Cada vez que uma ação se abre e se completa ela deve ser oferecida a Deus. As sociedades humanas como o Estado, a família, poderiam e deveriam fazer um oferecimento dos bens que têm em caráter de ação de graças com uma nota gaudiosa.
Inicialmente, seria interessante situarmos bem a ideia do que é um oferecimento.
Não tive tempo de ler sobre o assunto e, portanto, evidentemente devemos conferir tudo com o ensinamento da Igreja. Mas, salva essa conferição, algum comentário genérico podemos fazer.
O ato de culto a Deus e o sentido verdadeiro da vida
No momento em que Deus, depois de ter criado o homem, considerou todas as coisas e viu que o conjunto era bom (Cf. Gn 1, 31), tomou em consideração a semelhança, o nexo entre a Criação e Ele. Nisso o Criador teve um comprazimento vindo da sua glória. As criaturas racionais, assemelhando-se a Ele, prestavam-Lhe o ato de culto: adoração, ação de graças, reparação e louvor.
Adoração é o movimento para “unir-se a”, para “executar a vontade de”, que vem do fundo do anelo da criatura retamente ordenada ao Criador. Essa é a adoração.
A ação de graças é um olhar primeiro sobre Deus, depois sobre si enquanto conhecendo a semelhança com Ele e dando graças, manifestando a alegria por esse nexo. A primeira coisa é vê-Lo e adorá-Lo; a segunda é ter alegria e agradecer esse vínculo.
A reparação se dá quando há uma falta, portanto, não creio que no Paraíso houvesse. Por fim, há a petição, feita pelo ser contingente para que a ordem de dependência se torne efetiva.
Feitos esses atos, a relação de semelhança se preenche inteiramente. Este é o culto.
Eis a principal finalidade da vida humana: o homem é feito para conhecer e amar este Ser supremo e as outras coisas na medida em que são imagem e semelhança d’Ele.
Vê-se, desde logo, como uma sociedade de consumo é vil ao ter por sua própria finalidade consumir, amando e vivendo para isso.
Compreende-se – acho muito importante fixar isso – que quando alguém se desloca nos desejos que tem nessa vida, fazendo do seu fim terreno a ambição de ser conhecido e amado, essa pessoa desviou a finalidade da vida, que deveria ter como termo último a Deus e colateralmente os outros seres na medida em que falam do amor a Ele.
O ato de oferecimento é o desejo de fazer tudo unicamente por amor a Deus
É em vista deste panorama que o oferecimento se põe.
O que é propriamente o oferecimento? Eu não o qualifico de sacrifício.
O oferecimento, no sentido pleno da palavra, é o ato pelo qual uma criatura inteligente, tomando conhecimento do que acabo de falar, em presença de Deus, em relação a Ele, entende e deseja adorá-Lo e servi-Lo. E, numa criatura não maculada pelo pecado original, a sensibilidade inteira acompanharia esse querer.
Então, o homem tomado por essa convicção, diz: “Meu Senhor, Vós me concedestes esses bens para essa finalidade. Eu cumpro a finalidade que Vós determinastes, prestando-vos, conscientemente, o ato de culto para o qual fui feito. É um dever meu e eu o cumpro. Mas se não fosse um dever e, por absurdo, não tivésseis dado um preceito neste sentido, eu o faria de qualquer maneira por amor, porque Vós sois Vós.”
Oferecimento que torna sagrada a oferenda
É este o significado do oferecimento que corresponderia ao sacrifício, no sentido etimológico da palavra, ou seja, sacer faciens: o ato de tornar algo sagrado, passar da esfera profana para a sagrada.
Neste sentido, um sacrifício seria tomar algo excelente de que eu goste muito e, sem o intuito de reparação nem de corrigir em mim um defeito, mas apenas para afirmar simbolicamente essa excelência de Deus, separar especialmente para Ele. Isso fica d’Ele a um título muito especial e, num certo sentido torna-se sagrado. Não imolado, mas sagrado.
Imaginemos que Adão encontrasse um rubi magnífico num determinado lugar onde ele esteve passeando à tarde com Deus e, ao invés de se apoderar da pedra preciosa, dissesse: “Este rubi é tão belo que vou mantê-lo aqui. Espero que Deus me seja propício e se manifeste a mim muito especialmente aqui, na lembrança do que Ele hoje fez por mim.”
