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Carola: caricatura do verdadeiro católico

O carola só procura praticar a mansidão, a docilidade, a conformidade, a prudência. Entretanto, além dessas qualidades, o verdadeiro católico deve ter em alto grau a coragem, o denodo, a intrepidez, o espírito de iniciativa e de realização. O Catolicismo é, por excelência, a escola das almas grandes e fortes, capazes das audácias santas, das energias inquebrantáveis, dos empreendimentos ousados que a Fé sabe inspirar.

Há uma série de ideias que implicam na negação dos princípios mais essenciais de nossa Religião e que, entretanto, circulam por nossos ambientes sem que as pessoas em cujo espírito elas encontram guarida notem que, na realidade, estão aceitando doutrinas condenadas pela Igreja.

Flávio Lourenço

Pior do que todos os panfletos heréticos

Trata-se não propriamente de doutrinas, mas de preconceitos, impressões, tendências psicológicas que implicam na negação da Doutrina Católica. E só Deus saberá dizer no dia do Juízo Final quanto esses erros terão concorrido para afrouxar as almas no caminho do bem, macular nelas a pureza virginal da ortodoxia ou dos costumes, e finalmente atirá-las pela estrada larga da heresia até a perdição eterna.

IABI (CC3.0)
Godofredo de Bouillon entra em Jerusalém

Faz parte desse conjunto de preconceitos todo um mundo de erros, de antipatias, de más vontades que se oculta atrás da palavra “carola”. Qual o católico autêntico que já não a terá ouvido como suprema injúria que lhe é atirada por algum adversário de nossa Fé? Qual o principiante da Ação Católica ou das associações auxiliares que não terá ouvido a advertência: “Cuidado, porque assim você se tornará um carola”?

Quantos rapazes ter-se-ão detido no caminho da perfeição exclusivamente porque não desejam ser tidos como carolas? Que dom tem esse vocábulo para inspirar, em uns, tanto desprezo e, em outros, tanto terror? Seria talvez uma interessante página de sociologia analisar a função exercida entre nós por essa palavra, como bombarda de efeito seguro nas mãos de nossos adversários. Para que algum dia algum estudioso escreva essa página, aqui fica o despretensioso subsídio de certas observações diretas.

O assunto é complexo. O que vem a ser exatamente um carola? Quais os defeitos inerentes à “carolice”? Católico e carola são termos sinônimos? Qual a categoria de pessoas que gosta de criticar a “carolice”? Com que direito? Eis aí uma série de problemas que apresentam, de um lado, um aspecto indiscutivelmente jocoso, mas de outro lado uma inegável importância concreta. Essa ideia errada sobre a carolice tem feito ao Brasil mal talvez maior do que todos os panfletos heréticos. E, assim, se bem que do ponto de vista doutrinário o valor do assunto seja nulo, não deixa ele de oferecer relevante interesse a quantos se dedicam aos problemas concretos do apostolado.

O tipo do carola

Comecemos pelos conceitos mais elementares. No espírito público, não há uma noção abstrata do que seja a “carolice”. Há apenas certas figuras típicas de “carolas”, que se consideram como realizadoras autênticas daquilo a que a piedade leva um homem e, portanto, como uma prova exuberante de que homem nenhum deve praticar o catolicismo, sob pena de se desfigurar e passar a ser por sua vez um “carola”. Descrevamos sumariamente esses tipos como os considera a imaginação popular, e através disto chegaremos a encontrar, como resíduo comum de todas essas figuras de imaginação, um conceito mais ou menos preciso que devemos examinar.

Injuriosamente, caluniosamente, contrariando toda a evidência dos fatos, o público entende que encarna bem o tipo do “carola”, por exemplo, um homem magro e esquálido, de longas pernas um tanto sinuosas, que mais são arrastadas pelo corpo do que servem para o carregar. Seu peito é curvo e estreito, e, ao longo dele, pendem dois braços longilíneos. “Pendem” é bem a palavra, pois que esses braços parecem servir apenas para estar pendurados ao corpo como a um cabide, e não para lutar, trabalhar ou agir. O pescoço é longo e projetado para a frente. No alto de tudo isto, uma cabeça vulgar, de cor desbotada, com olhos muito parados numa atitude que traduz ao mesmo tempo incompreensão e espanto. A voz é vagarosa e de pequeno volume, como são vagarosos e de pequeno volume os pensamentos. Os conceitos, os mais banais: apenas as ideias de que ninguém discorda, as reflexões que todo o mundo já fez, as impressões que todo o mundo já sentiu.

