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Companheira em todas as idades

O estado de graça e a prática da virtude conferem ao homem uma alegria profunda e insuperável. Na inocência primaveril ela afaga e alcandora seu interior; oculta-se sob os véus amargos das lutas próprias à maturidade e, ao atingir a ancianidade, a alma inebria-se com o aroma de sua grandeza perpetuada pelas reminiscências de suas cintilações passadas.

Apesar do possível contentamento de alma, paz e gozo, não são as delícias que impulsionam a prática desta ou daquela virtude.

Mais do que a prática da virtude, a posse do estado de graça é o que dá maior alegria

Há um provérbio alemão que afirma: “Ein gutes Gewissen ist ein sanftes Ruhekissen – Uma boa consciência é um travesseiro macio!”

É um modo popular germânico de exprimir a alegria outorgada pela reta consciência na hora do repouso. A pessoa está tranquila, vai deitar-se e, no instante em que as perturbações começam a subir e a galopar na cabeça, pensa: “Não, não tenho nada a me repreender, minha consciência está em paz. Vou dormir!” É um travesseiro inegavelmente macio.

Enquanto também é patente ser o remorso algo horroroso para quem cometeu um pecado: “Como é? Eu não deveria ter feito o que fiz. E agora? Não tenho coragem de deixar o pecado, mas preciso deixá-lo. Se eu morrer…” É o aguilhão que atormenta.

Arquivo Revista
Fräulein Mathilde com Plinio, Ilka e Rosée

Independente do júbilo oferecido pela justa conduta exercida, nos confere satisfação a condição geral virtuosa. Isto é, de modo genérico, a posse do estado de graça, a limpeza interior.

Os prazeres santos gozados pelo inocente

Ainda menino, passando da pueridade para a adolescência, analisei o regozijo proporcionado à alma, a qual, estando em graça, gozava da amizade de Deus, e fiz esse cômputo acima descrito. Nessa fase notava o seguinte:

Havia prazeres da vida calmos, que não traziam consigo nenhuma inquietude, nenhuma aflição, e, por outro lado, eram intensos. Esses deleites plácidos e veementes eram, em geral, os de alguém se entretendo com algo lícito e que, de si, esse alguém também não estava em estado de pecado. Isso explica a razão de serem vigorosos os sentimentos aprazíveis usufruídos.

Por exemplo, era costume na minha infância, tendo cumprido meus deveres durante a semana, no sábado à tarde dispor do direito de dar um passeio com a Fräulein e os meus primos pelo bairro. Nesse dia, jantávamos mais cedo e saíamos.

Lembro-me de como outrora era pacata a Alameda Barão de Limeira. A São Paulo daquela época possuía uma luminosidade natural bonita, superior à atual.

À tarde, próximo às seis horas, quando o Sol ainda não havia se posto, via-se um pôr do sol extraordinário, com raios esplendorosos, os quais já não queimavam mais. Aliás, ao meu ver, essa é uma condição fundamental para qualquer vizinhança com ele.

A cidade era arborizada, e as árvores me pareciam altas. Hoje vejo que são umas árvores tortas, mal crescidas e baixas; porém, naquele tempo, sendo pequeno, me figuravam grandes. O sol entrava através de uma espécie de neblina, a essa hora vespertina. Não era propriamente névoa, mas algo à maneira de uma poeira dourada.

Todas as casas apresentavam bonitos jardins, com flores e plantas. Eram bastante arranjadas, revelando a fartura e a ordenação, a dignidade de viver.

Transitando pelas ruas, cumprimentávamos de longe, com amabilidade, os conhecidos; depois, continuávamos o caminho.

Voltando para casa, à noitinha, Dona Lucilia contava uma história antes de nos recolhermos. Em seguida íamos dormir.

Nessas ocasiões, várias vezes me vinha ao espírito: “Cumpri bem as minhas obrigações, estou em ordem com a Lei de Deus, com o querer de minha mãe, com os imperativos da Fräulein e sinto a pureza de minha consciência, em especial, a leveza que parece tomar meu próprio corpo. Experimento a exultação de meu ser e vejo-me mais sereno, com mais bem-estar. Seria diferente se tivesse algum remorso contra mim.”

Essa sensação afável espargia sobre a alma qualquer coisa análoga ao sol em uma paisagem. Nesse fe nômeno, o que acontece? Nenhum objeto muda de lugar, nada se acrescenta ou remove do panorama. Apenas ocorre este fato: pousa a luz.

