jueves, noviembre 21, 2024

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Reflexões sobre o Santo Sudário

Ao contemplar o Santo Sudário vemos como, durante sua vida terrena, naquele Corpo o pensamento enunciado nos Evangelhos repercutia na voz, aflorava na fronte, bailava nos olhos, exprimia-se pelos lábios e gestos. Assim, a imagem ali estampada é a prova, não só da existência, mas da Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o Homem-Deus!

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Analisando o Santo Sudário, parece-me que mesmo tomando em consideração estar a Sagrada Face um tanto alterada pelos golpes recebidos – como, por exemplo, o nariz –, ela revela outras excelências de Nosso Senhor.

É fato que na sua forma nativa, perfeita, a fisionomia de Nosso Senhor se apresentaria de modo ainda mais excelente. Mas per accidens uma certa excelência maior aparece devido às próprias deformações que ela sofreu. Deve-se entender isso como uma espécie de preliminar da análise.

Abismo de maldade que causa assombro

Chama a atenção ver como não só o nariz visivelmente recebeu uma pancada e ficou deformado, mas o queixo também caiu um tanto. A distância entre o ponto mais alto da fronte e a parte mais baixa do queixo é um pouco maior do que seria normalmente.

Isto tem, a meu ver, um efeito curioso: na harmonia perfeita e divina de Nosso Senhor, sua Face deveria dar uma dupla impressão de uma Pessoa muito entregue ao pensamento, mas nem um pouco tenso. O que é natural, pois o pensamento não Lhe custava o menor esforço. Ele pensava com a facilidade e a abundância próprias à excelência das suas duas naturezas unidas hipostaticamente na Pessoa d’Ele.

Flávio Lourenço
Cristo atado – Igreja de São João dos Reis, Toledo, Espanha

Por causa dessa alteração fisionômica provocada pelos golpes, Jesus parece um pouco afanoso no pensar. E, por uma coincidência feliz, percebe-se também que o seu pensamento versa sobre a dor e a perseguição sofridas por Ele, e a injustiça ali cometida, e também a respeito de tudo quanto Lhe aconteceu, as mais atrozes ingratidões, aberrações que chegaram a um ponto inimaginável.

Sendo Ele a vítima, medita sobre os criminosos e o crime, a respeito do qual qualquer meditação tem como ponto de partida a sua própria santidade e, portanto, a imensa gravidade do fato de que contra o Santo dos Santos tenha sido feita a violência das violências.

Por causa do estiramento da Face tem-se certa impressão de ser-Lhe meio penoso sondar até o fim, pela meditação e pela reflexão, esse abismo de maldade, o qual não é próprio a Ele estar medindo, pois mais Lhe compete permanecer com a atenção voltada para as perfeições excelsas de Deus. E esse abismo de maldade causa uma espécie de assombro expresso na fotografia do Santo Sudário.

E, junto com esse assombro, uma tomada de atitude em consequência, ou seja, Ele repele totalmente a atitude das pessoas que fizeram isso e, embora não esteja no momento emitindo um juízo de quem vai condenar, a condenação já está vindo no horizonte, inapelável e tremenda.

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Convicção de que a Ressurreição virá

Notam-se a profundidade, a serenidade, a seriedade da reflexão e a firmeza da consequência da conclusão. O pensamento durante todo o tempo é de uma solidez inabalável, todas as suas impressões foram nítidas e definidas. Tudo quanto Ele viu, rejeitou, pensou ficou para todo o sempre.

Por detrás aparece a Divindade. Porque se percebe que Ele não tem apenas em vista o criminoso, mas a Santíssima Trindade. Noto isso em algo de aveludado, sereno, imperturbável, de sublimemente elevado pelo que Nosso Senhor não desce de corpo inteiro até esse poço de infâmia para sondá-lo, mas tem um padrão do alto do qual Ele mede tudo isso.

A unidade de Pessoa com duas naturezas, a divina e a humana, em União Hipostática é inatingível por tantas ofensas que nem de longe tocam a fímbria da majestade serena d’Ele, mantida de tal maneira por inteiro que um mosquito, voando do lado de fora de uma pirâmide, é menos extrínseco ao que está dentro dela do que todos esses pecados são extrínsecos à santidade, à majestade, à divindade de Nosso Senhor.

Jesus está completamente de fora, como quem diz: “Eles cometeram esse pecado, mas a minha santidade, a de Deus Pai e do Espírito Santo não foram atingidas. Nós nos amamos na Trindade Santíssima de um amor ao qual esse ódio não afeta em nada. Há uma paz enorme, uma serenidade, uma dignidade que essa corja de nenhum modo atingiu.”

