Continuando a análise dos desenhos de Bécassine, Dr. Plinio ressalta a graça e o encanto de cada figura, elaborada de maneira a preparar a criança para a finura de espírito. É o contrário da educação moderna, que procura provocar o riso e excitar o espírito. Numa sociedade organizada, há lugar para cada pessoa: um traje para cada categoria, uma categoria para cada traje. Era a vitalidade do mundo até a Primeira Grande Guerra.
Vimos, na figura da marquesa de Grand-Air antes da Primeira Guerra Mundial, um estilo no qual os trajes serviam-lhe para manifestar sua nobreza e eram o fator e a expressão de suas ideias. Na moda posterior à Guerra, influenciada por Hollywood, nota-se um contraste que vulgarizou e ocultou a grandeza de sua pessoa.
A moda: expressão de uma mentalidade
Na cena, por exemplo, da Madame de Grand-Air em Paris recebendo vasos da Indochina. Seu traje denota o aristocratismo, a nobreza e as belas maneiras de uma marquesa, como também o distinto uniforme do almirante manifesta a dignidade, a educação e a alta categoria da carreira militar.
Já em outra cena vemos a Madame de Grand-Air depois da Primeira Guerra Mundial. Ela está num piquenique sendo ajudada por uma pessoa, provavelmente uma parente. Entretanto, aí é preciso fazer certo esforço para perceber a grandeza de sua pessoa. O traje a desserve. Tudo mudou: o corte, a cor e o estilo.
Em outro desenho está a Madame de Grand-Air em Versailles com a cozinheira. Ali, na redondeza do palácio, vivem pessoas aposentadas ou empobrecidas. A marquesa perdeu a fortuna e está morando numa casinha pequena. Ela está passeando. Vê-se uma das represas de Versailles, mais adiante um grupo de estátuas e a Bécassine.
O capotão da marquesa, de uma só cor, vai quase até os pés. O tipo de chapéu, tudo mais, dir-se-ia que é uma senhora qualquer que está andando pela rua. E muitos não teriam tanta surpresa se alguém dissesse ser uma parente da outra. Aliás, a cozinheira está trajada de modo um pouco mais conservador que a própria Madame de Grand-Air, vestida à moda do tempo.
No trem, Madame de Grand-Air com a Bécassine e uma criança da Bretanha, uma netinha adotiva chamada Loulotte, educada por caridade pela marquesa. Estão viajando num desses trens de cabine como há na Europa. No porte dela quase não se nota o grande ar tão ressaltado nas cenas anteriores, como, por exemplo, dela chegando para o batizado da Bécassine ou então no quadro pintado diante do qual a Bécassine fazia uma reverência.
Vitalidade e sabor da sociedade orgânica
É a festa dos camponeses por um casamento. Todos estão em traje regional bretão de trabalhadores manuais. Se compararmos essas roupas com as de um colono numa fazenda brasileira… Infelizmente, para nós, a comparação sequer vem ao espírito.
Há dois homens no alto de barris que lhes servem de estrado tocando aquela gaita de fole que o francês de Bretanha chama de biniú. É o instrumento regional dos bretões, que são celtas, e dos habitantes das ilhas britânicas, também com apreciável contingente de sangue céltico. Por isso até hoje é usado no exército da Inglaterra.
É muito interessante que eles estejam em cima dos barris que estão aí por economia. São tonéis de guardar vinho ordinário para ocasiões como essa. Eles não armam um palanquezinho, quadradinho, com dois ou três degraus, com corrimão e um pouquinho de flores, de verdura para dar um arzinho alegre, sem graça, banal. Não! Faz lembrar a festa de família, a vida quotidiana. Quanto mais alta é a classe, mais a vida de festa tem gala e difere da vida quotidiana; quanto mais baixa, menos se faz deferência. Entretanto, na festa plebeia se sente mais o sabor próprio da vida quotidiana, e é muito pitoresco estarem sobre os barris.
O primeiro dos camponeses puxa a fila da dança. É, o tio-avô da Bécassine, o tio Corentin. Olhem a inocência da dança! É fazer corre-corre em torno da música, mas com toda pressa.
O jeito do tio Corentin é uma versão plebeia de Monsieur de Grand-Air. Ele é de família de trabalhadores manuais, plebeu completamente. Mas, um homem com um pouquinho de largueza. Ele está vestido com o tipo de roupa exatamente como estava o Monsieur Larbonez. Ou seja, uma calça bouffant, meias que no calço não são pretas, mas brancas e tamancos grandes. Imaginem toda essa tamancada em cima do pedrisco, o barulho que deve fazer. Ele está com uma espécie de colete vermelho, uma jaqueta branca e um chapéu com duas fitas, semelhante ao de Monsieur Larbonez.