Suponhamos que Adão deixasse ali esse rubi para tornar esse local um lugar de lembrança particularmente bonito. Adão teria oferecido a Deus o direito que tinha sobre a pedra, nessa perspectiva sagrada do oferecimento, sem haver ainda os elementos próprios à reparação do pecado, a imolação e a penitência.
Um exemplo: o casamento de Veneza com o mar
Esse gênero de oferecimento, de glorificação, tenho a impressão de que se realiza essencialmente hoje em dia quando o fiel participa da Missa. Mas, independentemente disso, as sociedades humanas com um caráter natural – como o Estado, a família – poderiam e deveriam fazer a Deus, a seu modo, um oferecimento dos bens que possuem.
Seria muito bonito vermos um rei ou um doge na Idade Média fazendo o oferecimento de toda a prosperidade do Estado numa cerimônia de glorificação pública a Deus Nosso Senhor.
Por exemplo, o casamento de Veneza com o Mar1, realizado pelo Doge. Essa cerimônia deve ter nascido na Idade Média e tomado uma conotação pagã com a Renascença.
O sentido mais profundo seria de Veneza celebrando todos os dons que Deus lhe concedeu. Mas Veneza enquanto um Estado natural constituído de católicos – posto, portanto, na Cristandade – que vai em público, passeando no meio de suas belezas, de suas glórias, rumo ao alto-mar, um pouco como quem se retira ao deserto para rezar. Ela vai para fora de suas belezas para considerá-las no seu conjunto como que pa ra sorvê-las, com temperança no que elas têm de deiforme, numa festa onde ela desabrocha também toda a sua alma, todo o seu espírito, toda a sua cultura e inteligência. Ela musica e festeja isso e, naquele mistério e naquela solidão do Adriático – quase uma espécie de sancta sanctorum enorme para os homens daquele tempo –, oferece o seu culto a Deus de um modo especial.
Imaginem que se celebrasse em alto-mar a Missa durante a qual se desse essa nota sacrifical, primeiro associando-a de algum modo a esse oferecimento e, como culminância, a gratiarum actio2. Em segundo lugar, que o caráter sacrifical, a expiação pelos pecados que Veneza cometeu, o perdão também se celebrasse. Isso seria magnífico, mas sem eclipsar o sentido próprio da festa e a constatação alegre de todos os bens que Deus deu a Veneza.
Cerimônias lindíssimas nascidas do impulso de cada povo…
Também nesta perspectiva, mas não com tanta profundidade, temos o Thanksgiving day nos Estados Unidos, o “Dia de ação de graças”.
É uma festa em que matam centenas de milhares de perus, todo mundo se alegra e se regozija porque é o dia de dar ação de graças a Deus por todos os benefícios recebidos. É a civilização de consumo que nesse dia consome um pouco mais e Deus entra apenas como mais um elemento dentro da pagodeira. Enfim, isso mostra como há impulsos de oferecimentos assim nos povos.
Por exemplo, certos delíquios de entusiasmo que as pessoas têm diante da Baía de Guanabara no Rio de Janeiro, eles poderiam ser objeto de uma festa à la Bucentauro3, mas não nascida do desejo de copiá-lo, mas da história, das circunstâncias, com a espontaneidade, a retidão das coisas que a graça sugere, para as quais a natureza nas suas retidões impele. Seria algo a essa maneira.
E eu imagino que no Reino de Maria coisas dessas devam ser muito desenvolvidas. De fato, todas elas organizadas em torno dos atos litúrgicos do culto da Igreja, mas conservando um significado próprio, relacionado com esse modo de oferecer todas as coisas a Deus.
Eu me lembro de que quando se faziam essas consagrações dos lares ao Sagrado Coração de Jesus havia muito disso. O chefe da família – e não necessariamente o sacerdote – era quem consagrava, mesmo quando o padre estivesse presente. E se isso se fazia com as famílias, por que não com um reino, uma república, um município? O burgomestre de uma cidade me dieval, o chefe de uma corporação e o reitor de uma universidade não poderiam exercer um papel semelhante?
O fato concreto é que eu gostaria de ver isso muito difundido. Cerimônias lindíssimas de toda ordem poder-se-iam imaginar.
Uma das melhores cerimônias nesse sentido é a parada militar. O século XIX levou ao auge e realizou algumas monumentais. Considero uma coisa incomparável parada militar durante a qual se celebre a Missa, com toques de sino e troar de canhões!
