Ao comemorar a festa de Nossa Senhora Auxiliadora a Santa Igreja evoca o auxílio maternal dispensado pela Santíssima Virgem a todos os homens. Considerando cada um como se fosse filho único, Maria se desdobra em desvelo e atenções, realizando assim sua missão de Medianeira de todas as graças.
No dia 24 de maio a Santa Igreja comemora a festa de Nossa Senhora Auxiliadora. Essa invocação foi introduzida na Ladainha Lauretana por São Pio V, em comemoração da vitória alcançada contra os turcos, em Lepanto. A festa foi instituída por Pio VII, em ação de graças por sua volta à Roma depois de ter sido preso por Napoleão.
Lepanto, um dos fatos mais gloriosos da história da Civilização Cristã
Temos para comentar uma ficha a respeito da Batalha de Lepanto. Convém sempre relembrar as glórias da Civilização Cristã e, portanto, trazer à memória esse acontecimento, o qual é um dos mais gloriosos dentro dessa história. No entanto, será a respeito de Nossa Senhora Auxiliadora que teceremos considerações.
A ficha é tirada do livro sobre Lepanto, de Garnier1:
Agostinho Barbarigo, capitão veneziano, era o chefe da ala esquerda das galeras, na batalha de Lepanto. Soldado famoso, era aceito como verdadeiro líder da armada de Veneza.
Em Lepanto, em meio à luta, foi cercado habilmente pelos generais Siroco e Uluç Ali.
Pelo menos cinco adversários o contornaram e seus navios lançavam nuvens de flechas que cobriam a popa da nau capitania de Barbarigo. Durante uma hora inteira ele sustentou o assalto turco. Depois, com o auxílio de outras galeras conseguiu, finalmente, passar à ofensiva. Na confusão desse ataque furioso, conseguiu aprisionar o capitão Siroco.
Sempre hábil na manobra e corajoso até a audácia, Barbarigo abordou depois a galera de Uluç Ali, cujo mérito guerreiro era bem conhecido e o fez prisioneiro também. A batalha prosseguiu violentamente. Em dado momento, Barbarigo percebeu que não era bem entendido pelos seus comandados, porque seu capacete cobria-lhe o rosto. Lançou-o então fora para ser melhor ser ouvido. Nesse momento, os inimigos intensificaram o lançamento das setas. Preveniram então o capitão do perigo de lutar sem capacete. Respondeu ele: “É menor o perigo de correr tal risco do que ser mal compreendido em tal momento”. Logo foi atingido por uma flecha no olho e entregou o comando a seu imediato.
No dia seguinte, o excelente Barbarigo ouviu dizer que a vitória coubera aos cristãos. Ele levantou as mãos aos céus, pois não podia abrir a boca para pronunciar uma palavra; sua ferida o impedia. Ele exprimiu sinais de alegria e reconhecimento a Deus.
O episódio é muitíssimo bonito, quer pela audácia de Barbarigo, quer pelo espírito de fé, integridade e inteireza de alma com que ele aceitava esse ferimento o qual deveria ser terrível. Uma flecha no olho, que chega a impedir a pessoa de falar, podemos imaginar as profundidades atingidas por ela e quais os efeitos causados.
Como crianças, abandonados aos cuidados de Maria Santíssima
Passo a comentar Nossa Senhora sob o título de Auxiliadora dos Cristãos. Por mais evidente que seja, há ocasiões em que as coisas óbvias devem ser lembradas.
Auxiliadora dos Cristãos é a invocação de Nossa Senhora enquanto tendo a missão, a vontade e o hábito de socorrer os cristãos. Cada um desses conceitos: missão, vontade e hábito, merece um comentário.
