Dr. Plinio mostra como a sociedade temporal, regida pela Fé e Moral, é capaz de realizar uma verdadeira aliança entre as diversas classes sociais, onde cada pessoa tem seu papel, harmonizando o mútuo respeito com a dignidade hierárquica individual.
Continuando a descrever a história da Bécassine, a vemos já como uma menininha, de uns quatro ou cinco anos. Nessa cena ela e se encontra no castelo dos marqueses. Em primeiro plano, aparece o marquês de Grand-Air e em breve vai se dar a refeição.
Conceito francês de varonilidade
Causa certa surpresa o contraste entre o marquês e a marquesa de Grand-Air.
Levados talvez por algum conceito primitivo, nós temos o hábito de pensar que o homem deve ser corpulento, enquanto a senhora deve ser magra, esguia e delicada, pois o marido deve ser mais avantajado.
Segundo o conceito francês de varonilidade, não cabe o elogio da corpulência. O homem francês clássico não é magro, mas musculoso, porém não daqueles músculos das figuras italianas da Renascença, usados para estudos de anatomia. Pelo contrário, é protuberante, porém ágil, destro, muito mais feito para saltar, galgar, avançar ou duelar, do que para empurrar obstáculos e atracar-se com as pessoas. É mais próprio da espada de esgrima do que do boxe.
Podemos imaginar esse marquês moço, sendo um duelista de primeira; nunca o imaginaremos jogando uma partida de boxe. Nem ele é para o boxe, nem o boxe é para ele. Até seria uma extravagância relacioná-lo com esse esporte.
Um homem desses, portanto, é da escola francesa da varonilidade, com a compleição física de um Dartagnan ou de um Cyrano, pois em moços eles certamente eram assim, prontos para lutar contra os turcos que estavam invadindo o Sacro Império ou qualquer outro inimigo.
O marquês é, portanto, um homem muito batalhador, conforme o gênero francês, que se enfeita para a batalha como também para a vida quotidiana. Ele é ultra enfeitado e, como tal, um bibelozinho.
Delicadeza, finura e elegância do marquês
Analisemos o marquês.
No desenho em questão, não se percebe por inteiro, mas ele é calvo. Ele tem os cabelos bem brancos, de as pecto macio, muito similar aos da marquesa, que formam uma moldura de cabelos salientes de um lado e do outro da face. Não são assim porque cresceram por acaso a la hippie. Não, tudo é muito graduado. Os cabelos devem ter uma certa altura, e assim por diante. Ficaria ridículo se fossem um pouco mais bufantes. Ou imaginem, por exemplo, que ele passasse um fixador e ficasse colante, a cabeça dele ficava pequena para o corpo. Então, qual é o cálculo? Na hora de pentear, precisa ser um artista para calcular exatamente o tamanho da cabeça para proporcioná-la com os ombros.
Como o marquês está dentro de casa, não está de chapéu, no entanto, os homens dessa categoria na França, como na Inglaterra ou noutros países, saíam de chapéu à rua. Eles não faziam como nós no tempo do chapéu, na qual entrávamos numa chapelaria e comprávamos um chapéu. Não; as chapelarias de então desenhavam o chapéu específico para a cabeça de cada um. Por exemplo, em Paris há o famoso Gelot. Quando o freguês vai para o Gelot, o empregado desenha o chapéu que mais lhe convém, e se o sujeito gosta do desenho aí executam um boneco. Dias depois o freguês volta para experimentar o boneco, e só depois se faz o definitivo. Quando o homem já é conhecido na loja, esta fica com o modelo do chapéu dele, e cada vez que precisar, manda-o fazer e entrega-se por correio. Quer dizer, é calculado como uma escultura.
Portanto, os cabelos do marquês esculturais. Aí se compreende o senso artístico que isso supõe.
A barbicha dele é a la Francisco José, seu contemporâneo, ou quiçá, ele tenha uns dez anos a menos do que o Imperador.
