A catolicidade de Dona Lucilia e de Dr. Plinio estabelecia entre eles um relacionamento como que de espelhos paralelos, cada um refletindo o outro ao infinito, criando assim um afeto, uma interpenetração de almas e uma afinidade contrarrevolucionária profunda entre ambos.
Entre Dona Lucilia e mim se dava o seguinte: era-me de um grande conforto e alento lembrar-me de que a linda alma dela estava sempre em minha presença. Ou seja, ela fazia parte do conjunto de pessoas com as quais eu convivia intimamente, e a quem eu podia, portanto, apreciar, conhecer e admirar de perto, e isso me dava muita alegria, muita satisfação.
A par disso, dentro do isolamento em que eu vivia, confortava-me a bondade e o amor materno dela, que era muito mais do que o amor materno corrente – sentimento naturalmente muito respeitável e digno de consideração –, mas entre nós havia algo muito particular.
Afinidade contrarrevolucionária entre mãe e filho
Tudo isso, entretanto, era pouco em relação à convicção de sua posição de alma contrarrevolucionária. Ma mãe era muito boa, o convívio com ela era muito agradável, mas se ela fosse “hollywoodiana” tudo isso se evanesceria completamente, deixaria de existir.
Diante da transformação, inerente à Revolução Industrial, pela qual São Paulo passava, para mim o importante foi que mamãe, por exemplo, vivia de tal maneira dentro de casa e com pouco conhecimento dos acontecimentos gerais, que eu nem sei se ela fazia uma ideia exata do tamanho da industrialização, e de até que ponto esse lobo ia devorando a cidade onde ela vivia.
O certo é que todas as transformações que o cinema e a Revolução Industrial vinham trazendo, batiam nela como o sol pode incidir sobre um escudo de metal. Ou seja, não produziam nenhum efeito. O que ela percebia e não gostava, rejeitava. Isso produzia uma afinidade comigo, uma interpenetração de almas que era o melhor dessa relação.
Havia no topo de tudo isso uma catolicidade muito entranhada, e um conhecimento mútuo da catolicidade do outro, seus graus e seus alcances. Isso, de um e de outro, formava um relacionamento como que de espelhos paralelos, por onde não se sabe qual foi o primeiro espelho que refletiu no outro, formando um reflexo de imagens ao infinito. Assim éramos nós. Cada um refletindo o outro ao infinito, nesse amor filial de minha parte, materno dela, criando um afeto e uma afinidade de que dificilmente se pode ter ideia.
Catolicidade firme e pugnaz
O ambiente da casa de minha avó tinha uma nota contrarrevolucionária. Porém, muitos ali aderiram à Revolução completamente, saindo assim discussões amáveis e corteses que, apesar de terminarem sempre em gentilezas, eram acesas. Versavam a respeito de República e Monarquia, Religião Católica e ateísmo, entre outros temas.
Eu ouvia essas discussões e percebia que a minha alma se voltava para o lado da Religião e da Monarquia. Percebia que entre elas havia uma certa relação: quem era católico seriamente tendia a ser monarquista e vice-versa; e quem era republicano era ateu, e vice-versa. Eu não sabia explicar por quê, mas sentia que assim se devia ser. Então, ali comecei a ver as grandes divisões ideológicas dentro do mundo.
Qual a atitude de Dona Lucilia nesses momentos? Sumamente amável, mamãe gostava de ser delicada, gentil e cortês com todo mundo, sem nenhuma exceção. Ela era de uma calma excepcional, muito ponderada e refletida. Tudo quanto dizia era muito meditado e tinha uma razão para dar a respeito de tudo o que fazia. Ademais, possuía um timbre de voz suave, mas muito expressivo, modelando a voz de maneira a traduzir com exatidão o seu pensamento, seu estado de espírito e a sua disposição temperamental no momento.
Essa disposição era sempre de uma fidelidade completa ao estado de espírito ideal, do bom católico, devoto do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, transparecendo aos olhos dos outros aquela serenidade e seriedade, mas também aquela bondade e paciência inquebrantáveis.
Entretanto, uma pessoa assim toda feita de doçura, por alguns lados era de aço. O que ela pensava, pensava; as convicções dela eram aquelas e não outras; declarava-as quando era necessário e discutia de um modo muito suave, mas firme, quando era preciso também.
Às vezes, Dona Lucilia discutia com parentes homens que tinham muito mais cultura histórica do que ela – naquele tempo, as senhoras liam livros de Literatura e não de História –, e esses parentes davam argumentos que ela não sabia responder. Mas mamãe não se perturbava absolutamente com isso. Aquele argumento esbarrava nas portas invioláveis da Fé dela. Se aquilo era contra a Fé, não servia, estava acabado! Por que é contra a Fé? Porque a Igreja ensina outra coisa. Não adianta entrar com conversa!
E assim ela me educou.
Agudo discernimento
Na intimidade, Dona Lucilia era igual. Meu pai era advogado e tinha seu próprio escritório de advocacia. Ele costumava contar para minha mãe, mais ou menos, os negócios que fazia, os cálculos, etc., como todo marido, em casa, conta algo de suas atividades profissionais à família. Mamãe opinava, ora sobre uma coisa, ora sobre outra, mas pouco, porque esses assuntos de advocacia são muito técnicos, e ele não os explicava inteiros, é algo evidente, não teria propósito.
Minha mãe emitia opinião, sobretudo, a respeito das pessoas, porque de vez em quando algum sócio ou cliente do escritório ia em casa para despachar com meu pai. Eu percebia como ela prestava atenção neles, porque a acolhida dela era sempre cortês, mas conforme o caso, bem mais amável. Lembro-me de duas senhoras que, remotissimamente, eram aparentadas com ela e foram lá para fazer alguma consulta. Mamãe foi amável, conversou um pouquinho e depois saiu da sala, pois elas iam tratar de negócios.
Dessa forma, minha mãe ficou conhecendo outras pessoas. E eu percebia que, dentro da amabilidade, ela era interrogativa, colhia dados e, depois, comentava as pessoas com meu pai.
Em geral, pelo menos no Brasil daquele tempo, onde não havia ainda feminismo, os homens se caracterizavam pelo vigor da vontade e as senhoras pela delicadeza. Mas a defesa delas estava na sensibilidade, percebendo as coisas. De maneira que, quando as esposas estavam sozinhas com os esposos, elas lhes davam conselhos. Não diante dos outros, porque teoricamente o marido é quem manda, a mulher influencia.
Dona Lucilia, então, dava sua opinião, nunca com ar de quem quisesse mandar, mas por aí eu percebia como ela pegava as coisas, apanhava os matizes do fundo de alma e, depois, dizia para meu pai: “Fulano quando esteve aqui e disse tal coisa, ele fez tal cara assim. Tome cuidado porque tal coisa ele não gosta, tal outra ele gosta; ele está contente com você mais do que você pensa”, ou então: “Ele não está contente com você”. Estou certo de que ela tinha razão.
(Extraído de conferências de 29/6/1981, 25/8/1994 e 3/4/1995)