Primeiro, a missão. Maria Santíssima foi criada para ser Mãe de todos os cristãos, de forma especial, e de todos os homens, de modo geral. Ela tem essa incumbência, entregue pela Providência a todas as mães, de velar por seus filhos. Esse encargo não deve ser visto como o da mãe junto ao filho crescido. Por mais respeitável e dileta que seja a figura materna em todas as idades do ho mem, há uma fase na qual ele carrega a responsabilidade de seu próprio destino, inclusive protege a sua mãe mais do que é protegido por ela. Porém, nós devemos ver as nossas relações com a Santíssima Virgem não como a de um adulto com sua mãe, mas como a de uma criança. Porque o papel d’Ela junto a nós é este.
Como explicar isso sendo algo tão contrário à piedade moderna, da concepção antipaternalista, do indivíduo evoluído, amadurecido, “desalienado”? O que estou dizendo, do ponto de vista hodierno e revolucionário, é uma barbaridade. Entretanto, é o melhor suco da piedade católica nesse gênero de assuntos.
O ser humano está nesta Terra em estado de prova e de luta, no qual sua alma vai se desenvolvendo para a maturidade plena a ser atingida no momento da morte. Vistos do Céu, somos como crianças em formação. A nossa verdadeira idade adulta é aquela na qual Deus colherá a nossa alma, pois aí teremos alcançado – se formos fiéis à graça – a perfeição para a qual fomos criados. De maneira que, desde o aspecto sobrenatural, a vida terrena é um educandário, e a maturidade é a morte. Nossa Senhora nos vê, por conseguinte, como espíritos em evolução.
Coloquemo-nos na perspectiva da sociedade contemporânea, com todos os desastres, as desordens, os desregramentos morais e o caos nela existentes, e perguntemo-nos qual a impressão transmitida por ela ao ser analisada por um bem-aventurado, o qual vê Deus face a face e está confirmado em graça. É tal a precariedade, a incerteza, a debilidade e o desatino do gênero humano, que, considerado pelos Anjos e Santos, ele é uma criança de maus bofes, mal encaminhada.
Compreendemos, portanto, que a Virgem Maria tenha para conosco a missão que se tem para com um filho bem pequeno, dando uma assistência inteira, ajudando em todas as horas, protegendo de todos os modos.
Do alto do Céu Maria Santíssima tem constantemente presente a existência de cada um daqueles que estão na Terra, no Purgatório, como também dos que se encontram na morada celeste. A cada instante Ela tem conhecimento simultâneo e perfeito de todos.
Nossa Senhora ama a cada um como sendo filho único
De outro lado, Ela ama a cada um como nunca uma mãe terrena amou seu filho. Não conseguimos medir as solicitudes da Santíssima Virgem, como Ela acompanha, reza, obtém graças e guia a vida de cada um. E faz isso de maneira tal como se aquele fosse o único a existir; e sobre esse ponto eu gostaria muito de fazer uma insistência.
Quando rezamos para Nossa Senhora, temos a impressão de que Ela olha para todos, como para uma multidão e, assim sendo, mal discerne a cada um. Quando chega de nossa parte um brado muito angustiado, Ela pode prestar um pouco mais de atenção. Mas fora disso, aquilo se perde no tumulto da humanidade e dos séculos.
Essa visão é completamente antiteológica e falsa, a ponto de quem sustentasse isso não poderia lecionar Catecismo, de tal maneira o contrário é elementar. A impostação de alma que deveríamos ter ao nos dirigirmos à Virgem Maria é, antes de tudo, nos lembrarmos disso: Ela me vê, conhece e ama como se existisse só eu.
Suponhamos que aparecesse nosso Anjo da Guarda e nos dissesse: “Nossa Senhora irá parar, durante uma hora, de atender as orações do mundo inteiro, para olhar só para você. No universo inteiro se fará silêncio. E vai ser apenas a sua súplica que subirá a Ela e as graças d’Ela descerão para você”. Em primeiro lugar, nós ficaríamos para lá de comovidos. “Como é possível isso? Que honra! Eu não mereço! Eu tenho medo…! Mas, de outro lado, que maravilha!” Enfim, produziria inúmeras reações.
