viernes, noviembre 8, 2024

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Reflexos de uma sociedade em decadência

Uma vez mais a história de Bécassine oferece a Dr. Plinio a oportunidade de fazer uma análise apurada e substanciosa das mentalidades, temperamentos e costumes da Europa antes e depois da Primeira Grande Guerra, tomando como ponto de partida a arte sociológica que Pinchon imprimiu em seus desenhos.

Vamos continuar com a apreciação dos desenhos de Bécassine, analisando-os desde seus pormenores, pois do contrário, não adiantaria tratarmos do assunto.

A vestimenta, expressão de um espírito

Esta é uma cena ultra característica. Vê-se a marquesa recebendo e conversando com um almirante. Notem como ela está em traje de cerimônia, que possui uma vaga reminiscência de Ancien Régime. O vestido imita certas cortinas de casas tradicionais antigas, dando a ideia de um cortinado a la francesa. Tudo posto por acaso, e a simetria que parece não estar em lugar nenhum, está, na realidade, presente em tudo.

A saia não é tão rodada quanto a saia balão, mas conserva um pouco do aspecto circular. Atrás dela há uma calda delicada, mas pontuda, e na frente pequenos gomos ou dobras canuladas. Teoricamente os caneles deveriam ser todos iguaizinhos. Porém, segundo o estilo francês, a arte está em fingir que quem fez isso não conseguiu produzir tudo igual, e então saiu meio desigual. Assim, se fosse tudo idêntico ficava deselegante e quadrado.

Da mesma forma, tanto as dobras superiores da saia quanto as da calda deveriam cair bem direitinho, mas o resultado ficou ligeiramente irregular. Inclusive, ao analisarmos o irregular do vestuário da camponesa, como do copeiro, vemos que também produz uma ideia de simetria, embora esta esteja ausente. O que é muito inteligente! É a superação do espírito sobre a matéria, por onde, mesmo na matéria em estado de incorreção, o espírito a corrige.

Percebam também como todo esse contraste entre o miúdo tamanho do pé e o corpo da marquesa dá a ideia de elegância nos movimentos. Se a esposa daquele copeiro fosse usar esses sapatinhos e tivesse a corpulência do marido, com certeza cairia. É preciso ser muito bem esculpido para equilibrar-se dessa forma.

Todo este conjunto de coisas exprime o temperamento e o modo de ser da marquesa: é como um sismógrafo de personalidade. Em qualquer movimento que ela faça com a saia, sua personalidade fica estampada. É na desigualdade bem estudada que fica um certo charme, pois se a saia se move, esse plisser também o faz.

Nas modas de hoje não há expressão do espírito.

Vislumbres de beleza antes da Guerra

Nesta parte da história, – mais antiga que a Primeira Guerra Mundial –, o tio da marquesa era almirante e andou navegando pela Indochina, onde a França possuía colônias. Voltando a Paris, ele foi visitar a sobrinha e lhe ofereceu como presente uns vasos que alguém depositou no chão.

A cena está se desenrolando aí. É um fato da extrema juventude da marquesa, pois ela está representada mais jovem do que na cena na qual Bécassine foi convidada para tomar a refeição com os marqueses. Aqui, trata-se do tempo de Napoleão III, pois o traje o revela.

Como o Pinchon é um bom sociólogo, ele detalha bem as coisas. Por exemplo, a atitude da marquesa é de quem está conversando com o almirante com uma certa vivacidade, a tal ponto nota-se pelo braço e pela expressão do rosto que ela está quase exclamando de surpresa diante de alguma coisa. Notem como a arte de conversar está bem marcada aí.

A marquesa exclama com a boca, com a mão e até com o corpo, ligeirissimamente inclinado para frente, por causa da atenção que ela está prestando no que o tio diz. Vejam como eles mantêm distância entre si; é a distância do mútuo respeito, porque aqueles que se respeitam não se colam, mas se conservam distantes. E pertence à respeitabilidade de todo homem, quer estando com um amigo ou com um parente, permanecer distantes entre si. A respeitabilidade impõe distância. Então, nesta cena, a distância está exatamente graduada para uma conversa natural entre pessoas muito finas, habituadas a serem assim.

Ilustrações: J. Pinchon

O almirante é um militar que acaba de ganhar vitórias heroicas na Indochina. Nota-se a alta graduação dele pelas dragonas, pelo chapéu de almirante e por essa magnífica faixa dourada que percorre a perna de alto a baixo. Vejam como ele é esguio e frágil a la monsieur de Grand-Air. Ele mesmo é um nobre monsieur de qualquer coisa, que é almirante. É o tipo de varonilidade francesa com o qual, aliás, não deixo de ter certas restrições, porque parece-me um pouco bibelô demais. Mas enfim, analisemo-lo como ele é, e não como nós imaginamos que deveria ser.

A barba do almirante, semelhante à do monsieur de Grand-Air, forma uma espécie de costeleta, imitando a barbicha do Imperador Francisco José. Eles não deixam de ter uma vaga semelhança enquanto parentes.

Agora, o uniforme merece uma análise.

