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Esplendor e declínio retratados num álbum

Ao analisar as figuras de Pinchon, Dr. Plinio descreve a personalidade e a vitalidade da plebe, a dignidade e o brilho da classe alta, ressaltando o mútuo afeto entre ambas. Sociedade cheia de esplendor, mas cuja decadência se faz notar no minguamento das personalidades.

Uma das ilustrações representa Bécassine em um banquete no País Basco.

O papel do povo, pulmão da sociedade

O País Basco é bem diferente da Bretanha. Encostado nos Pirineus, é a parte francesa da antiga Navarra, que ficava nas duas vertentes dessa cordilheira; cortada pelas montanhas, uma parte se incorporou – ou foi incorporada – à Espanha e a outra à França.

Até hoje o regionalismo na Europa é tão vivo que há separatistas na Espanha e na França, bascos e navarros, que queriam separar-se de seus respectivos países, para constituir um país independente.

Lembro-me de que, fazendo barba no meu quarto no Hotel Regina, olhei para o barbeiro e achei que não era um francês clássico. Perguntei-lhe, então, de onde era. Ele respondeu:

– Je suis basque, monsieur1!

Eu disse para ver a reação dele:

– Donc, français2!

Ele retrucou:

– Pas du tout français3! Eu sou basco e separatista!

Essa figura é de uma refeição de uma minúscula burguesia tendente para a plebe. Essas famílias são divididas entre trabalhadores manuais e outros que não o são, e estão sentados em bancos improvisados ao longo de enormes mesas, servidas por garçons. É interessante a jovialidade e a individualidade popular.

Ilustrações: J. Pinchon

Pinchon, insisto em dizer, é fenomenal. Ele apresenta cada um com uma personalidade própria, que se vê até de costas. Por exemplo, o jeitão imponente de um que domina a situação, bate na mesa, manda ficar quieto, reclama com outro por não comer depressa, tira o prato do outro… É uma espécie de diretor de trânsito do almoço, complicado por causa do excesso de vitalidade do pessoal.

Um dos personagens, a julgar pelo gorro, é o cozinheiro, e o pessoal provavelmente está aclamando-o porque a comida está muito boa. Mas, poderia ser também para reclamar que está ruim, pois o cozinheiro faz parte da história e é vaiado ou aplaudido conforme as coisas se passam.

Ilustrações: J. Pinchon

As reações são todas grossonas e plebeias, mas de uma saúde, de uma vitalidade sem excitação, e de uma jovialidade que apresenta a imagem de um povo pobre, inteligente, bem nutrido e sem pretensões; alegre, toma a vida como ela é e se diverte. É a imagem perfeita da classe social mais modesta no que ela tem de pitoresco. De pitoresco, digo pouco, de indispensável!

Sobre a verdadeira rudeza – que não se deve confundir com o proletarismo mecanizado da era industrial, que é uma coisa completamente diferente –, é uma espécie de húmus vital, do qual provém a vitalidade para toda a sociedade. E deve haver uma classe que se exprima de um modo grosseiro, fale alto, pise firme e represente esse aspecto tumultuoso. Se todo mundo fosse muito educado, bem arranjado e imaginássemos uma cidade onde só houvesse marquesas de Grand-Air, a cidade seria irrespirável.

Ilustrações: J. Pinchon

Algo da vitalidade da classe alta vem da classe baixa, que transmite exatamente isso pelo que ela tem de desinibido, de livre. Parece uma bandeira ao vento, na estrada, com poeira, com tudo, mas flutuando e tremulando, indispensável para a vida de sociedade; enquanto a classe alta parece uma bandeira guardada em vitrine muito límpida, muito bem arranjada e pendurada melancolicamente ao longo do fuste. É uma outra coisa, mas indispensável para a vida de sociedade. É vital que exista uma classe assim. Exatamente a proletarização moderna não faz isso.

Às vezes vejo passarem trens de subúrbio e procuro olhar para dentro para analisar o ambiente e o convívio ali existentes.

Alguém poderia dizer: “Por que o senhor não pergunta, em vez de olhar? O senhor teria muito melhores informações!”

Ilustrações: J. Pinchon

A arte de descrever foi morrendo e eu não tenho certeza de que encontraria boas descrições. Entretanto, a descrição saborosa faz parte da degustação da vida. Mas como não conto com uma equipe de descritores muito numerosa, procuro analisar, eu mesmo, o que se passa no interior desses trens.

Vejo, então, o trem sujo por dentro, mal iluminado, com pessoas tristes, sem qualquer expressão de personalidade, sem nenhuma cordialidade uma com a outra, sem sequer terem o que conversar, e cada qual sentado no seu canto, enquanto o trem vai a toda pressa, ejetando gente à la spray pelos caminhos.

Não é a atmosfera do banquete de Becassine, em que cada um é cada um, alguém é alguém, cada um tem tempo para dizer o que quer, para se divertir. Ninguém está pensando no dia de amanhã, nem no imposto que vai vencer, na consulta do médico porque tem uma dúvida se está com câncer ou não. Todos têm saúde, todos estão comendo de rachar. Eles não aprenderam a fazer regime, não têm problema de tensão arterial. Morrem de repente de derrame, mas esta é outra questão… A vida deles é desembaraçada. É o papel do povo, é o pulmão da sociedade. Que belo e grande papel!

