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Plinio trajado de espanhol por ocasião do carnaval, em Águas da Prata, cerca do ano de 1920

Cheio de saudades, Dr. Plinio relembra os convívios com Dona Lucilia por ocasião das temporadas de repouso passadas em Águas da Prata, onde a mãe, sem se importar com seus próprios sofrimentos, distraía e formava o filho com as histórias de Bécassine.

Dona Lucilia comentou comigo inúmeras vezes as histórias da Bécassine. Como a Fräulein me ensinava francês e eu já estivera na França, sabia falar um pouco da língua. Por isso, eu mesmo lia a historieta, mamãe não precisava me contar. Mas ela me explicava as cenas e agia com muito senso educativo, porque, às vezes, me incentivava a fazer os comentários.

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Dona Lucilia com Plinio e sua prima Ilka, em Águas da Prata

E eu, sempre muito loquaz e expansivo desde a minha primeira infância – aliás, é um hábito que não perdi –, fazia muitas perguntas porque não entendia bem certas narrações, e ela me deixava falar à vontade, sobretudo quando era mais menino. Outras coisas eu lia por mim mesmo e comentava, enquanto ela retificava ou desenvolvia os meus comentários. Porém, a raiz era o meu comentário e não a explicação dela.

Quanto mais ela sofria, mais se doava

O que eu me lembro mais a respeito da Bécassine se refere a uma temporada passada em Águas da Prata. Naquele tempo era um vilarejo, mas depois cresceu. Havia lá águas consideradas muito benfazejas para quem padecia de doenças hepáticas. Como mamãe sofria muito do fígado, íamos para lá com frequência fazer estações que, segundo os costumes do tempo e a ordem médica, deveriam ser de vinte e um dias. Geralmente viajávamos durante minhas férias. Iam meu pai e mamãe, minha irmã e eu; às vezes, também minha avó e outros parentes. Eles não precisavam ir por indicação médica, mas apenas para se distrair, pois o ambiente do hotel era simples e tinha comida de boa qualidade. Sobretudo, lembro-me dos excelentes cabritos, da manteiga muito boa, feita com leite de cabra, e do pão ótimo! Para mim, isso já bastava.

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Becassine

Nessa temporada a que me refiro eu tinha uns doze anos, mais ou menos, e adoeci. O médico recomendou imediatamente deitar-me, e ela ficou cuidando de mim. Eu não precisava mais nada, pois tinha uma confiança total nela, e nem quis saber qual era a doença. Então, com paciência, bondade e afeto muito grandes, mamãe me fazia companhia. Às vezes, sentava-se ao meu lado ou na minha cabeceira, apoiada sobre os travesseiros e colocando na minha frente a historieta da Bécassine para que folheássemos juntos.

Entretanto, quando eu estava saudável acontecia o contrário: Dona Lucilia se deitava durante o dia e fechava a veneziana do quarto dela, por onde entrava uma luminosidade muito agradável; nunca fui amigo de luzes muito fortes, sempre preferi a luz tamisada. Nessas ocasiões, eu ia até o quarto dela levando a Bécassine, recostava-me ao seu lado e comentávamos a historieta. Eu estava certo de que ela encontrava nisso um grande atrativo, pois sempre mostrava muito interesse e comprazimento. A tal ponto nunca me passou pela cabeça de que ela pudesse não estar gostando daquilo. Só aos meus quarenta anos, mais ou menos, me surgiu a dúvida a esse respeito, mas já era tarde…

Eu gosto que ele esteja aqui!

Quando eu percebia que toda a criançada da família estava brincando ao lado de fora, no jardim, eu fugia! Passava pelo meu quarto – contíguo ao dela –, pegava a Bécassine e ia para os aposentos dela. Ora, se ela estava de olhos fechados, não a acordava, é claro, mas isso acontecia de um modo relativamente raro. Em geral, mamãe estava rezando ou descansando, vendo alguma coisa; e mesmo na oração, eu entrava sem escrúpulo de interromper, pois achava que depois ela teria tempo para rezar, e dizia:

— Mãezinha, outro dia nós deixamos a Bécassine em tal ponto, podemos continuar agora?

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Beccasine

 

— Claro, meu filho, venha aqui!

Às vezes, para libertá-la, meu pai entrava e dizia:

— Plinio, você não vê que está cansando sua mãe?

E ela dizia com muita bondade:

— Eu gosto que ele esteja aqui.

Eu olhava para papai, e dizia:

— O senhor está vendo, ela está gostando…

Acredito que ela fazia, por trás de mim, algum sinal para ele não insistir. Então meu pai fazia uma cara desolada, como a dizer: “Não tem remédio…”, e saía do quarto.

(Extraído de conferência de 9/6/1984)