Boschfoto (CC3.0)
Castelo de Berg, Starnberg, Baviera

Divulgação (CC3.0)
Duque Alberto da Baviera

O quadro de minha vida parecia-me luminoso.

Tinha a impressão – aliás, fundada – de que esse contentamento era posto por Deus em meu íntimo para premiar minha boa conduta.

Conjugação do gozo terreno com o celeste

Muito provável, outras pessoas também experimentaram em sua meninice esse gáudio peculiar. Ele é a alegria da virtude.

Consideremos ser ele um misto de elementos terrenos e celestes.

Quais eram os elementos terrenos?

“Está tudo ordenado, não haverá amolação, o que acontecerá comigo é, com moderação, agradável, sem excitação nem bagunça e apreensões, não incorrerá em torcida. Estou na minha calma”.

Entretanto havia o momento celeste, o qual era essa graça, que fazia-me sentir um gozo por cima deste, do qual o primeiro não era senão símbolo. Portanto, um símbolo e algo que exprimia mais sobrenaturalmente o simbolizado, isto dava-me a alegria da virtude.

Constante luta contra si mesmo

Transcorridos os anos, surgiram as lutas. Elas fizeram cessar essa alegria? Não. Inclusive aumentaram-na. Todavia, sob certo ponto de vista, a empanaram. Em qual sentido?

Um homem previdente é obrigado, dia e noite, nas ocasiões de solidão, quando não está rezando, estar pensando em seu combate. Sobretudo com o olho colado em cima do adversário, antevendo, imaginando, procurando por onde e como vai pegá-lo.

E o nosso rival é universal. Quem é ele?

Em primeiro lugar são as legiões que atentam contra a Igreja Católica, os demônios e seus agentes.

A seguir, somos nós mesmos. Ou seja, dentro de cada ser humano mora seu pior inimigo. Enquanto estou agindo devo estar prestando atenção em mim, para não ceder em nada a um movimento pernicioso que possa aparecer no meu interior. Isso será assim até o fim da vida. Seja qual for a idade em que ela termine, na velhice avançada como a de minha mãe, ou na menos carregada de anos na qual estou, pouco importa, independente da data a qual Nossa Senhora queira pôr termo a ela, até o último instante serei assediado por tentações e defeitos. Isso acontece com toda criatura humana.

Assim sendo, sempre vigiar-me-ei, do contrário, abrirei a porta. E, em consequência, não posso estranhar que o adversário entre.

Esforço por tornar o espírito beligerante

Somos, por conseguinte, nossos próprios antagonistas. Pois na alma de cada um há um lado bom e outro ruim, os quais estão em constante movimentação.

Nicola Perscheid (CC3.0)
General Hindenburg

Com isso, conduzimos um combate permanente, uma batalha corpo a corpo, para favorecer o lado bom.

Por exemplo, realizando uma conferência observo os interlocutores e vejo esse lado bom brilhar em determinado ponto; concluo: “Vou tocar por aqui, pois irá fazer bem para a maior parte deles.” Ou então, ao perceber o oposto, presumo: “Cuidado! É preciso jogar uma pedra dentro desta fauce!”

No entanto, isso só pode ser factível, mediante uma condição: agir dessa maneira o dia inteiro. Ocupar-se em coisas agradáveis e sonhar com elas é tão mais atraente que não se aguenta essa posição de luta contínua. Ou esforço-me por torná-la um segundo hábito, ou não a suportarei.

Despreocupações da infância inadmissíveis na maturidade

Desse modo, aquelas despreocupações de outrora com as quais passeava pela Alameda Barão de Limeira, pelo Largo dos Guaianazes, conversava, brincava e voltando para casa, pensava: “Daqui a pouco conversarei com mamãe, ela vai contar-me uma história, e vou dormir”. E imaginava como seria ao deitar-me, os grilos do terreno vizinho cantando “prim! prim! prim!…”, eu na minha cama, achando-a gostosa, e depois de ter rezado, adormecer agradavelmente. Tudo isso eu saboreava, averiguava e previa.

Atualmente isso não pode mais ser assim. Acabou! Devo estar à espreita ininterrupta do adversário.

“Otium cum dignitate”

Diante dessa postura, qual é a alegria? O que resta dela?

Eu me lembro de uma reflexão que fiz estando na Alemanha, a caminho do Castelo de Berg1, pertencente ao Duque Alberto da Baviera2, o qual havia me convidado para passar uma temporada com ele.