Todavia, isso se dá sempre. Quando rezamos em conjunto, é como se cada um o fizesse sozinho e o universo inteiro tivesse parado, e Ela estivesse prestando atenção só em um. Eu acho indispensável termos isso bem fincado na alma, do contrário não há piedade mariana viva e sincera. Fica-se apenas no esquema pseudoteológico, limitado, sem voo nem realidade.
De fato, se Nossa Senhora, durante uma hora, abandonasse tudo para olhar só para um, o universo ruiria nessa ocasião, porque ele todo vive do olhar e da proteção d’Ela, sendo Ela a Medianeira de todas as graças de Deus, papel central e contínuo. Essa é a missão.
Completo desinteresse do autêntico amor materno
Discorramos agora sobre o conceito vontade.
A Virgem Maria não é infinita, é mera criatura, mas insondavelmente perfeita. Não temos ideia de como é a excelência d’Ela. Ora, uma pessoa perfeitíssima ama com amor perfeitíssimo sua própria missão. Basta Deus ter mandado para Ela querer por inteiro. Mas não é só isso. Nossa Senhora quer bem a cada um de nós individualmente, do modo como nós somos. Com aquela espécie de desinteresse do amor materno autêntico, no qual a mãe não ama o filho por causa da carreira, nem do auxílio, nem de nada disso, mas porque ele é ele.
Tudo quanto uma mãe dedica de bom em relação ao fruto de suas entranhas, Maria Santíssima tem de modo inimaginável por nós. Ela gosta de nos olhar, de nos querer bem e de ser querida por nós. Em Deus, é claro. Ou seja, na medida em que formos conformes ao Divino Artífice ou possamos nos converter para Ele. É assim que Ela nos quer.
Quando nos ajoelhamos diante de uma imagem, ou até mesmo quando oramos interiormente, devemos ter a convicção de que esse ato é grato a Ela. Isso é assim mesmo se estivermos em estado de pecado, pelo desejo que Ela tem de nos tirar dessa via. Por tudo isto Ela tem a vontade de nos amparar. Quando uma mãe tem esse desejo em relação ao filho, ela quer assisti-lo de todo jeito, de qualquer modo, e a todo momento.
Liberdade filial, característica do verdadeiro devoto da Santíssima Virgem
Por fim, Maria tem o poder de nos ajudar a todo instante, nas coisas grandes, sobretudo na vida espiritual, para nos santificarmos, para servirmos a Igreja, a Causa Católica. Ela nos favorece também em nossas necessidades, inclusive pequenas. Portanto, um comprovado devoto de Nossa Senhora pede-Lhe qualquer coisa, as menores que queira, por exemplo, estando à espera de um táxi, pedir que este venha logo. Ele deve estar continuamente implorando tudo, desde que convenha para sua salvação e santificação.
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A Santíssima Virgem é tão boa, que podemos até dizer o seguinte: “Minha Mãe, dai um jeito de tal coisa convir à minha santificação, porque eu a estou querendo muito”. Pois devemos possuir uma total liberdade filial para com Ela, sem nada de hirto. Se Ela não nos atender é porque nos dará outra coisa melhor do que a pedida.
Conto um episódio da vida do grande Dom Chautard. Ele encontrou-se certa vez com Clemenceau, político francês, de muitíssima personalidade, muito inteligente, contudo, muito anticlerical.
Sabe-se que os anticlericais odeiam de modo peculiar os contemplativos, por os acharem inúteis. Com base nesse pressuposto, podemos conceber o contato entre ambos: Clemenceau, chamado “o Tigre” pelo jeito e pela força de personalidade, e Dom Chautard, que hipnotizava até leões, sendo isso histórico na vida dele.
No encontro, começaram a conversar e Dom Chautard contou todas as suas ocupações. Então, Clemenceau lhe disse:
— Mas o senhor precisa me ensinar como encher tanto o tempo, porque eu não consigo pôr todas as minhas ocupações dentro do dia e o senhor consegue dispor tantas dentro do seu.