Por outro lado, imaginemos Nossa Senhora, doloridíssima, dirigindo algumas palavras a seu Divino Filho. Ele Lhe responderia com tal suavidade que se diria estar sendo carregado nos braços d’Ela. Sem dúvida, existia neste Varão a consciência de que ao pé da Cruz estava a Mãe d’Ele. A Santíssima Virgem é o Paraíso de Deus. Portanto, dentro de todo esse horror, Ele estava junto ao seu Paraíso e tinha com isso um gáudio. Isso excede a todas as cogitações humanas.

Helio G.K.
Santíssimo Cristo da Misericórdia – Igreja da Santa Cruz, Sevilha

Uma parte dessa serenidade vem da noção da inatingibilidade. E aí a atitude diante da morte é a mais surpreendente possível. Porque Ele está morto, mas há uma qualquer coisa parecida com a consciência ou convicção da Ressurreição que virá. De tal maneira que, de algum lado, a condição d’Ele de morto parece dizer: “Está tudo encerrado!” Mas de outro lado há algo que afirma: “Nada está encerrado!”

Só de olhar isto deveria dar aos assassinos d’Ele uma insegurança de saírem ganindo pela rua, sem ter o que dizer.

Batalha dos definitivos

O queixo de Nosso Senhor parece ter recebido um golpe em virtude do qual a distância entre a parte superior e a fissura dos lábios ficou maior, e dá ao rosto um embasamento um pouco mais amplo do que se não fosse a pancada.

Flávio Lourenço
Ecce Homo – Igreja de Santa Clara, Querétaro, México

Seu queixo seria normalmente muito harmônico e, com a barba, quase se diria que o rosto terminava num mistério. Isso devido à própria perfeição d’Ele, pois as coisas muito excelentes, quando terminam, muitas vezes não se percebe bem como acabaram. Porém, assim o queixo toma um embasamento maior. A meu ver, é das tais deformações que ampliam uma certa expressão magnífica e servem de comentário vivo da situação.

Nota-se uma resolução como quem diz: “O que está feito, está feito para todo o sempre! A atitude tomada por eles diante de Mim é definitiva! A que Eu tomo diante deles é definitiva! A minha morte é definitiva! Definitiva será minha vitória! É a batalha dos definitivos. Nesse embate só falta o último lance que compete apenas a Deus e, portanto, a Mim. Esse lance é a minha Ressurreição, e esta não depende nada dos homens, mas inteiramente de Mim! E isto virá!”

Com a pancada recebida, o nariz se alongou e isso confirma a impressão de ter passado por várias peripécias. Através de seu traçado, tornado assim indeciso, há uma decisão no fundo, mais ou menos como a do homem que passa por muitas provas e as vence, permanecendo inabalável, imutável.

O Divino Redentor passou por todas as vicissitudes da Paixão, e em todas elas a perfeição da atitude foi inteiramente a mesma. Através das várias peripécias estampadas no nariz, se nota a indefectível continuidade d’Ele até o “Eli, Eli, lamma sabactani”1. Essa fisionomia parece dizer a quem a contempla: “Tu passarás pelas mais assombrosas peripécias. Sê firme, igual a ti mesmo, para seres igual a Mim até o fim! Os firmes vencerão, e não há bofetada nem golpe que os deforme. Para frente!”

Olhar que increpa todos os pecados do mundo

Esse olhar de pálpebras fechadas eu não ouso comentar, pois logo que começasse a fazê-lo, senti-lo-ia fixar-se em mim e dizer:

J. P. Braido
Crucifixão – Basílica Nossa Senhora do Rosário, Cidade da Guatemala

“Tu ousas transpor para teu miserável vocabulário e o jogo das tuas impressões aquilo que é superior a qualquer cogitação? Eu estou te olhando e tu pensas que alguma palavra é capaz de descrever esse olhar? A todo momento ele continua o mesmo e variado. Tu pensas seres capaz de acompanhar essa variedade dentro da estabilidade perfeita? Meu olhar te convida a penetrar no fundo de Mim mesmo, e quando começas a adentrar percebes que estás entrando no Sanctum Sanctorum2, dobras os joelhos, baixas a cabeça e te deixas envolver, não consegues erguer a tua fronte. Não fales do que não ousas ver!”

Sente-se que esse olhar increpa não apenas os pecados cometidos contra Nosso Senhor durante a Paixão, mas todos os pecados do mundo. Portanto, também tem a atenção posta nos nossos defeitos, embora não com uma recusa tão colossal; porém, enquanto defeito, Ele rejeita.

No Santo Sudário Nosso Senhor Jesus Cristo está nos ensinando por contraste. Há representações do Divino Redentor que nos fazem sentir uma certa afinidade com Ele, mas esta é a imagem do contraste por excelência. Diante dessa figura só tenho vontade de dizer a Nossa Senhora: “Minha Mãe, obtende que Ele me cure!”