As cores azul e verde, muito bem escolhidas, são realçadas pelas dragonas que dão ao ombro a ideia de uma corpulência moralmente ornamental, e no uniforme, um pouco escuro, dão uma nota de luz que representa o lampejo da glória.

O chapéu é um bicórneo ornado com palmas na fresta superior, muito mais fino do que aquele infame bicórneo de Napoleão. Do outro lado não ficou bem representado, pois esses bicórneos costumam ter um galão feito do mesmo material que o cinto dourado masculino. Então, o uniforme militar compreende dragonas e botões dourados com um cinto da mesma cor, além daquela faixa dourada que chega até a calça. É muito bonito todo este conjunto de coisas; dá a ideia de glória, de valentia e de distinção sobre o sinistro de uma carreira voltada para a morte, expressa pelas cores escuras.

Ilustrações: J. Pinchon

Esses homens não são príncipes e nem sequer pertencem a alguma esfera próxima a eles. É um gênero, por assim dizer, pertencente à nobreza média da Europa daquele tempo. Portanto, é uma cena da vida de então em Paris.

Lampejos da decadência em germe

Na seguinte cena há dois homens que conversam. Um é o sobrinho da marquesa e o outro é o médico do exército durante a guerra mundial. O primeiro não é mais o oficial do gênero do almirante, mas é o poilu francês de uniforme bleu horizon – azul da cor do horizonte, como eles costumavam chamar –, e que está conversando num “hoteleco” com um soldado, um médico de outro regimento.

Os uniformes dos dois militares são diferentes, pois um não é combatente, o outro sim, e traja um uniforme próprio para a guerra.

Por que o uniforme do primeiro não se usava durante a guerra? Porque eles se deram conta, desde logo, que a calça de cor vermelha, também chamada rouge garance, era muito visível ao longe pelos fuzis e o regimento que avançava assim oferecia um alvo fácil, mesmo em épocas do ano brumosas, de maneira que se tornou urgente modificar logo o uniforme e tomar a cor das brumas para se camuflar em certas estações da Europa.

Isso indicou uma decadência no aparato militar porque, terminada a guerra, os uniformes permaneceram assim sem voltar atrás, mesmo em tempo de paz. Depois da Segunda Guerra os uniformes também perderam as mangas, além de muitas outras coisas. É a marcha para o nudismo que o traje militar está percorrendo, como todos os outros trajes civis do homem e da mulher.

Ali também podemos ver a diferença do modo de conversar. A mesa é pequena, feita apenas para dois, onde quase não cabem os pratos. A cadeira é o que há de mais ordinário no mobiliário daquele tempo, feita apenas para tomar um almoço rápido. São madeiras e articulações tão ordinárias que é preciso pôr embaixo aquele círculo para as pernas não desconjuntarem. Ademais, são tão desconfortáveis que eles apenas estão sentados sem se encostarem nelas. Aliás, a educação daquele tempo proibia encostar-se no espaldar da cadeira.

A toalha, barata; não é linho, mas um pano ou uma chita qualquer. A louça, vê-se que é grossa e ordinária. A garrafa de vinho era típica do ambiente de segunda, terceira e quarta classe daquele tempo: apenas um reci piente de vidro para conter o vinho retirado de um tonel por meio de um torneirão. Portanto, também o vinho é ordinário. Enfim, em tempo de guerra a vida era essa!

Ilustrações: J. Pinchon

Notem a diferença entre os dois. O oficial da marquesa é desinibido, desenvolto, muito natural, procedente de exércitos largos e seguros de si. Ele fala com o desembaraço de um homem que sabe estar falando com alguém incapaz de fazer-lhe alguma crítica, porque não tem categoria para isso, e, portanto, ele está inteiramente à vontade.

O outro se sente inferior e toma uma atitude de cerimônia porque não sabe fazer gestos de um modo bonito. Então, quando ele quer fazer algo elegante para conversar com o outro, o faz deste modo. Isso se nota pelo tom de respeito com que este fala com aquele. Não está se comparando, porque ninguém se compara com ninguém.

Os dois estão com ar de quem presta atenção na conversa. A coisa está tão bem desenhada que até daria para adivinhar o timbre de voz com o qual cada um está falando. É claro que o primeiro fala com uma voz alta, pois está habituado a isso, e o segundo fala com uma voz mais aveludada e um pouco mais interrogativa…

O que mais dizer? O charuto! Nesse tempo, o charuto tinha um papel especial na conversa, e era para o homem o que o leque ou o lornion era para a mulher; um instrumento utilizado para dar a entender estados de espírito. Por exemplo, posto na mão de um diplomata ou de um rapaz de seus trinta anos, era um sinal de afirmatividade, segurança e superioridade em relação a um indivíduo que fumava cigarro, porque só havia charutos caros naquele tempo, os quais produziam uma fumaça e uma cinza azul muito delicadas, mas tinham vagamente a expressão de um florete. Vejam, por exemplo, como ele segura o charuto; está muito amável com o outro, mas o charuto quase que cutuca um pouco o companheiro pelo modo de ele usar. A arte de usar o charuto ficou muito bem representada.

É outro mundo, são outras circunstâncias… Mas, somando e subtraindo, tudo isso aponta para uma decadência.

(Extraído de conferência de 14/5/1980)

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