sábado, septiembre 21, 2024

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Suaves alegrias nascidas da dor, prelúdios dos gozos celestes

A vida de todo homem é carregada de dores, dificuldades, sofrimentos. A Divina Providência, no entanto, dispôs que mesmo nos dramas o homem encontrasse razões de felicidade como meios de subsistência, como prenúncio da Visão Beatífica.

A coexistência de um modo de gozar a vida sem nenhuma dor, e de outro modo, de enfrentar a dor sem nenhum gozo da vida, é o contrário da posição católica, a qual faz uma composição entre ambas realidades: dor e gozo da vida.

A instituição da família

O problema da dor, dentro da perspectiva católica, tem um colorido completamente diferente ao modo como se apresenta diante de um homem qualquer, que não tenha feito a medida certa das coisas para compreender bem o papel da dor na vida.

Entremos mais a fundo e tomemos a família, enquanto instituição como foi até a Revolução Francesa, e naturalmente, excluindo a camada mais podre da nobreza que já estava contagiada pelo espírito da Revolução.

Os homens notavam bem o sacrifício que importava o constituir uma família. Em castelhano, por exemplo, chegou-se a denominar as algemas de esposo e esposa… Na França, um condenado podia ser indultado da pena de morte, não da prisão, se ele se dispusesse a se casar com a primeira mulher que, ao pé da forca, ali se apresentasse e quisesse casar-se com ele. Quer dizer, percebia-se que o casamento, ao lado de um remédio contra a concupiscência, trazia ônus fortíssimos e responsabilidades sérias.

Ônus e consolações dentro da vida familiar

A relação entre pais e filhos no Ancien Régime, dava-se assim: os filhos sentiam pesar sobre si a autoridade paterna e, por outro lado, grande era a dedicação que pesava sobre os pais na formação dos filhos.

No tempo em que a família era uma instituição de pessoas íntegras, referiam-se a ela quando queriam falar do ambiente por excelência no qual o homem se sentia bem, aconchegado e adequado, e para o qual cada um se sentia feito.

Erraria completamente quem desse o seguinte quadro: “Você vai constituir uma família. Note que é um lugar de… Você vai para a provação, para os tormentos e para as renúncias. Você vai ter que fazer isto, fazer aquilo, etc. Vamos ver se você aguenta…”

Flávio Lourenço
A leitura – Museu de Belas Artes, Santiago, Chile

Quem assim falasse, mentiria. Todos temos nossas famílias, apesar de não sermos casados. Sem embargo, nunca aceitaríamos esta afirmação como válida, porque é um desfiguramento. Exceção feita para aqueles chamados a uma vocação religiosa, a família é propriamente o local de consolação do homem.

A vida familiar traz consigo sofrimentos muito grandes, muito sérios, e implica renúncias em duas linhas: das coisas nocivas de uma vida livre no mundo; e das coisas legítimas às quais o indivíduo é obrigado a renunciar. Para aguentar bem os ônus, é preciso ser sensível e medir bem as consolações que a vida de família também traz consigo, porque só então ela se tornará verdadeiramente o que ela deve ser.

A posição jansenista diante da instituição da família é o oposto a isto: “Eu casei realmente para me mortificar e vou aguentar no duro…”

Isso é uma forma de degenerescência psicológica e moral, pela qual o homem perde a capacidade de fruir as doçuras da família, e as coisas começam a lhe parecer insípidas, vãs. Daí surge a vontade de fugir, pois a companhia da concubina lhe parece mais viva, mais animada, mais entretida. Numa palavra, ela lhe parece mais atraente do que a esposa, e ele chega a formar a ilusão de que ela lhe quer mais bem. Esta concepção faz maridos e mulheres infiéis, filhos que abandonam os pais, e daí para fora.

Noção do dever na velha tradição

Conheci um senhor que tinha se casado no fogo de uma paixão romântica, destas mais debandadas. No entanto, para surpresa minha, a paixão romântica em vez de fazer do casamento uma aventura efêmera, acabou despertando no espírito dele um respeito e um afeto durável à mulher, porque tiveram muitos filhos.

Ele contou-me que um dia ele estava conversando com sua concubina, e ela perguntou-lhe:

— De quem você gosta mais: de mim ou de sua mulher?

Ele ficou tão pasmo com a pergunta, que num primeiro momento nem soube o que responder, disse a ela algo assim:

— Mas você tem ilusão? Gosto muito mais dela!

— Então, o que é que você está fazendo aqui?!

— O defeito é meu, e não dela!

Gabriel K.
Athanase de Charette, Comandante dos Zuavos Pontifícios – Catedral Marie Reine du Monde, Montreal, Canadá

Eu quero mostrar o que é um homem da velha tradição, que compreendeu o que é ter filhos, o que é ter uma esposa, e apesar de ser grossa e brutalmente infiel à esposa – e eu desconfio de que a esposa soube largamente, resolveu fechar os olhos –, apesar disso, ele não fez paralelo entre as duas; ele tinha a riqueza de alma necessária para dar valor ao dever de ser esposo bom, de ser pai bom, mas também a degustação que vem daí e que acompanha o cumprimento do dever.