As cidades alemãs, e europeias em geral, não acabam como as nossas no Brasil. Elas se dissolvem em matos, e casas, como a Cantareira de algum tempo atrás. Vão se diluindo em jardins cada vez maiores, matos mais extensos, em certo momento, percebendo com atenção, acabou a cidade.

O bairro ao qual eu estava atravessando era plutôt3 pobre. Eu ia andando e, vendo aquela calma, me veio à mente o seguinte:

Eu sabia que o General Hindenburg4 era bávaro. E eu estava percorrendo os campos da Baviera. Ao ver uma casa confortável, me interroguei: “Como seria o Hindenburg morando em uma casa dessas? Uma fama mundial, sossego, repouso, afinal, despreocupação: ‘Eu sou o grande Hindenburg!’”.

É uma alta situação.

Quando os romanos se referiam ao estilo cômodo de viver, diziam: “Otium cum dignitate – O ócio com dignidade”. O indivíduo levar uma vida sem fazer nada, e com honra, respeitado, considerado, parece a fórmula.

Alegria em meio à vida dura de combates

Olhei para aquela tranquilidade cogitando como um Hindenburg contemplaria as árvores, e aquilo tudo, como seria o “otium cum dignitate” alemão, no fundo, como seria a Alemanha. Fazendo essa análise, me veio ao espírito a reflexão: “Está bem, mas o Hindenburg não tendo aflição nenhuma, sentiria muitas saudades do tempo no qual, vergando de preocupação, ele conduzia a guerra. Durante esta ele ponderaria: ‘Se eu ganhar essa bagunça, que boa paz terei’. E estando na paz, se recordaria: ‘Como era bela a minha guerra’.”

Na quietude, ele teria uma alegria perceptível. Enquanto no período dos embates, não, porém ao acabar ele a notaria; e também seria verdadeira. E tão grande, que, cercado de tudo quanto a placidez pode dar, ele se lamentaria: “Oh, a minha guerra! Por que haveria de cessar?”

Por esta razão, até as dores, as preocupações, as noites passadas em claro, as incertezas, as más notícias, as atrapalhações e tudo o mais, lhe traria nostalgia, porque ele tinha uma alegria, a qual era de fundo de alma e insensível ao homem. Contudo, é tão real, que perdendo-a, fica-se com uma saudade irreparável.

Apesar da vida cômoda, saudades das incertezas de outrora

Então veio-me à ideia o lobo do mar inglês, dos séculos XVII, XVIII.

Imaginemos, por exemplo. Ele torna-se célebre, ganha dinheiro – pois os lobos do mar não eram modelos de desinteresse… – fica riquinho. Afinal, sente-se velho e vai morar em um porto qualquer da Inglaterra, onde tem um cottage5 e todas as coisas que fazem a felicidade inglesa. À noite vai ao botequim ou ao barzinho do lugar conversar com outros. Por ser a aldeia natal dele, se encontra com parentes e amigos de infância. Conta suas histórias com vagar, frui a consideração e amizade dos seus, aprecia o aconchego e segurança para o dia seguinte.

Podemos conceber esse homem voltando à noite sozinho para casa, às tantas enxuga uma lágrima: “Como é isso? Ah, se eu pudesse tomar o navio e enfrentar as incertezas… que respiração!” É natural.

Arquivo Revista
Dr. Plinio em 1984

Após um passado de lutas, pesar por uma felicidade findada

Todos nós somos e devemos ser marechais e lobos do mar. Conduzimos, pela Rainha do Céu e da Terra um combate tremendo. Chegará um dia no qual, envelhecidos, deixaremos a luta. Ao nos reunirmos, lembraremos desse passado árduo, e, deitando nosso olhar com pena sobre os mais novos daquele instante, diremos: “Vocês não sabem nada! Essa é uma felicidade não provada na dureza da batalha. Contudo, transcorrido o tempo, veremos a falta que faz.”

(Extraído de conferência de 17/5/1984)

1) Em Starnberg, Baviera.

2) Alberto Leopoldo Fernando Miguel (*3/5/1905 – †8 /7/1996), Duque da Baviera, da Francônia e Suábia, Conde Palatino do Reno.

3) Do francês: mais bem, mais de preferência, ou antes.

4) Paul Ludwig Hans Anton von Beneckendorff und von Hindenburg (*1847 – †1934). Comandou o Exército Imperial Alemão durante a Primeira Guerra Mundial.

5) Do inglês: casa de campo.

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