jueves, noviembre 14, 2024

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Bondade diáfana no convívio, reflexos da Santa Igreja

No convívio, a preocupação constante de Dona Lucilia era transmitir o calor do afeto e doar-se continuamente numa disposição de tudo transpor para beneficiar as almas. Era bem a representação da conduta da Santa Igreja com relação aos pecadores: não se indigna, não recrimina, não se vinga; tudo perdoa, dota de novos dons e novos privilégios.

Arquivo Revista
Dona Rosée com Dr. Plinio em um restaurante de Campinas, em outubro de 1962

Presente de uma viagem que minha irmã fez à Europa, o xale lilás, quando apareceu em casa, deu-me a primeira impressão de ser um artigo muito bonito, muito bom. De fato, o que Roseé comprava, fazia-o com muita perfeição, adequação, bom gosto.

Xale “luciliano” por excelência

De um lado eu gostei muito do xale, de outro, fiquei um pouco reticente com ele pela impressão de modernoso que me causava, pois era um pouco fofo, espumoso na sua contextura. E se bem que a cor de ametista me encantasse, eu me perguntava como ficaria mamãe dentro de um tecido fofo.

Ouvindo comentários posteriores destes e daqueles, percebi que eu estava mal informado; sempre muito alheio aos assuntos de indumentária e de tecidos, não sabia que se tratava de uma lã europeia muito autêntica, boa e sem nada de modernoso.

Quando vi mamãe vestir o xale perguntei-me porque o havia posto nas costas, um xale muito bonito deveria ser posto sobre ela, era uma cena natural da vida de família.

Notei que ela o achou muito bonito, gostou muito da cor e não estranhou o tecido; no entanto, neste momento não fiz maiores raciocínios sobre se o tecido era ou não moderno, por aí não foi minha atenção, mas sim, ver qual era o olhar que ela fazia sobre o xale.

Ela não mudou nada da posição e da atitude em que estava. Apenas sorriu luminosa e discretamente, com muita bondade, diante da manifestação de afeto que lhe fizeram umas três ou quatro pessoas que se encontravam na sala.

Eu percebi que ela se adaptou em algo ao xale, mas sobretudo ele adaptou-se a ela! No reflexo de seu olhar, em seu modo de dizer, ela deu uma certa interpretação, projeção, um certo modo de ser ao xale.

Mais ou menos como uma senhora que toma uma rosa, a põe junto ao peito e faz um pouco a “fisionomia” da rosa e esta adquire um pouco o jeito da senhora; assim também mamãe fez com o xale e ele ficou “luciliano” por excelência!

Ela o utilizou muitas vezes. Primeiro apenas para sair, em ocasiões de maior solenidade. Depois, com o avançar da idade e com os frios de São Paulo, ela passou a usá-lo também em casa, e com certa frequência.

Cada vez que eu a via com o xale, me regalava, exatamente pela relação que havia entre aquele castanho profundo de seus olhos e o tom ametista do tecido.

Herança perdida e recuperada

Ela morreu. Quando fomos fazer uma sumária partilha dos bens, minha irmã não quis levar absolutamente nada, pois disse que eu havia mantido mamãe a vida inteira e lhe havia feito companhia e que, portanto, ela me deixava tudo o que havia pertencido a ela e que era da casa.

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Ora, no Brasil, ou ao menos em São Paulo, a velha tradição era que as joias da senhora falecida ficassem com a filha. Uma ou outra coisa ia para as noras, mas o principal ficava com a filha. No meu caso, dei à minha irmã todas joias de mamãe, reservando para mim apenas um anelzinho de brilhante, muito sem valor e modesto, que está no meu relicário.

Passados alguns dias que eu tinha dado as joias, disse à minha irmã:

— Sabe de uma coisa? Do que lhe dei vou tirar uma coisa.

Ela me disse:

— O que é?

— Aquele anelzinho vai ficar comigo.

— Pois não!

E me devolveu o anel. Alguns dias depois ela apareceu em casa e me disse:

— Eu, do que eu dei, também vou tirar uma coisa: aquele xale vai ficar comigo.