O “tempero” da família retamente constituída

Há uma degustação posta por Deus, na vida familiar ordenada, própria a alimentar o homem para ser um bom chefe de família; se uma família não é capaz de proporcionar isto aos seus, ela está fadada ao desaparecimento. É preciso, portanto, antes de tudo criar condições psicológicas para isto ser assim. Aliás, devo dizer, a primeira condição psicológica que eu conheça é não praticar o “malthusianismo”1.

Por quê? Porque cada filho novo que nasce é um vínculo a mais entre os esposos e entre todos os irmãos entre si. Uma família numerosa é muito mais unida do que aquelas abastadas, com um ou dois filhos.

A meu ver, quando uma família é assim bem constituída, o ambiente da casa tem uma leveza especial. Um arranjo existente ali, por exemplo, pode ser caipira, feioso, mas gera simpatia muito mais do que a elegância da riqueza, da posição social. Isso enche a casa de tal maneira, que até as próprias refeições simples têm um sabor especial.

É natural que um indivíduo queira saborear um grande prato, de uma grande cozinha, de um excelente restaurante, mas, por exceção, porque ele não aguentaria passar muito tempo sem comer dos pratos de sua própria casa.

Não é novidade o que eu estou dizendo. Entretanto, é uma coisa sobre a qual não se insiste suficientemente: o papel desta degustação, para que as pessoas carreguem com alegria os necessários deveres da vida familiar. A descrição da mulher forte das Sagradas Escrituras (Cf. Pr 31, 10ss), ilustra bem isto, uma mulher que tem a casa cheia de atração, de graça, de simpatia, é uma coisa toda especial!

Felicidade do dever cumprido

Outro exemplo que dou é a vida militar, a qual, obrigatoriamente, traz consigo limitações da liberdade. Houve um escritor francês que escreveu um livro sobre a grandeza e a servidão militar2. Existe realmente uma servidão no métier militar, é uma coisa evidente. Mas, se o indivíduo é capaz de sentir o gosto pela disciplina, pela ascese militar, por aquela tensão sem nervosismo em relação a um ideal superior, o gosto de viver, portanto, em uma clave maior que as outras e de ser, a este título, superior aos outros; um soldado nestas perspectivas faz do cumprimento do dever militar um fator de felicidade terrena.

Para isso, é preciso que os chefes militares saibam fazer com que os alunos da escola militar sejam muito confortados por um ambiente moral e material que proporcionem isso, porque, do contrário, é inútil imaginar que da pura ascese se constitua um grande exército.

É necessário que todos se sintam filhos do general, sócios com ele da mesma glória. Se o general não der o exemplo arriscando sua vida, não espere nada de ninguém. De outro lado, se ele der o exemplo, com que alegria todos caminharão para a morte!

Há, portanto, asceses que nascem do próprio sacrifício de um determinado estado de vida, e que são como o aroma de uma flor. A vida é aromática em virtude das alegrias que nascem de estados de vida carregados e pejados de sofrimentos; mas a alegria existe, e não pode ser vista como uma mera alegria do Céu a ser fruída algum dia. Está na ordem da Providência que nesta vida, antes de chegar ao Céu, o homem tenha alegrias às quais deve saber fruir, porque são imagem preparatória do Céu.

Gabriel K.
Angariação de votos – Galeria de Hamilton, Canadá

Espírito securitário, rejeição dos sofrimentos e das alegrias

Para dar outro exemplo, vamos dizer um discurso.

Preparar um discurso pode trazer muita preocupação. Podemos estar na dúvida sobre o que dizer ou não, quebrar a cabeça antes. Não é a feitura do discurso o problema, mas encontrar o prisma do tema por onde apresentá-lo. Se nos preocupamos ordenadamente, sem torcidas, fazendo aquilo com uma aplicação sadia, a alegria que vem durante o próprio discurso preenche uma certa extensão da vida, sentindo que ele está dando certo e percebendo o bom fruto que está produzindo, no termo do discurso e no pós-discurso.

Um securitário diria: “Quer saber de uma coisa? Eu não quero constituir uma família, porque tem que ter muita responsabilidade. Não quero ser militar, porque corre muito risco. Não quero discursar, porque pode ser que diga uma besteira. Só quero aquilo que não me incomode.” Este seria o homem mais infeliz da Terra, porque forçosamente teria uma série de ônus, e, além disto, ele não teria as verdadeiras alegrias, fortes, duráveis, consistentes, que para certa faixa de sofrimento, Deus põe ao longo do caminho para animar o homem.

Duas vias, dois destinos: almas épicas ou medíocres

Agora, qual o papel do espírito épico dentro disto?

O épico está na alma humana em dois aspectos. Um é o que existe para todos: a determinação de cumprir durante a vida inteira os Mandamentos. Não me refiro ao cumpri-los na perfeição, nem em seguir os Conselhos Evangélicos; é simplesmente cumprir os Mandamentos em muitas ocasiões.