Nas horas de perigo, é a personificação do medo. Na hora do trabalho é a encarnação da honestidade pachorrenta e ininteligente, absolutamente improdutiva e inteiramente estéril. Em suma, um infra-homem, que não se faz mal por falta de coragem, mas cuja piedade tolheu para ele todo o horizonte para uma formação espiritual viril, capaz de grandes feitos e grandes heroísmos. Por isto basta vê-lo rezar. Tudo nele transuda lirismo. Sorri de modo perfeitamente incompreensivo. Faz gestos descomedidamente profundos. Fecha os olhos para se concentrar… e ao cabo de tudo isto sai idêntico ao que era antes.

Há, evidentemente, outros perfis de “carolas”. Há, por exemplo, o “carola” gordalhão, volumoso, de difícil locomoção, pachorrento, inerte, tolo, que se deixa ludibriar por qualquer pessoa, que se intimida diante de qualquer perigo, que ama acima de tudo a inércia, e que exatamente por isto não pratica o mal, pois ele pode trazer tantas complicações…; pelo contrário, a consciência tranquila proporciona sonos tão leves e tão doces. O sossego antes de tudo! Nada de aventuras! O ideal da vida é mofar em um canto, em paz com os homens e na doce ilusão de que também se está em paz com Deus!

E assim os exemplos se poderiam multiplicar indefinidamente…

Sébastien Mamerot, (CC3.0)
Rei Luís VII da França recebe a cruz das mãos de São Bernardo, aceitando assim a Cruzada

A santidade é um grande heroísmo

É curioso observar que essa série de conceitos errados, longe de dominar apenas os arraiais anticatólicos, também se esgueirou em certos ambientes católicos, ou supostos tais. Veja-se, por exemplo, certos manuais de devoção que mostram como se ajuda a Missa, e olhe-se qual o físico com que ali se desenha o coroinha: muitas vezes, é um mocinho de idade indefinida, que tem da adolescência a mocidade sem ter o viço nem a graça, raquítico, tímido, vestido com uma “fatiota domingueira” que há um século ninguém usa, penteado como jamais ninguém se penteou, com um sorrisozinho alvar nos lábios, dando atestado exato de que o “carola” é aquilo mesmo. O que prova isso senão que certas almas existentes perderam completamente a noção da realidade e, à força de ouvirem dizer que o “carola” é isso ou é aquilo, acabaram por achar que é mesmo?

Certos trabalhos que uma ou outra vez se leem sobre o moço católico não concorrem para desfazer esta ideia. As suas grandes virtudes devem ser a mansidão, a docilidade, a conformidade, a prudência. Nenhuma palavra lembra que além destas preciosas qualidades o verdadeiro moço católico deve ter em alto grau a coragem, o denodo, a intrepidez, o espírito de iniciativa e de realização. Se um desses coroinhas – não dos que na realidade temos, mas dos que as vinhetas de certos manuais pintam – devesse pegar em armas para uma nova Cruzada, se tivesse sido dessa fibra os Godofredo de Bouillon, quando teríamos tido na História da Igreja aquelas magníficas expedições militares destinadas a fender de meio a meio os muçulmanos, para libertar o Santo Sepulcro do Salvador? Quem não vê que essa espécie de gente deixaria os escudos à beira das estradas e se poria a chorar? São esses os verdadeiros filhos da Igreja? Ou são somente uma triste caricatura do que deveriam ser?

Todas as ideias que se ocultam atrás do conceito de “carola” têm como substractum comum a convicção de que o católico deve ser dotado de uma vontade fraca, exímio na prática de todas as virtudes passivas, e totalmente incapaz da prática das grandes virtudes ativas.