Ao lado, uma camponesa apresentada com um vestido muito mais fantasia. A touca usada é parecida com a da Bécassine. O vestido é feito de uma saia bem larga, rodada e com uma combinação de cores agradável entre o marrom-claro, quase bege, e o preto. Uma variedade bem estabelecida, ou seja, a faixa mais alta preta é mais fina do que a debaixo que tem uma largura igual ou um pouco maior que a outra. E a distância entre as faixas está calculada para haver certo equilíbrio, pois a faixa mais alta está numa distância menor da intermediária em relação à de baixo. Um faixão preto ficaria muito pesado e tendo uma zona intermediária clara há um equilíbrio muito mais agradável de olhar. A distância entre a mais alta e o início do busto forma uma distância elegante pelo tamanho. A distribuição de cores e de faixas nessa roupa, segundo o gosto francês, está sumamente bem calculada, inesperada e agradável, apesar de camponesa.
Mais atrás vem um homem, uma mulher, outro homem e assim até o fim, todos em trajes diferentes, mas obedecendo ao mesmo modelo. Eles mesmos estilizam os trajes, compram e fazem, pois essa categoria de pessoas não tem costureira, nem alfaiate. E tem muito mais originalidade. Exprime muito mais o bom gosto de uma, o mau gosto da outra, o temperamento, do que o comprar numa loja. E isso dá certo caráter pessoal produzindo esse resultado curioso. Cada um tem uma personalidade própria e transparece até no modo de pular, cada um pula de um jeito. Comparem isso com uma fila de pessoas esperando um ônibus. Facilmente nota-se a diferença.
Há certas coisas que é preciso compreender para amar. E para poder amar o povo de antigamente é preciso antes compreendê-lo, pois certas coisas têm sabor mais forte nele do que na classe alta. Esta tem suas magnificências e sua beleza, mas o povo tem mais sabor. É mais ou menos como comida popular. Ela pode ser muito menos raffinée em relação à comida fina, mas tem um lado gostoso próprio. Por exemplo, três pratos brasileiros: feijoada, vatapá e cuscuz. É um gosto forte, mas sente-se mais vivo e animado, muito mais do que uma simples injeção de vitaminas. O popular tem vitalidade, e esta vida dá o sabor da sociedade orgânica.
Duas famílias, duas mentalidades
Outra cena: duas senhoras levando duas crianças para batizá-las na igreja. Por ser uma cidadezinha sem trânsito – pois os automóveis eram insignificantes antes da Primeira Guerra Mundial –, faz-se cortejo, e dois tocadores de biniú vão à frente para festejar o acontecimento das crianças serem batizadas e introduzidas na Igreja Católica. Atrás está a irmã, ou prima da Madame Larbonez, com a Bécassine pequenininha, e a Madame Quillouch, com a prima de Bécassine, a Marie Quillouch.
Tudo muito finamente estudado no livro, que apesar de ser para criança, é um gênero de graça para preparar para a finura de espírito e não para a chanchada.
Já comentamos o papel de Bécassine que representa a burrice bonachona e inocente.
Qual o papel de Quillouch?
O casal Quillouch é representado como ácido, briguento: marido e mulher brigam entre si, a filha é vesga, com o nariz pontudo e mal-humorada e todos têm uma visão vesga da vida. É uma família neurastênica: não vê pouco, mas torto! A família da Bécassine, pelo contrário, é bonachona e tem uma visão um pouco abobalhada da vida. Então seria a família bonachona e a família neurastênica. Isso transparece no modo de andar das duas mães e também dos maridos.
Madame Larbonez está olhando com bondade para o lado. A Madame Quillouch está olhando para a frente com um ar pensativo e aborrecido. O avental dela é parecido com a saia da camponesa contemplada há pouco, mas tem uma só barra porque os neurastênicos não gostam das combinações muito harmoniosas, leves e pensadas. Faz um aventalzão, põe uma barra grossa e está feita. O simplismo faz parte da neurastenia.
Atrás da Madame Larbonez vai o Monsieur Larbonez e o Monsieur Quillouch. Ambos vão saudando, tirando o chapéu às pessoas que os conhecem e estão no caminho. Eles recebem o cumprimento do carteiro. Numa sociedade organizada, há lugar para cada pessoa e a tendência – nesse período muito menos, mas, na Idade Média muito, no Ancien Régime ainda mais – era o seguinte: um traje para cada categoria, uma categoria para cada traje.
Por exemplo, o carteiro tinha um traje próprio que o caracterizava. Era azul-claro com essa espécie de polaina e o quepezinho. Assim se vestiam os carteiros de serviço postal do Estado, portando a pasta com a correspondência de Clocher-les-Bécasses. E depois segue o cortejo até o fim, acompanhado pelos bichos atrás onde percebe-se algo oposto a certos sistemas de educação moderna para criança.