Notem o queixo dele raspado. A barba vem de trás e se perde no bigode que o comunica até o outro lado. A barbicha e o bigode também são calculados para fazer o mesmo efeito desse cabelo colateral e amoldurar bem o rosto.
O marquês usa um monóculo. Essa lente, muito raras vezes, é feita para atender uma necessidade visual, é apenas um estilo. O indivíduo o usava porque tinha um aro muito discreto, e ao levantar as sobrancelhas para segurá-lo, ficava com um olhar mais espetado, colocando certa distância a quem o olhava.
Vejam, por exemplo, como o marquês está tratando bem a Bécassine, e como esta conversa com ele à vontade. Ela não parece entender bem com quem está conversando, enfim, vê-se como ele a trata bem, pelo delicado gesto de mão. Ele todo é delicado, mas seu olhão e seu jeito espetam, criam uma distância em torno dele; é um homem que, coberto de agradabilidades, cria um vazio em torno de si. É o estilo.
Indumentária de elegantíssima intimidade
Analisemos a sua indumentária. O traje apresenta um colarinho engomado com uma camisa que quase não se vê por causa da enorme gravata tipo borboleta. Além disso, há outras três peças: um paletó, conhecido como sobrecasaca, cortada a meia altura entre o tronco e o joelho. É muito mais distinto do que um jaquetão.
Ele também usa um colete com botões que não aparecem aí; em geral, eram botões de muita qualidade, de porcelana pintada, de cristal ou de madrepérola de joalheria ou também podiam ser de ouro ou de prata. Quando a camisa estava velha, tiravam-nos e os passavam para outra camisa. Eram objetos do uso do homem, e para cada duas ou três camisas haviam botões especiais que deviam ir de acordo com a roupa. Só de vez em quando os deixavam de usar para não dar a impressão de ser um pobretão que está sempre usando as mesmas coisas.
No bolso inferior do colete figura uma corrente de relógio que cruza de um lado a outro da cintura; ali também havia uma bolsinha minúscula de ouro, prata ou platina, com uma malha muito leve e muito bem feita, onde se guardavam as moedas. Naquele tempo ainda se usavam moedas de ouro e de prata; não havia apenas esse infame e fraudulento papel-moeda que anda correndo por aí, o qual inundou o mundo monetário.
Notem que os sapatos dele são de verniz e não de um couro vulgar, os quais são cobertos por um tecido, que está para o pé dele como a roupinha do cachorrinho está para o animal. Por assim dizer, envolve o tronco do pé de cor clara, como branca é a camisa, e o sapato é preto. Este tipo de sapato se prende embaixo, pois ali tem uma alça com uma fivela junto ao salto.
A calça não é a tal britânica com uma lista firme e implacável na frente, porque o implacável é contrário à doçura francesa. Pelo contrário, é elegantemente negligé, como se estivesse caindo por acaso. Porque era deselegante para os donos da casa usar roupa que tivesse o ar de estar saindo do ferro de passar naquela hora. Eles deviam dar o ar de estarem numa elegantíssima intimidade; por isso, a calça, sem ser amarrotada, tem o comprimento exato para sobrar no fim da perna. Tudo isso é calculadíssimo, de maneira a dar essa elegância imponderável!
Percebam como o marquês está com a mão no bolso, para segurar a sobrecasaca. Olhem as mãos dele! São finas, brancas e compridas, como a mão aristocrática deve ser, bem o oposto das mãos do monsieur Labornez.
Distinção com notas impalpáveis
Comparemos o marquês com a marquesa.
Na figura ela não vem solenemente de braço com o marquês, pois está distendida pensando noutra coisa. Seu vestido branco é muito simples, apenas com um xale azul e uma lista da mesma cor na barra e um detalhe no colarinho. Notem como o xale dela caiu até a cintura de forma muito elegante. O penteado da dama é muito simples, pois não está naquela atitude imponente como quando estava em público na carruagem. Entretanto, a distinção é evidente.