Pondo de lado os erros que se poderiam emboscar nessa distinção entre as virtudes ativas e passivas, é preciso lembrar que o Catolicismo é, por excelência, a escola das almas grandes e fortes, capazes das audácias santas, das energias inquebrantáveis, dos empreendimentos ousados que a Fé sabe inspirar. Não há heroísmo verdadeiro e completo fora da Igreja. A santidade, que é o produto da verdadeira formação católica, outra coisa não é senão um grande heroísmo que empolga toda a alma e a torna capaz de gestos tão altos e tão grandes que, sem o auxílio de Deus, o homem mais enérgico do mundo não seria suficientemente forte para os realizar.

Assim, pois, devemos trabalhar intensamente para que esse preconceito se dissipe de modo completo. O “carola” – e a realidade manda que se confesse que há alguns tipos correspondendo à triste descrição que foi feita – não é o católico autêntico, mas a caricatura do verdadeiro católico. A humildade não é pieguice, o amor do próximo não é lirismo, a boa-fé não é a estupidez. Pelo contrário, essas virtudes em lugar de amesquinhar o homem o elevam e o engrandecem.

Arrojo, combatividade, altivez

Um pequeno fato pode ilustrar tudo isto. Certo sultão muçulmano, preso na Europa durante a Idade Média, visitou as catedrais famosas que então se construíam e teve esta exclamação: “Não posso compreender que as almas tão humildes dos monges que constroem esses edifícios possam, entretanto, levantar monumentos tão altivos”. Nessa humildade como nessa altivez está o segredo do perfeito equilíbrio.

A grandeza de alma, o arrojo, o espírito de combatividade que elimina a humildade é falso. Mas também é falsa a humildade que diminua o arrojo, o espírito de combatividade e a altivez.

Esquecidos de que o Catolicismo é a única escola do perfeito e completo heroísmo, daquele heroísmo que sobrenaturaliza e santifica a personalidade inteira do indivíduo e não apenas algumas de suas qualidades, que implica em uma imolação total de si mesmo tendo em vista uma finalidade superior, muitos católicos chegaram a ter de sua própria Religião uma visão tão diminuída, que lembram invencivelmente a queixa do Apóstolo, quando dizia: “Estão diminuídas as verdades entre os filhos dos homens.”

Library of Congress (CC3.0)
Catedral de Colônia, Alemanha

Verdades que não estão repudiadas, negadas, nem calcadas aos pés. Mas verdades que pesam duramente sobre os ombros fracos dos que as professam; verdades que em lugar de serem tidas por seus venturosos adeptos como um meio de triunfo espiritual sobre o pecado, a concupiscência e o erro, em lugar de serem consideradas como o caminho indispensável de uma esplêndida ascensão espiritual, pesam duramente como se fossem onerosas correntes de cativeiro moral, dolorosos instrumentos de suplício, cujo portador tudo faz por atenuar seu peso e amesquinhar seu volume, diminuindo assim esse ônus que, entretanto, longe de ser na realidade um peso cruel, um estigma de cativeiro, é um salva-vidas sem cujo auxílio o homem não sobrenada na vida espiritual.

 

Censuráveis conceitos de bondade

Ocupa lugar de destaque nessa triste galeria de verdades diminuídas, de virtudes amesquinhadas, de sofismas interiores mais ou menos conscientes e mais ou menos covardes, a noção que habitualmente se tem de “bondade”.

Segundo a opinião corrente, o que é uma pessoa boa? Esse conceito é eminentemente variável. O que se exige de uma boa senhora não se exige de um bom ancião; o que se exige de uma boa criança não se exige de um bom moço. A moral, para a grande maioria de nossos contemporâneos, varia quase completamente segundo a situação de cada qual e, não raras vezes, o que em uma pessoa, em uma senhora por exemplo, seria tido como imperativo preceito de moral, em um moço parecerá ridículo e desprezível defeito.

A bondade, pois, segundo esses censuráveis conceitos, varia conforme o sexo e a idade. Vejamos rapidamente alguns perfis de pessoas habitualmente tidas por “muito e muito boas”.