…e “perfumadas” pelo senso hierárquico
O senso hierárquico impregna de um particular “perfume” essas festas. Na Idade Média e no Ancien Régime, por exemplo, havia certas coisas assim: um convento suserano de um pequeno senhor feudal, o qual deveria oferecer por ano três rosas à abadessa do convento. Seria bonito realizar isso em uma festa, onde estaria a abadessa e o senhor feudal, que ofereceria a ela três rosas, uma das quais ela destinaria ao rei.
Acho indispensável que houvesse um desfile popular, sem caráter de brincadeira, mas com fantasia, diante do rei: um é engraxate, outro vendedor de cebola, outro planta alho-poró, e todos vão desfilar cantando, e apresentam objetos artesanais magníficos. Deveriam levar para o monarca, como oferecimento, aquilo que produziram, cantando e dançando diante dele. É o bafo do povo, da terra e da vida.
Uma parte dessa cerimônia, a meu ver, deveria ser fixa e outra totalmente aberta para toda espécie de improvisações, em torno de uns elementos centrais muito elevados e nobres. E seria a festa do maravilhamento popular.
Creio que algumas coisas dessas se poderiam transladar para a Igreja, com muita edificação do povo fiel. Festa dos vigários, párocos e bispos com seu arcebispo metropolitano. E, de vez em quando, da Cristandade com o Papa; um grande jubileu papal.
Eu imagino isso desenvolvido ao máximo no Reino de Maria. Por exemplo, a Missa papal acolitada pelo Imperador do Sacro Império e pelo Rei da França; a sineta seria tocada pelo Doge de Veneza ou pelo governador de uma cidade livre da Alemanha, dependendo das circunstâncias.
Os gáudios da humanidade junto a Nosso Senhor se não houvesse o pecado
Subindo ainda mais nessas considerações, poderíamos imaginar a festa da Encarnação do Verbo e do Natal de Nosso Senhor, na hipótese de que estes se dariam, caso não tivesse havido o pecado original.
Creio que seria algo na linha de oferecimento, mas com um caráter mais tonicamente religioso. Porque Deus estaria Se manifestando muito mais e tudo gravitaria em torno d’Ele de maneira mais acentuada do que com essas conotações terrenas legítimas. Seria uma prelibação da visão beatífica, uma comemoração onde o sobrenatural e o religioso, em vez de ficarem enunciados sob os invólucros da natureza, se manifestariam e a humanidade transbordaria de gáudio. Seria o prenúncio do Céu.
A Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo, a meu ver, não teria o caráter doloroso da separação, mas abriria um contato entre Céu e Terra muito maior, com um gáudio do qual não podemos ter ideia. Como os homens não morreriam, subiriam com Ele ao Céu e haveria muitas ascensões em vida. Não se dariam ressurreições, mas apoteoses.
O papel de Nossa Senhora dentro desse conjunto
Naquilo em que Deus, de acordo com leis insondavelmente sábias e boas, mas misteriosas para nós, limitasse essa espécie de transfiguração permanente, Nossa Senhora exerceria o papel de medianeira muito especial, em virtude do qual todas as coisas reluziriam de uma presença divina, de maneira a só sentirmos nossa plena união com Deus por causa d’Ela, que é o hífen, o ponto de ligação de tudo com Deus.
Exemplifico com a monarquia dual austro-húngara. O Imperador não pode estar presente simultaneamente a uma festa na Áustria e a outra na Hungria. Quando não pode comparecer pessoalmente, em seu lugar vai sua esposa ou sua mãe.
Qual é o papel da esposa ou da mãe ali? Na ausência do Imperador, é ser a presença dele junto à nação. E quando ele está presente, ela é o hífen que o une a todo o reino, que se sente mais próximo de seu soberano porque ela está ali.
Entretanto, houve o pecado e, com isso, o oferecimento adquiriu uma particular relação com o sacrifício.
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de 5/11/1982)
1) A Festa della Sènsa, uma comemoração da República de Veneza realizada por ocasião da festa da Ascensão, na qual o Doge fazia o casamento de Veneza com o Mar Adriático, lançando nele um anel de ouro. A primeira comemoração realizou-se em 9 de maio do ano 1000.
2) Do latim: Ação de graças.
3) Galera oficial do Doge da República de Veneza, na qual embarcava uma vez por ano, no dia da Ascensão, para celebrar e festa da união de Veneza com o mar.