O indivíduo se encontra em posições verdadeiramente épicas, de um épico confinado às dimensões de uma vida de família, da alma deste ou daquele homem; é um épico em que se tem incertezas, problemas. Situações nas quais ele tem que resolver a pesagem de certos imponderáveis, e não dispõe de nenhum conselheiro que o possa orientar; é preciso rezar e solucionar ele mesmo, dramaticamente, sozinho, diante de Deus. Ele, afinal, resolve o assunto, ou numa grande imolação, ou numa vitória do outro mundo.

Isto faz com que o homem tenha história, e às vezes, uma que ninguém conhece. E do que isto adianta?

Uma coisa é o vazio do velho sem história; outra é a dignidade do ancião que passou por uma vida, que suportou situações… Inenarabilia! Isso se dá de modo mais marcante numa senhora. Pois bem, fica-lhes uma luz nas frontes que olhando-as dizemos: “Como queria conhecer a história deste homem!”

Ora, uma situação diferente é aquela em que percebemos o vazio de alguém, e nos perguntamos: “Mas este homem teve história?” É o percurso dos homens medíocres.

Na Divina Comédia, quando Dante narra sua visita ao Inferno, em dado momento ele pergunta a Virgílio:

— Mas quem são estes que estão ao lado de fora, tão desprezíveis que nem o Inferno os aceita?

— São os que passaram pela vida “sanza ‘nfamia e sanza lodo, non ragioniam di lor, ma guarda e passa”3. Não vale a pena refletir sobre eles. É apenas olhar e passar.

Como é diferente quando estamos diante de alguém que tem mérito, tem valor! Nós o reverenciamos! Por quê? Porque entrou epopeia!

Toda a vida particular tem seus heroísmos, e se não os tiver, o indivíduo fugiu do épico, e por isso, teve uma vida que não valeu nada.

Então são duas ideias diferentes: primeira é a dos gáudios que a prática da virtude proporciona, a segunda, dos benefícios que este gáudio produz; ele não gera um espírito securitário, mas produz epopeias; não incita à revolta, mas motiva a submissão. Esta, por sua vez, forma o herói.

É preciso, portanto, educar as pessoas de modo a compreenderem o sabor da vida, e a saberem tirar dela a alegria devida que só a prática da virtude traz. E não adianta vir com argumentos, porque o vício não dá satisfação.

Luzes e cruzes na vida religiosa

O que se dá no estado religioso é de uma índole superior, e vai em sentido contrário ao que estou dizendo: a alma abandona tudo por amor a Nosso Senhor, numa atitude de desafio à vida e ao mundo. Renuncia a tudo e, paradoxalmente, começa a sentir consolações, fruições. São das coisas santamente arbitrárias de Deus.

Exemplifico com a imagem de Nossa Senhora das Graças de uma de nossas Casas. Nós entramos, e somos recebidos por ela que parece sorrir sem sorrir – porque é uma imagem –, e por aquele gesto das mãos, de onde sabemos sair jorros de luz, sentimos que Ela nos faz uma promessa de atendimento.

Eu tenho a impressão de que isto são graças dadas, de um modo ou de outro, para todos: entram, e são recebidos pelo sorriso de Nossa Senhora. No meu caso, às vezes, vou lá só para ver aquela imagem. Mas é curioso o seguinte, que se eu for só com a intenção de ver a imagem, der uma volta de automóvel e não entrar, eu tenho a impressão de que a imagem não me sorri. Aliás, ela não sorri nunca. Refiro-me à uma graça à maneira de um sorriso.

Flávio Lourenço
Religiosas – Museu de Jaén, Espanha

Bem, naturalmente alguém poderia dizer: “Mas a vida religiosa, então, é um jardim de delícias ou é um lugar de torturas?” E eu respondo: nem uma coisa, nem outra. Seria a pergunta de quem não compreendeu nada.

Todos os que vão a Roma gostam de ver o Coliseu, entrar quanto possível no meio daquelas ruínas, osculá-las, porque ali outrora os mártires derramaram seu sangue. Ora, este foi o lugar de delícias para muitos mártires que na hora do tormento final morreram inundados de consolação e ali tiveram mais delícias do que toda a corte romana. Outros, porém, morreram na aridez… é a mão da Providência que tem para cada alma o seu caminho.

O que acentuo é que para cada caminho, por difícil que seja, sem maiores consolações, há sempre uma certa forma de força que alenta, e sem a qual os que pensam na cruz carregada no seco não aguentam; ao meu ver, isto faz o desânimo da vida religiosa, da vida de perfeição.

Caso característico é Santa Teresinha do Menino Jesus. A Pequena Via e aquela aridez contínua. Pois bem, no final de uma aridez terrível, na hora mais dolorosa de a alma separar-se do corpo, neste momento, ela ergueu-se da cama cheia de alegria, porque sentia condensadas as alegrias que ela não teve durante muito tempo nesta vida: ela entraria na luz do Céu!

(Conferência de 26/12/1986)

1) Referente à teoria do economista britânico do século XVIII, Thomas Robert Malthus, a qual defende o controle do crescimento populacional para evitar provável risco de abastecimento alimentar.

2) Servitude et grandeur militaire, de autoria Alfred de Vigny, 1835.

3) ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. Canto III dell’Inferno, v. 51.

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