Foi para mim uma dilaceração… mas não podia dizer nada. Ela era filha e tinha dado o xale. Algum tempo depois eu soube que ela o havia dado de presente a uma tia nossa.

Quando essa tia morreu, pensei: “Esse xale já deve estar estragado – porque ela viveu muitos anos – já devem tê-lo doado para gente pobre, ele sumiu.”

Qual não foi minha surpresa ontem quando chegou em casa, de manhã, o filho dessa tia trazendo-me o xale!

“Trans-senhora” de luz

No espírito humano e no modo pelo qual ele abarca a realidade, há um ponto em que é especialmente chamado a conhecer a Deus, e do qual ele tem uma compreensão de ordem natural, nativa, muito simples, clara e originária. E quando o homem estuda a partir desta luz primordial e pensa a partir dela, ele tem possibilidades de dar um homem bem inteligente, ainda que seja medianamente inteligente.

Ora, quando alguém faz um estudo cartesiano: “Luz primordial eu te empurro, aqui está o compêndio 1, 2, 5, compêndio 92…”, esse, ainda que seja inteligente, tem todas as possibilidades de dar num burro letrado, muito diferente de uma pessoa inteligente.

No caso de mamãe, ela possuía apenas a cultura comum de uma dona de casa, com uma nota afrancesada de formação de espírito muito pronunciada. A luz primordial que transparece em todas as fotografias e que figurava no espírito dela, é antes de tudo, uma certeza de que as coisas têm um significado, um segundo sentido que está para além delas, em virtude do qual elas deveriam ser vistas. Assim, além desse trans-significado, existe um transmundo, uma trans-realidade que aparece a nós através dessas realidades diáfanas, que produz na alma uma trans-compreensão, um trans-sentimento.

Ela nunca enunciou, e creio que não saberia fazer essa consideração, mas constituía a impostação fundamental do espírito dela a respeito de tudo.

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Se considerarmos as fotografias dela, notaremos estar ela prestando atenção naquilo que está fazendo: deixando-se fotografar; no entanto, o olhar, a atitude, exprimem uma “trans-senhora”, que seria como a sombra dela para o lado da luz. Uma luz maior do que ela, mas dela, e fica por detrás dela. O olhar, o todo, parecem perguntar ao fotógrafo, e, a seu modo, a quem vê a fotografia: “Vocês não veem isto? Não percebem que em vocês há também esta luz, e que o universo inteiro é assim?”

O Quadrinho é mais do que dizível. Ela está ali representada ciente de que dela emana uma luz que é o significado dela e que ela coloca à disposição de um outro como quem diz: “Diga-me como é você e no que nos afinamos. É por aí que nos quereremos inteiramente bem!”

Fazendo do convívio uma permuta de luzes

O convívio humano para ela não era desses mercantis: fez uma gentileza, recebe outra.

Por exemplo, o modo de ela escolher um presente. Eu assisti muitos cálculos de escolha de presentes feitos por outras pessoas: “Daqui a alguns dias é aniversário de fulana. Ela deu-me, por ocasião de meu aniversário, um presente que eu vi igual à venda por tal valor. Eu devo dar, portanto, a ela um presente que equivalha a isto em dinheiro. O que podemos comprar de bem apresentado por essa quantia?”

Ela não! Primeira pergunta era:

— Do que fulana agora gostará…?

Segunda pergunta:

Tamara Maria A.
Sagrado Coração de Jesus (acervo particular)

— Até onde os meus recursos me permitem dar?

Terceiro: ela dava o presente, não como uma espécie de troca comercial, que a meu ver, polui o presente. Era com uma vontade de dar algo que estava em sua própria alma, sempre nesta permuta de luzes, que era a essência do convívio com ela.

Viver em torno disso, para isso, convidando a todos para isso e enchendo-me disso, — porque tanto quanto eu pude, eu disse “sim” a este convite —, isso era a luz primordial dela.

