viernes, noviembre 15, 2024

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Necessidade do sofrimento

O homem é criado em estado de prova e sente, ao mesmo tempo, horror e necessidade dela. É semelhante à psicologia do guerreiro medieval que deseja a batalha, mas se cobre de malha de ferro e outras proteções; embora se proteja contra os ferimentos, quer o risco, pois percebe que assim a sua vida toma sentido e ele passa a merecer o Céu.

No conjunto dos sofrimentos que o homem precisa ter nesta Terra, há modalidades diferentes correspondendo, por assim dizer, a zonas em que a alma humana necessita padecer.

O estado de prova e o sentido da vida

O homem foi criado, independente do pecado original, em estado de prova. Assim, é normal haver no fundo do seu ser algo que o faça sentir obscuramente que, não sendo provado, ele não viveu. Embora sinta de modo confuso o quanto a prova o faz sofrer, possui uma espécie de vontade de passar por ela, pois percebe como isso dá sentido à sua vida e fá-lo merecer o Céu.

Nunca vi elementos que me habilitassem a responder esta pergunta: “Os Anjos e, posteriormente, Adão e Eva saberiam que seriam provados?” Se soubessem, teriam desejo de que chegasse a hora da prova para, na dor, encontrarem algo para além de todos os gáudios da existência. Por assim dizer, ao engolir esse trago amargo, seu ser tomaria maior consistência levando-os a uma perfeição de ordenação necessária para serem eles mesmos.

Pensemos em Adão passeando no Paraíso, contemplando aquelas ma ravilhas, e Deus baixando para conversar com ele. Tudo isso era muito bonito, não oferecia dificuldade e formava a alma dele, que ia crescendo em santidade. Estava tudo magnífico. Mas, ou haveria um determinado momento em que ele sofresse a prova, ou a sua vida não teria significado. A sofritiva é algo dentro da alma humana que ao mesmo tempo tem horror da prova e sente necessidade dela.

De certo modo, é semelhante à psicologia do guerreiro medieval que quer a batalha e a luta, mas se aplica enormemente em se cobrir de malha de ferro, de proteções contra as pancadas que ele deseja. Então, ao mesmo tempo, quer o risco e se protege contra os ferimentos. Entretanto, consideraria frustra a luta se os seus armamentos de defesa fossem tais que ele não corresse nenhum risco. Isso parece um movimento contraditório, mas não é.

Arquivo Revista
Dr. Plinio durante conferência em fevereiro de 1986

A meta do guerreiro medieval, de um cruzado, era libertar o Santo Sepulcro, e para isto enfrentar o sofrimento com risco da própria vida. Mas, além disso, havia a noção de em algo a sua existência dever desfechar numa coisa muito dura, sob pena de ser frustrada. Se passasse pela vida sem um sofrimento bruto, ele não teria vivido.

Uma das piores frustrações na vida

Penso que todo o desequilíbrio das pessoas está nisso: ou correm freneticamente em direção ao sofrimento, quando não era o caso; ou fogem porcamente da dor.

Imaginemo-nos uma conversa em um cais entre muitos marinheiros, piratas antigos, que sofreram brutalidades. Olharíamos com interesse. Se nos mostrassem um com uma aparência mais conservada, contentinho, e dissessem: “Este foi preservado maravilhosamente de todo risco e dor, e passou contente o tempo inteiro.” Acharíamos que ele deveria ser posto fora do barco, enquanto teríamos um certo alívio ao contemplar o velho lobo do mar, de perna ou braço cortado, olho vazado, mas contando suas façanhas.

Isso precisa estar na alma de toda criatura. É a sofritiva, algo no senso do ser por onde o indivíduo sente que se encontra em estado de prova, e seu próprio ser pede a prova para se completar a si mesmo. Assim como, naturalmente, o menino quer crescer e tomar estatura de um adulto, com o mesmo empenho o homem deseja passar pelas dores da vida.

Uma das piores frustrações na vida sucede quando os pais não ensinam isto aos filhos, ou os sacerdotes aos seus fiéis, criando neles a ilusão de que a existência é feita para não ter nenhum sofrimento. Quando sobrevém alguma dor, é um azar pelo qual Deus parece estar violando as regras do jogo.

O que hoje se ensina nesse sentido – no mais das vezes explicitamente e de todos os modos possíveis – é simplesmente fabuloso! Resultado: o indivíduo fica mais ou menos como alguém que tivesse encalhado aos doze anos, sem atingir a maturidade. Então, vão passando as gerações e a pessoa está com setenta anos, mas brinca com os netos como companheiro de brinquedo.

O homem que não sofreu não tem problemas em matéria de doutrina, não faz perguntas, comentários, nem apresenta dificuldades, ouve uma exposição com cara de boneca de louça. Terminada a palestra, o orador lhe pergunta:

— Estava boa?