No que essa distinção é impalpável? Vou tentar explicar.
O Pinchon é tão bom desenhista que faz perceber a lentidão com que a marquesa anda, como todo mundo dentro da cena. Ademais, ela está tomando uma atitude despreocupada com os braços pendentes e o corpo um pouco inclinado, sem nenhuma cerimônia; porém, ainda se nota a distinção porque, apesar de estar descontraída, a relação busto-tronco e cabeça-corpo têm beleza. Nessas atitudes se percebe a pessoa distinta que, embora na intimidade, continua numa atitude bonita, passando a ser uma segunda natureza. E isso, o Pinchon soube representar, a meu ver, como um verdadeiro sociólogo, a tal ponto que ninguém conseguiria dizer em palavras palpáveis o que eu acabo de explicitar.
Decadência implícita representada na menina
Passemos a analisar a neta-sobrinha dos marqueses. Ela é uma menina pura que só pensa em se divertir de modo casto. De forma alguma alguém colocaria nas mãos dela uma revista imoral ou iria apresentar a ela a televisão impura dos dias de hoje. Ela é saltitante, sem distinção, procurando se divertir e dar risada a respeito de tudo o que encontra. Vê-se, entretanto, a educação e as boas roupas dela, num bom ambiente, com boa comida, muito bem lavada e bem penteada, contudo os trajes dela não aspiram à distinção.
Quando crescer, ela vai ser uma moça comum que entra numa loja, num ônibus ou metrô, sem chamar a atenção a não ser de alguns que a conhecem e sabem ser uma pessoa distinta. É certo que não vai chegar à altura da marquesa porque esta, enquanto é marquesa, tem sempre a noção de sua grandeza, de sua superioridade e da obrigação de atrair o respeito dos que são inferiores. Por isso, nem o monsieur Labornez nem os netos dele dariam importância alguma a essa menina, mas se extasiariam com a marquesa. Portanto, na neta dos marqueses já está presente a decadência e a segunda classe.
Eu não julgo necessário comentar o traje nem o penteado da menina, porque não tem charme nenhum e não carrega nada do passado. Eu afirmo o seguinte: impureza, não há! Por quê? O que há de casto aí? Há uma certa leveza viva sem ser agitada. Onde entra a impureza ou o abatimento há agitação e não existe leveza. Essa ainda é uma menina pura.
Modéstia e educação da governanta
Agora vem a classe média, a governanta. O marquês e a marquesa são da alta sociedade.
A governanta é educada. O seu modo de pentear e a flexão do corpo, indicam ser uma pessoa de boas maneiras. A posição dela é de quem sabe não ser superior a ninguém, não fica espalhando em torno de si um “grand-air”, nem aristocratismo de nenhum jeito.
Bem o oposto do copeiro, pois este toma um ar de quem se encontra perante um rei, de tal forma está proporcionado à nobreza. Na cena em questão, ele ignora que a marquesa está na intimidade. Se a dama estivesse pronta para ir, por exemplo, a um baile oferecido pela alta nobreza a um monarca que está de passagem por Paris, ou então à nossa princesa Isabel ou ao conde D’Eu, todos contemporâneos, o copeiro não tomaria outra atitude da que está tomando.
A governanta não, ela pode sair à rua ou fazer compras que fica dissolvida nesses ambientes. O marquês e a marquesa são de salão. Notem, entretanto, como o copeiro e a governanta são mais finos do que as pessoas finas de hoje em dia.
Há outro lado que é preciso notar. Sem me deter muito tempo descrevendo a governanta, eu me pergunto: Quem se dirige a uma criança com essa delicadeza? É curioso como Pinchon, ao mesmo tempo, ao desenhar a governanta, demonstra certo respeito para com a criança, porque é neta dos patrões. Fica patente o sumo cuidado, delicadeza e até certo carinho com que conduz a neta dos marqueses para a sala de jantar, pois a criança está com a atenção voltada para cá e para lá. Exatamente como uma senhora trataria uma menina.