É natural apresentar à criança coisas que a distraiam e a convidem ao riso. É um dos aspectos da educação e faz parte do ambiente onde ela deve ser formada. O mundo moderno criou, no Brasil, talvez também em outros países da América do Sul, hábitos não bons de despertar o riso na criança. Ou é levada por uma gargalhada diante de uma piada ou brincam e agitam-na para ela se divertir. São maneiras que excitam e não desenvolve a atenção e a inteligência.
Aqui a criança não é levada a dar uma gargalha, mas a sorrir vendo esses bichos…; porque é cômica a ideia do bicho acompanhando o cortejo, como uma espécie de fidelidade do animal bem tratado para com seu dono. A criança olha longamente e percebe uma certa ordem nisso. Todos os personagens despertam sorriso, distraem calmamente a criança e a comprazem, sem ser piada nem algo do gênero.
Conheci um único caso de uma pessoa que não sabia como fazer a criança rir e, então, fazia cócegas. A criança ria tanto a ponto de pedir para parar, pois estava começando a doer. E a pessoa ainda continuava. Acho isso detestável. Uma vez ou outra para brincar um pouco, sim. Mas, como esse sistema de educação é diferente disso aqui!
A modernidade: uma revolução
Aqui é uma casa na Bretanha. Uma cena da vida do povinho numa cidadezinha como é Clocher-les-Bécasses.
É um centro comercial numa zona rural abastada, mas não rica. Tem a torre da matriz. Tem polícia, médico, farmácia, correio, papelaria, uma ou outra lojinha de tecido e, conforme o tamanho do lugar, haverá um juiz da paz para pôr um pouco de ordem, e um destacamento com dois ou três soldados. Isso não dá vida propriamente ao lugar. O que dá vida é a feira, a praça aonde todo mundo se reúne. De vez em quando há alguns comerciantes vindos de longe, com artigos pouco vendidos na zona e que não compensam ter nas lojas. Um comerciante ambulante sempre percorre as feiras de várias cidades vendendo esses produtos e, por isso também, as pessoas frequentam-na.
Eles compram e vendem uns para os outros as mercadorias. Quem cria pato o vende para quem cria carneiro, quem cria carneiro vende para quem planta linho, e, assim por diante, fazem o seu intercomércio regional. É um resto de comércio fechado, no qual eles vão em trajes de camponeses, reúnem-se na conversa e na desordem porque eles não têm pressa e estão ali em parte para fazer compra, em parte para se divertir, ou para fazer política, pois a cidadezinha tem seu conselho municipal e fica bonito ser prefeito ou vereador. Sendo eletivo, aqueles que são ou querem ser se encontram e fazem pequenas atenções ora para um, ora para outro.
É também a oportunidade dos rapazes e das moças se conhecerem em vista ao matrimônio. Não é ocasião para se desatar em casamentos, porque este era um ambiente ainda muito puro e muito bem formado. De maneira que não havia imoralidade. Está bem apresentado o modo no qual a multidão se dispõe na praça, as conversas, os trajes.
A figura de um cachorro que está caminhando entre as pessoas, um outro propagandista característico, sem o alto-falante, mas com um tambor e que grita, anunciando um produto, e recebendo algo para esse trabalho. Há também um velho que não faz nada durante a semana, mas nos dias de feira é uma notabilidade, toma certo ar de importância. As atenções estão voltadas para ele.
Próximo se encontra uma menina da cidade trajada como se vestiria a neta da Madame de Grand-Air, a la moda de cidade e que está espantada, olhando tudo como se fosse outro mundo. Esse mundinho já era assim no tempo de Luís XVI, antes da Revolução Francesa. Os camponeses que ouviam as pregações de São Luís Grignion de Montfort nessa região usavam esses trajes e as feiras eram assim. É, portanto, o mundo bem de antigamente que continuava até a Primeira Guerra Mundial com a mesma vitalidade.
Interessante notar que a Bretanha e a Vendée foram as duas regiões de onde nasceu a Chouannerie e, portanto, da reação contra o caráter ateu da Revolução Francesa e por consequência, contra o caráter republicano da Revolução.
Napoleão, depois de terminar o julgamento dos chouans pelas guerras de revolução, quis pacificar esta zona mandando abrir uma estrada cortando a Vendée. Naquele tempo as autoestradas representavam um progresso enorme. Todo o comércio exportado para a Inglaterra passava por lá, e, assim, o mundo moderno transitaria por aquela região. Com isso ele colocou um sopro de ateísmo e igualitarismo ali, e somente as pequenas cidades vandeanas conservaram os trajes e a mentalidade de antigamente. Nas grandes cidades já havia entrado completamente a indumentária moderna. De tal maneira é verdade que modernizar é revolucionar.
(Extraído de conferência de 16/5/1980