— Muito boa, o senhor foi bastante feliz na sua exposição…

Se no salão entra o chá, ele está muito mais interessado no chá do que em todo o resto. Faz isto porque é todo torto, não lhe puseram na cabeça esta grande verdade: “Você tem uma sofritiva: ou sofre ou morre com a impressão de não ter vivido.”

É preciso notar que não entra aqui a noção de pecado, nem sequer a de expiação pelos outros. Prelimi narmente, é essa consideração do estado. O indivíduo a apetece porque se encontra neste estado de prova. E quando ele foge disso, está condenado a ser a vida inteira um perpétuo meninão. Não tem remédio.

Holocausto e gravidade, sem os quais a vida torna-se insuportável

Há homens sobre os quais paira uma providência especial e outros que estão na linha da providência geral. Esta, porém, não se apresenta de maneira à vida de cada indivíduo não possuir uma unicidade. Neste sentido, creio – salvo se houver melhor ensinamento da Igreja – que para cada homem existe uma providência peculiar, a qual gira em torno do seguinte:

Há algo que, pelo próprio senso do ser, a pessoa apetece como centro de sua vida e, por vezes, precisa renunciar. Em determinado momento, isso lhe é solicitado e essa renúncia corresponde a um holocausto, equivalente a pedir a vida.

Arquivo Revista

O holocausto pode ser este: o indivíduo tem a tendência a ser relaxado e fazer do relaxamento o grande gáudio de sua existência. Colocado diante de certa situação, ele decide: “Não serei relaxado, mas pelo contrário, tornar-me-ei um modelo de observância e exatidão.” E toma essa deliberação com tal força que, para o resto de sua vida, vai ser observante.

Todos os fatos menores de sua vida valem em virtude do momento em que ele resolveu realizar este holocausto: “O relaxamento do qual eu ia fazer a delícia de minha vida, não terei.”

Essa prova pode ser um grande ato fundamental à maneira de um homem que oferece em sacrifício a Deus o seu pomar e diariamente queima diante do Criador todas as frutas produzidas no dia anterior. Assim também, ele pega os frutos do relaxamento, os quais poderia comer com delícias, e queima-os diante de Deus, mediante a observância perfeita.

Nesse sacrifício há um elemento primeiro, o alicerce da gravidade. De fato, um homem que tenha resolvido isto vê a vida de outro modo, e quando não a considera assim, torna-se incapaz de gravidade. É um meninão fazendo planos no vácuo, vagueando de cá para lá, e sem uma ordenação definida.

Ora, o meninão sem gravidade sofre mais do que esse mesmo homem padeceria sendo grave. Tomem um rapaz dono de um automovelzinho reluzente com o qual passeia o dia inteiro, brinca o tempo todo e que chega aos vinte e cinco anos sem ter feito nada senão isso. Todos olham para ele e pensam: “Que rapaz feliz!” Na realidade, ele vai carregando dentro de si algo parecido com um desses aparelhos de alarme instalados nos automóveis para denunciar ladrão. O rapaz se roubou a si próprio e fica ouvindo o alarme gemendo dentro de si: “Você não está vivendo, você não está vivendo, você não está vivendo… Isso não é vida, isso não é vida, isso não é vida… Não seja assim, não seja assim, não seja assim…”

Então ele procura rir e brincar ainda mais para dar a ilusão aos outros de estar vivendo bem. Todos se divertem com ele, mas depois o desdenham. Porém, ainda que não o desprezassem, dentro dele continuaria a soar o alarme insuportável.

Fidelidade à inocência em face do sofrimento

Outro dia eu estava lendo trechos da história do último Imperador da China. Ele possuía vários palácios cheios de objetos de arte, ouro, peças de valores incalculáveis. Mas vê-se que isso para ele era como o arroz e o feijão são para nós. Faltou que se pusesse no centro de sua vida o holocausto.

É a sofritiva que atormenta o homem enquanto ele não sofrer. Mas não se trata de um padecimento qualquer; é o sofrimento de sua vida. Cada um de nós é chamado para uma cruz. Devo carregar a minha e não adianta cair-me sobre os ombros a de um outro para eu levar. Há uma cruz feita para Plinio Corrêa de Oliveira. Preciso encontrá-la. Ela vai me doer no ombro de modo especial, mas devo carregá-la!

Flávio Lourenço
Cavaleiros medievais – Igreja de Santa Segolène, Metz, França

Existe na criatura racional uma apetência que não é necessariamente errada, mas corresponde a um problema, a partir do qual a prova se transforma em tentação. Por exemplo, satanás não cometera o pecado original; tinha um problema, uma questão de orgulho, que desfechou num choque. Ele precisava quebrar algo em si.