Hoje em dia não é comum encontrar senhoras que tratem suas filhas assim. Aí se percebe a decadência do toda uma época, sem falar, eu insisto, em decadência moral, por onde o que era comum antes da guerra de 1914 – em que a Europa tinha milhares de pessoas como esses marqueses –, hoje em dia isso é objeto de museu que não se encontra mais, nem de longe! Alguns de nós, é possível, nem suspeitou existir gente assim, de tal maneira saiu dos costumes. Pessoas de classe média como essa governanta quase não existem mais, inclusive de dentro da alta sociedade.
Essa governanta é uma pessoa modesta de vida pura, de família pura, muito correta, onde tudo se passa segundo a moral católica. Quer dizer, há uma tradição católica nessa família. Não é dessas moças, por exemplo, que saem em grupos de rapazes cantando e fazendo bagunça. Pelo contrário, é uma moça habituada a andar no meio de senhoritas, a ser tratada com muita cerimônia pelos rapazes da idade dela, a casar casta ainda. Em suma, é uma moça intacta que não foi poluída por nada. Quão raro hoje em dia também!
Simplicidade inocente da camponesa bretã
Bem, resta-nos a Bécassine. Há uma coisa a observar nela e é que está exageradamente gorducha, com o rosto redondo e vermelho como um queijo do Reno, usando uma touca vermelha e um pompom, sem fantasia nem gosto, mas convém ser assim, porque é um símbolo da classe dela. É o contrário do que gostaria apresentar a propaganda comunista a respeito da condição do camponês, vestido como burguês, sujo, maltrapilho, magro, doente e também revoltado, porque essa propaganda prega a revolução social. E há mais. Tudo decaiu tanto que até os filhos dos patrões se vestem à maneira de empregados dos tempos atuais. Andando pela rua, é difícil fazer distinção se o indivíduo é filho de patrão ou filho de empregado; quando se consegue fazer distinção.
A Bécassine é apenas uma camponesa. O modo de ela engordar é o modo de camponesa, com a boa saúde da plebe. Ela, por exemplo, é uma menina mais saudável do que a neta da marquesa, que também é uma menina forte. Becassine foi educada no campo e não em Paris, fazendo exercício físico, ajudando o pai e a mãe, porque a criança nessa idade já faz trabalhinhos. E na hora de comer, come pães e bebe leite à vontade. O resultado é ficar bem nutrida.
Pinchon é tão cuidadoso que até as pernas dela as desenhou gorduchas. Vejam como a neta da marquesa é mais magra, e se engordasse dessa forma a levariam no médico para indicar regime. Em parte, é assim porque há um imponderável qualquer por onde a boa educação transmitida por gerações faz a pessoa engordar de um modo diferente. Por exemplo, a madame de Grand-Air é gorda, porém é diferente da corpulência do criado.
Tanto a camponesa como o copeiro são nitidamente inferiores à governanta, e esta é inferior à marquesa. É uma sociedade onde cada um tem seu papel. Tudo é bem organizado.
Com isto termino de descrever essa cena.
A Bécassine foi ao castelo para brincar e depois almoçar com a menina e com os marqueses. A camponesa – que perdeu toda a distância psíquica – está contando alguma coisa para o marquês e este está dizendo algo ou fazendo algum gesto amável explicando estar à esquerda sala de jantar onde todos vão entrar, pois ela ainda não percebeu onde será a refeição; de tal forma está extasiada. Com certeza, a camponesa será a atração do almoço porque vai fazer tolices e todos vão dar risada, com bondade.
Assim, habituada ao castelo, a Becassine vai servir a marquesa até o fim da história, quando a nobre estiver idosa.
(Extraído de conferência de 14/5/1980)