Antes de tudo, o conceito de “bom rapaz”. Não há, talvez, expressão de que tão frequentemente se abuse. Verificando-se a que série incontável de indivíduos ela é dada, fazendo-se o levantamento dos defeitos que um rapaz pode ter, sem por isto deixar de ser “bom” segundo a opinião corrente, verifica-se desde logo que, desde que ele não tenha morto, ferido ou espancado gravemente alguém, desde que não tenha roubado pelo processo do arrombamento, desde que não tome tóxicos, é qualificado de bom. Pode esse rapaz esbanjar criminosamente sua mocidade arrastando-a pelos mais miseráveis antros da cidade, são “rapaziadas”. Pode ele ter os vícios os mais lamentáveis, como por exemplo do jogo: se ele ainda não perdeu a fortuna na roleta, ou a embriaguez ainda não lhe arruinou a saúde, tudo isto não passará de aprazíveis “rapaziadas”. Pode ele, ainda, praticar as mais censuráveis leviandades no terreno sentimental, como seja de alimentar esperanças e provocar decepções, movido apenas pela vaidade e pelo capricho; tudo isto será muito engraçado, terá seu “inegável pitoresco”, será típico de um jovem que não queira passar por inteiramente desinteressante.

Flávio Lourenço
Missa na Capela de São Marcos, em Veneza Museu de Belas Artes, Angers, França

Evidentemente, segundo essas abomináveis regras de moral, há restrições a estabelecer. Um moço que contraia imprudentemente um noivado com o intuito de jamais cumprir sua promessa de casamento fará uma coisa muito engraçada. Mas se a vítima da aventura, em vez de ser uma pessoa estranha aos adeptos dessa singular moral, for pelo contrário uma filha, uma irmã, uma parente, tudo isto passará a ser qualificado infalivelmente de genuína crapulice.

Um moço que, a título de “rapaziada”, arme um “rolo” fará algo de muito divertido. Mas se, durante o “rolo”, ferir alguém gravemente, o que em qualquer “rolo” pode suceder, e com isto andar às voltas com a polícia, deixará de ser tido como um “bom rapaz” para ser um “indivíduo que até tem ficha na polícia”. Em última análise, tudo isto reverte em uma adoração do êxito. Tudo aquilo que não teve mau êxito será desculpável por pior que seja. Tudo aquilo que tem mau êxito será censurável. Tudo o que não fere os interesses pessoais é jocoso e interessante. Tudo que os fira será censurável e digno de condenação.

Sacripantas que o mundo canoniza como “bons”

Essa moral tem, evidentemente, também sob outros pontos de vista, suas contradições. Um comerciante, ferido às vezes por circunstâncias imprevistas e invencíveis, pede falência: foi um homem que não pôde cumprir a palavra dada aos credores e, por isto, em torno dele se estabelece um ambiente de reprovação.

Um homem vai ao altar, jura manter uma fidelidade plena a sua esposa, sabe perfeitamente que não obteria o consentimento desta para o casamento se ela soubesse que tal juramento não é sincero e, tudo isto ponderado, casa-se. Depois, rompe o compromisso assumido, e isto por um ato libérrimo de sua vontade. Mas contra esse homem só existe a reprovação dos parentes de sua esposa, os quais acham muito natural que outros façam o mesmo com pessoas que lhes são perfeitamente estranhas.

Na moral comercial, presenciam-se aberrações do mesmo jaez. Um indivíduo pode impunemente ocultar os defeitos da mercadoria por ele fornecida, elevar desmesuradamente ou abaixar injustamente os preços, armar trusts e lançar ao desemprego centenas ou milhares de empregados: tudo isto é lícito. Mas ai dele se roubasse um cigarro ou um charuto em casa de algum amigo!

E assim por diante, vê-se como a moral mundana é inteiramente vã, representando apenas a sobrevivência de alguns vagos princípios de moral católica.

Por mais que o tipo humano do “carola” seja risível, como não o achar admirável em comparação dos sacripantas que tão frequentemente o mundo canoniza como “bons”?

(Extraído de O Legionário n. 462, 20/7/1941 e n. 463, 27/7/1941)

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