Aqui está a questão: trata-se de algo que é necessário quebrar em si. Não devemos nos considerar como um bebê de porcelana intacto, que com qualquer golpe se parte. Isso é falso. Nós somos como as árvores: ou somos podados, ou realmente não damos em nada.

Se alguém disser: “Jardineiro bárbaro, que podas a planta!” A resposta será: “Oh, crítico imbecil, que não conheces a árvore!”

O indivíduo, na sua inocência primeva, não tem noção de qual é esse ponto. A prova lhe chega inopinadamente, parecendo contrastar com as luzes da inocência. De repente, tem um desapontamento, uma dor que parece ser o contrário de toda aquela luminosidade da inocência, e entra qualquer coisa de meio antiaxiológico1 a lhe dizer: “Ou você, para ser fiel a essa inocência, aguenta essa dor antiaxiológica, ou foge dela e perde a inocência.”

Então, axiologia e inocência parecem uma coisa só, e em determinado momento a dor se levanta como um problema. Ela é antiaxiológica e pede que todos os homens entrem nesse corredor escuro. Se a pessoa foge daquilo, a própria inocência – tão axiológica –, passa, sigilosa e inadvertidamente, a secretar venenos na alma.

Peleja contínua em todos os aspectos da vida

A vida pediu-me algo de fundamental, já na minha infância: de minha tendência à moleza passar para a vida de combate até o fim de meus dias. Uma batalha integral, antes de tudo, para ser eu mesmo e não me deixar arrastar nesse turbilhão, mas fazer o holocausto de ponta a ponta.

Arquivo Revista

Mais tarde, quando a compreensão se tornou maior – com sete ou oito anos de idade eu não era capaz de entender isto –, surgiu a necessidade de combater pela Causa da Igreja Católica e da Civilização Cristã, que vinha como prolongamento daquela opção fundamental.

Eu via dois mundos e devia escolher, por amor, um contra o outro, e não me deixar separar daquele que eu amava para me unir ao outro. Embora não formulasse esta prece diretamente a Nosso Senhor Jesus Cristo, eu rezava neste sentido: “Ne permitas me separari a Te; ab hoste maligno defende me!”2

É a peleja contínua, presente em todos os aspectos da vida. Não estou considerando aqui a culpa original. Sem dúvida, essa minha inclinação à moleza era consequência desse pecado; Adão – antes de cometê-lo –, satanás, São Miguel Arcanjo não a tinham. Mas, como exemplo nes ta Terra, só posso mencionar pessoas concebidas no pecado original.

Essa luta é tão dura que toma a vida inteira, mas restam muitas coisinhas colaterais aprazíveis com as quais o indivíduo pode e – notem bem – deve se deleitar. Para uns poderá ser a boa saúde, para outros um bom apetite e a possibilidade de comer bem, para uma criança será um brinquedo. Por exemplo, não me lembro, mas é possível que no dia seguinte a ter passado por uma provação, ganhei uma caixa nova de soldadinhos de chumbo e me regalei com isso. É perfeitamente compreensível, está na boa ordem das coisas.

“Ne permitas me separari a Te; ab hoste maligno defende me!”

Arquivo Revista
Plinio na Congregação Mariana do Colégio São Luís, em 1921

Contudo, quando a pessoa pensa estar exausta de tanto sofrer, na hora em que julgaria menos adequada, a Providência começa a lhe pedir outro sofrimento. E aqui sim, entra algo com certo caráter expiatório: ela pecou e, além daquilo que deveria aguentar segundo o plano inicial, precisa carregar mais. Ou então, não pecou, mas outros pecaram e não carregam. E se a pessoa quer que a grande batalha seja vencida, deve suportar.

Nosso Senhor, o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, era a Vítima inocente; nós somos vítimas culpadas. Mas torna-se notório que boa parte dos nossos sofrimentos não se dirigem à expiação de nossas culpas, mas dos pecados dos outros. Começam, então, a acontecer coisas que não têm sentido, a respeito das quais não sabemos se são por expiação das nossas faltas ou das alheias. Nisso há um sofrimento colateral, o qual se soma ao primeiro.

(Extraído de conferência de 26/2/1986)

1) Axiologia provém do latim axis, is: eixo. Assim, na concepção de Dr. Plinio, a palavra “axiologia” e os seus derivados fazem sempre referência ao “eixo” que deve nortear a vida da pessoa, isto é, o fim para o qual o homem é criado e sua vocação específica, em torno do que devem girar todas as suas ideias, volições e atividades.

2) Do latim: Não permitais que eu me separe de Vós; do inimigo maligno, defendei-me.

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