A boca também traz a marca da Paixão, porque possui o sinal da dor, e ao fechar-se exprimiu algo da alma d’Ele que normalmente não se exprimiria. Não é propriamente uma boca de mistério, mas dá a entender: “Não falarei nada, e no meu silêncio está tudo dito, não me perguntes.” Não está na nossa medida ouvir o que Ele tem a dizer. Portanto, não O interroguemos, mas compreendamos por meio de seus lábios cerrados.

A Sagrada Face apresenta algo à maneira de uma contradição, porque o rosto do homem é o repositório da sua honra; entretanto, nessa Face Divina se encontra toda a honra como nunca houve, junto com todas as bofetadas e insultos que jamais foram descarregados contra alguém; tudo está acumulado ali. Calculem o que Nossa Senhora sofreu vendo isso! Simplesmente não há palavras!

Flávio Lourenço
Nosso Senhor curando os leprosos – Mosteiro de San Millan de la Cogolla, La Rioja, Espanha

Harmonia, equilíbrio e beleza só possíveis no Homem-Deus

A fronte tem uma proporção e está numa harmonia celestíssima com o restante do rosto, é a própria imagem da perfeição moral. O tamanho normal dela não aparece devido ao cabelo desalinhado, maltratado, desordenadamente posto pelo Sangue que escorre. Tudo isso causa uma sensação de que a testa desapareceu, como se diria de um castelo cuja parte mais alta pegou fogo.

Pode-se perguntar: a Paixão acrescentou algo a Ele? Poder-se-ia resumir a questão numa outra: a cicatriz acrescenta algo ao guerreiro? É claro! Nosso Senhor Se tornou cheio de cicatrizes. Quando nós, pelos rogos de Maria, O contemplarmos no Céu, veremos na Face d’Ele uma espécie de plenitude do que era em todas as idades da sua vida. Mais do que como era no Santo Sudário e na Cruz. Todas as suas cicatrizes estarão irradiando esplendores e aumentarão a beleza da Santa Face. Não temos ideia de como Ele será pulcro para nós olharmos.

Consideremos a estatura d’Ele. Percebe-se a extensão de ombro a ombro, a altura do pescoço e do tronco, o comprimento dos braços, formando uma proporção simplesmente monumental!

Em Nosso Senhor existe a conjunção de dois aspectos: a estabilidade e o movimento. Ele tem uma estabilidade perto da qual uma pirâmide do Egito é uma mexerica. E, de outro lado, possui uma facilidade de Se mover a qualquer momento, para um movimento dominador, natural, que afasta qualquer obstáculo para longe. Ele é o Rei rompu, brisé, anéanti – quebrado, despedaçado, aniquilado –, segundo a expressão de Bossuet, mas a essência d’Ele está completa. Ele domina plenamente. Olhando só esse equilíbrio já se compreende não se tratar de um mero homem. É o Homem-Deus.

Pode-se perceber nesse Corpo inerte o pensamento enunciado nos Evangelhos que repercute na voz, aflora na fronte, baila nos olhos, exprime-se pelos lábios e gestos. D’Ele saíram virtudes de toda espécie e cada uma delas era um hino de ordem e de elevação, algo que não podemos imaginar.

A meu ver é inteiramente óbvio que isso traz consigo a prova de que Ele existiu e era Homem-Deus. Só alguém de um valor igual ao d’Ele poderia conceber aquilo que ali se encontra.

Gabriel K.
Sainte-Chapelle, Paris

A tal ponto que se eu não conhecesse Jesus e O visse passar pela rua, me ajoelharia e diria: “Meu Senhor e meu Deus!”

Em contrapartida, ao entrar em uma catedral gótica, no ambiente silencioso ou onde se tocasse uma música inteiramente adequada, causando-me a impressão de que todas as luzes e formas do recinto sagrado se corporificavam em sons; uma igreja toda florida de maneira a encher-se de perfumes odoriferíssimos, meu espírito desejoso de unum seria levado a perguntar: “Mas não haverá alguém que englobe e exprima melhor tudo isto?” Se nesse momento aparecesse Jesus, eu daria um brado: “Eis! Porém, Ele é muito mais belo do que tudo isso!” E, mais uma vez, exclamaria: “Meu Senhor e meu Deus!”

E ainda que, enquanto eu me desfizesse de veneração, gratidão e pedido de perdão, Ele me quisesse fazer um agrado, não era para mim o mais importante. O principal era querer a Ele: gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam3.

Pois bem, a Igreja Católica é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo quanto ela possui e ainda aparecerá dela no Reino de Maria é isso, com uma intensidade, uma fragrância da qual nós temos dificuldade de formar uma ideia.

(Extraído de conferência de 9/2/1983)

1) “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mc 15, 34).

2) Do latim: Santo dos Santos.

3) Do latim: Nós vos agradecemos por vossa imensa glória.

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