Dom Chautard respondeu:
— Senhor Ministro, é muito fácil: se o senhor acrescentar a todas as suas ocupações o rezar todo dia, quinze minutos, um terço bem rezado, dará tempo para tudo, como dá para mim.
Isso pareceria uma afronta. Pois bem, o Tigre engoliu a provocação do domador. Não disse nada. Para propor a um anticlerical de rezar o terço todo dia… Não se pode cogitar algo de mais ousado, sobretudo se considerarmos como era o anticlericalismo do tempo de Clemenceau: um devora-frades horroroso.
Nesse desafio, o qual tinha qualquer coisa de hercúleo, entrava uma realidade: todo mundo vive no corre-corre, com falta de tempo. Se rezar mais, sobra mais tempo para os afazeres; os problemas se resolvem com menos enguiço, menos encrenca, se arranjam melhor. Para tudo se consegue tempo por sermos sustentados por Nossa Senhora até nas coisinhas. É questão de pedir com empenho.
O melhor de seu amor, Maria reserva para os lutadores da Fé
Aí está Nossa Senhora Auxílio dos Cristãos. Entretanto, o que significa a palavra “cristãos”?
Há uma tese de Teologia da História, famosa e admitida por todos os autores: o mundo existe para os bons e os outros existem pela intenção de Deus que eles acabem sendo bons. No entanto, o centro da História, por onde ela é governada, são os eleitos.
Por conseguinte, a Virgem Maria é sobretudo Mãe dos cristãos, e por cristão devemos entender o católico apostólico romano. Em relação aos outros, Ela é Mãe para os trazer à Igreja ou para os salvar. Mas o melhor de seu amor materno é para os católicos, para os que professam a verdadeira Fé.
Se isto é assim, o que dizer do afeto d’Ela para com aqueles que dedicam a vida ao serviço da Religião? Sobretudo em uma época de apostasia universal, inclusive dentro da Igreja? Já não é uma prova de predileção ter recebido esse chamado, mesmo não merecendo? E, além disso, ser conservado nessa epopeia, dádiva que desmerecemos de tantos modos? Entretanto, Ela nos deu isto.
Consideramos um privilégio o fato de São João Evangelista ter estado ao pé da Cruz. Pois bem, ser filhos inteiramente ortodoxos dentro da Igreja, sem pacto nenhum com a Revolução, em luta contra ela, perseguidos por ela, é estar ao pé da Cruz numa hora de abandono como nunca houve desde que Nosso Senhor morreu, visto que nunca a Fé foi tão negligenciada como em nossos dias. De maneira que, quando dirigimos preces a Nossa Senhora, nós deveríamos nos considerar ao pé da Cruz, com o Divino Redentor agonizante e sua Mãe Santíssima tendo nos atraído para aquela solidão e para a participação naquela dor.
Quanta coisa nos atreveríamos a pedir nessa circunstância! Quanto perdão, quantas graças! É assim que devemos nos ver.
Recorrer é corresponder à solicitude de Deus
Uma última consideração: O bom ladrão, como diz Santo Agostinho, roubou o Céu. Foi o primeiro Santo a ser canonizado. Como ele obteve essa indulgência? Teologicamente é certo: pela oração de Maria Santíssima. Por ser Ela a Medianeira universal, só recebemos graça por meio d’Ela. Se ele conseguiu isto, quanto mais nós alcançaremos para a Santa Igreja, para nós e tudo o mais!
Isto devemos guardar e tomar o hábito de lembrar antes de rezar a Ela. Preparar o espírito e passar o dia inteiro suplicando. Quando não estivermos recitando as orações diárias, façamos jaculatórias. Então nossa alma encontrará a paz e teremos correspondido, de algum modo, à solicitude de Deus ao nos ter outorgado a Santíssima Virgem como auxílio. Com isso terminamos nossa meditação sobre Nossa Senhora Auxiliadora.
(Extraído de conferência de 24/5/1969)
1) GARNIER, François. Journal de la bataille de Lepante. Éditions de Paris, 1956.