Ilustrações: J. Pinchon

Afeto mútuo na desigualdade social

Há outra cena muito interessante. É já depois da guerra. A roupa de casa ainda é menos simplória do que a de rua, mas é monocolor. Madame de Grand-Air provavelmente vai viajar e está fazendo recomendações à criadagem. Ela mora sozinha num apartamento com Bécassine, já então moça, e com a Loulotte, uma criança, e está despedindo os empregados porque ficou pobre e vai se mudar para Versailles. Olhem a criadagem que possuía!

Notem como cada função tem um traje próprio. Há um sommelier que cuida dos vinhos. Outro atende a porta da rua, conduz a pessoa até a sala, enfim, recebe as visitas como empregado. Está aí o copeiro Hilarion, que recitava versos; a história dele é muito pitoresca.

As outras são empregadas, criadas de quarto, estão vestidas do mesmo modo. Há um chofer, um cozinheiro, uma faxineira e os empregados de porão, jardim e garagem.

De tal maneira cada um é ligado ao traje de sua função que eles comparecem diante de Madame de Grand-Air, quando o traje comporta, com o respectivo quepe. O cozinheiro com o seu gorrão.

Quase todas as pessoas nessa fila, que estão atingindo certa idade, são gordas. Inclusive a mais moça dentre as velhas já está engordando. A mais jovem de todas ainda não engordou. A mais idosa já engordou de uma vez. A tendência para a obesidade vem do fato de esse povo viver com fartura e comer bastante.

A cena tem algo de patético. Todos estão consternados porque Madame de Grand-Air está dizendo adeus, e todos são empregados da família há muitos e muitos anos. Eles vão ficar desempregados, mas não é este o medo deles, pois não havia desemprego e esse gênero de gente sempre conseguia boas colocações. Ainda mais embalados pela Marquesa de Grand-Air, da qual se conhecia muito o estilo. E todos eles levavam documentos de recomendação da marquesa. Portanto, não é esse o problema, mas a tristeza da separação.

Vejam, apesar da desigualdade, todo o afeto mútuo. A marquesa explica para eles que ela empobreceu, não pode mais pagá-los e eles não podem viver sem os ordenados. Ela vai conservar uma ou duas empregadas e mais nada. Então, ela está fazendo as despedidas com dignidade e tristeza, mas muita afabilidade. Todos estão consternados. Não causaria surpresa que uma dessas empregadas começasse a chorar ou que uma lágrima rolasse dos olhos do gordo cozinheiro.

Imaginem o brilho de uma vida de casa com essa criadagem toda circulando de um lado para outro, com esses trajes. E o modo de a Madame de Grand-Air dar uma ordem a eles… Era como uma quintessência, e eles serviam com quanta dedicação!

Na Baronesa de Bonaccueil, a decadência

Outra ilustração apresenta Madame de Grand-Air visitando uma parenta, a Baronesa de Bonaccueil, a “Baronesa da Boa Acolhida”, no “Castelo da Boa Acolhida”.

Ilustrações: J. Pinchon

É um terraço com móveis apropriados, de uma pintura alegre, tingidos de vermelho. Como muito frequentemente aparece na Bécassine, um cachorro com o rabo aparado, como se usava. Um copeiro do gênero da criadagem da Madame de Grand-Air, e depois a construção, já meio atinente ao castelo. Há uma torre e, em frente, uma outra parte do castelo, o qual se vê melhor. Não é propriamente castelo, mas é o chamado manoir4, ou seja, uma casa nobre semifortificada, com algumas torres para resistir a um cerco ligeiro. Mas, não é propriamente um castelo, é uma residência nobre. A Madame de Grand-Air está conversando com uma prima.

Nota-se uma atitude bem característica desse tempo: duas senhoras conversando e um homem lendo jornal. As senhoras liam pouco o jornal e os homens não entravam muito em conversa de senhoras. Então eles tinham convívio, mas cada um a seu modo. Não era a separação dos sexos, que nem teria razão de ser na suavidade da Civilização Cristã, mas a distinção muito nítida e muito definida entre eles.

O velho lembra um pouco, pelo todo e pelo traje, o Marquês de Grand-Air que, de fato, desaparece de cena; creio que morrera antes. E a Marquesa é bem mais velha que a Baronesa de Bonaccueil que toma assim um ar de sobrinha reverente.

Que diferença! É outra geração! A Baronesa de Bonaccueil não tem nada da grandeza da Marquesa de Grand-Air! É uma baronesa, ela tem o castelo, mas a pessoa minguou. E é claro que os filhos dela vão ser menos do que ela.

Então, pode-se mais uma vez medir a decadência. Isto é, de um lado, um álbum do esplendor, mas, de outro lado, um álbum da decadência da sociedade.

(Extraído de conferência de 16/5/1980)

1) Eu sou basco, senhor!

2) Então, francês!

3) De forma alguma francês!

4) Mansão.

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