, o pai do atual, dizia-me ele com frequência: “Corentin, você está certo de que não é primo do Rei Luís Felipe? É impressionante sua semelhança com ele.”

A figura apresenta o tio Corentin em traje de caça característico pelo paletó vermelho, levando a trombeta de caça em torno do pescoço, segurando o seu chapeuzinho na mão, com os cabelos brancos, mas muito delicado, atencioso e distinto, falando com o marquês . Em outro desenho ele está representado quando ainda moço, com a cabeça alta e uma enorme costeleta na face, muito parecido com o Rei Luís Felipe I da França . Aliás, o tio de Bécassine surgira como uma caricatura deste monarca, pois a revista portadora das historinhas da camponesa bre- tã fora feita para a nobreza conser- vadora, inimiga de Luís Felipe.

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Becassine na alta sociedade.

O tio Corentin começou suas lições de boas maneiras ensinando Bécassine a fazer reverência.

A maneira com que está representada a reverência é uma sátira muito leve e amena do jeito camponês .

Isso não foi sem alguns tropeços, mas o resultado foi muito bom. Depois vieram os conselhos: “Não deixe esmorecer a conversa. É preciso dizer bom dia a todos. Dizer algo engraçado, que faça rir. Ser útil, quando for preciso. Imitar os outros quando se fica embaraçado e não se sabe como agir, etc., etc.” Chegado o grande dia, ele colocou no braço de sua sobrinha um cesto contendo um pato e maçãs, porque, disse ele, não é polido comer os manjares dos outros sem nada levar. E conduziu-a até a grade do castelo. O valet de chambre, Joseph, introduziu Bécassine no vestíbulo. “Coloca teu cesto no chão, pequena, e pendura teu xale no cogumelo. O que estás procurando no chão?” “Procuro, Sr. Joseph, o cogumelo.” “É aqui o cogumelo, Bécassine” – disse Joseph, mostrando um cabide de madeira. Chamavam de cogumelo àqueles cabides com o mesmo formato.

J. Pinchon
Becassine

Bécassine está muito surpresa. Que cogumelo engraçado! Ela jamais vira um igual. Provavelmente é uma espécie rara, que só cresce nos castelos. Joseph deixou-a sozinha. Ela se aborrece. Que fazer? Vejamos. O tio Corentin me disse para dizer bom dia a todos. Vou dizê-lo a senhorita Mélanie, a cozinheira.

Prestem atenção no conjunto de servidores do castelo . Aquele mordomo está impecavelmente vestido com casaca, e muito cônscio da dignidade de servir um marquês. A cozinheira é o tipo de pessoa entregue a cuidados domésticos, voltada para a cozinha, satisfeita, vestida semelhante às camponesas.

E ela entra na cozinha. Mélanie a re- cebe com um grito de alegria: “Caíste do céu! Não tenho cogumelos para o molho. Vá pedi-los ao jardineiro.” “Não é preciso, Sra. Mélanie. Eu tenho o que a senhora precisa.” E saindo apressadamente, Bécassine volta triunfante com o cabide que Joseph havia chamado de cogumelo.

“Vamos – resmungou Mélanie – não serves para realizar essa incumbência. Vai colocar isso no lugar e fica no vestíbulo.”

Novamente o vestíbulo… Bécassine percebe então uma armadura montada num manequim. “Que será isso? Provavelmente é a bateria da cozinha. Sim, o objeto redondo do alto é a saladeira. O grande do meio é a assadeira, e essas coisas compridas dos lados devem ser as travessas para peixes. Que ideia engraçada essa de colocar isso numa sala tão bonita. E depois está opaca. Mélanie esqueceu-se de brilhá-la, de lustrá-la e vai ser repreendida por isso. Eis o momento de me tornar útil.”

Bécassine pega uma pequena toalha de seda colocada sobre uma mesa e corajosamente lustra o capacete, que logo ficou reluzente como um espelho. Joseph surpreendeu-a  nessa  ocupação e não ficou satisfeito. “Que invenção é essa? A senhora marquesa recomenda que se conserve o aspecto antigo dessa armadura. Entre na antessala e, sobre tudo, não mexa em nada.”

Na sala, na parede em frente à porta, há um retrato da Senhora de Grand-Air. Bécassine pensou estar diante da própria marquesa. Fez uma reverência e o mais polidamente que pôde, desejou bom dia. O retrato, naturalmente, nada respondeu. Então, Bécassine, se lembrando das recomendações do tio Corentin, iniciou a conversa. Perguntava as novidades, falava do tempo das colheitas. Nenhuma resposta. Ela estava quase sem assunto. Meu Deus, a conversa vai esmorecer.

Para evitar esse desastre, Bécassine encontrou um meio: pôsse a cantar um cântico que aprendera no catecismo.

Neste momento a porta se abre e a marquesa aparece. Bécassine permaneceu um momento estupefata. Depois, fazendo nova reverência: “Senhora Marquesa, eu não sabia que a senhora tinha uma irmã gêmea. Ela é bonita como a senhora, mas bem menos amável, pois não responde nem uma palavra do que se lhe diz.”

A Senhora de Grand-Air teve grande dificuldade, primeiro em compreender o que Bécassine lhe dizia, e, depois, em explicar-lhe o equívoco…

(Extraído de conferência de 8/7/1972)