Detesto comparações, e não comparava o trato que ela tinha comigo com o relacionamento de outros filhos com suas mães. Evidentemente, às vezes saltava-me aos olhos alguma coisa que, ao menos fosse eu cego, não poderia deixar de ver; mas não detinha a atenção, passava por cima. Ora, hoje dou-me conta disto, o tempo passa, as comparações quanto ao passado, ao menos em larga medida, são legítimas. Com o presente não; menos ainda com o futuro…

Hoje em dia vejo bem que esse feitio do espírito dela teve um papel muito importante na “RCR”, porque o cerne dela é a noção da Revolução tendencial. E o que havia nela era exatamente a vida tendencial assim concebida com uma riqueza extraordinária.

Calor de afeto num convívio de alma

Ela era católica, nascida de uma família católica, apostólica, romana por inteiro, mas menos católica do que muitas outras famílias, por exemplo, destas que frequentam a igreja, são amigas do padre, dirigem as obras da paróquia, etc. Minha família – a dela, portanto – não tinha nada disso. Eram amigos do padre, mas admiravam-no, com certa distância, não por anticlericalismo, era falta de hábito.

Entretanto, tinha, nessa como em tantas outras famílias brasileiras, o hábito de considerar a veracidade da Igreja Católica como uma evidência.

O que havia nela de modo muito vivo era algo daquela bonita invocação: “Sagrado Coração de Jesus, Rei e centro de todos os corações, tende piedade de nós”. Talvez ela não a conhecesse ou, se conhecia, não prestava maior atenção, mas essa invocação era bem como ela via a vida afetiva, que era a que levava, e que consistia em dar este calor de afeto e de formação, e dizia muito respeito ao modo de ela ser católica.

Ela compreendia muito bem que a essência do convívio está na afinidade das almas e na felicidade que há em dar-se e em querer-se bem, realizando ao pé-da-letra o princípio dado por Nosso Senhor no Evangelho: é mais feliz quem dá do que quem recebe.

Isso modelava de algum modo o espírito dela, em termos tais, que notava nela uma vontade de se dar, de atrair a si para esse convívio de alma, como não conheci em ninguém.

E, dentro disso, uma dignidade e tranquilidade, uma serenidade e resignação, por onde se nada desse certo, ela não azedava, não se indignava, não recriminava, não se vingava ou se entristecia. Esta é bem a conduta da Santa Igreja com relação aos pecadores.

Os mil jeitinhos da Igreja Católica

Tomemos, por exemplo, o seguinte:

Arrebenta um cisma e surge a Igreja Ortodoxa. Aqueles ritos orientais muitos passam para lá e a metade do manto da Igreja se dilacera… A Igreja chora. Não deixou de excomungá-los como deveria: eles erraram, ela excomunga! Mas Ela lamenta isto dignamente, enquanto conquista a América para compensar também os países nórdicos e eslavos que em grande parte havia perdido. Ela conquista a América. Os jesuítas diziam que vieram para cá para repor o que a Igreja tinha perdido.

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Dr. Plinio em abril de 1980

Mas a Igreja não desiste, continua uma certa negociação com ramos ortodoxos que pensavam em reatar relações com ela. Isto leva séculos! E de lá para cá, devagarzinho, de vez em quando pinga mais um rito para dentro dela.

A Igreja recolhe desses tesouros esse pouquinho que fica, organiza, perdoa, tem bondade, dota de privilégios, indulgências, instala bem, cumula de honrarias a filha que volta à casa paterna. Ela não se esquece a não ser dos ultrajes recebidos. Pedindo perdão, ela perdoa.

Essa bondade, isso era mamãe a cem por cento, consonante com a Igreja Católica a mais não poder, mas a mais não poder!

Por exemplo as varas dos penitenciários em Roma. Quem tivesse cometido um pecado venial muito desagradável de contar, não precisava decliná-lo. Bastava ir à Basílica de São Pedro ou às quatro basílicas menores, ajoelhar-se diante do padre, que este lhe batia com uma varinha e estava dada a absolvição dos pecados sem confissão. Pecado venial; mortal não.

É uma bondade, uma flexibilidade única! Isto era mamãe por inteiro!

(Extraído de conferência de 20/6/1980)

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