sábado, noviembre 23, 2024

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Pureza e hierarquia numa história infantil

Nas fisionomias dos personagens das histórias de Bécassine não se encontram a perturbação e a agitação de quem se entrega aos prazeres impuros. A calma, o respeito, a majestade e a modéstia são algumas das qualidades admiradas por Dr. Plinio na Marquesa de Grand-Air, a qual apresenta um contraste profundo com o modo de ser moderno.

Em ocasião anterior, vimos uma cena representando a Madame de Grand-Air chegando de landau à festa de batizado da Bécassine e da Marie Quilouche. Naquele tempo ela era muito jovem, elegante, graciosa e esbelta. Nesta figura, ela é uma senhora de idade, de uns sessenta anos. Os tempos passaram. A Bécassine, de bebê, agora é moça e empregada da Marquesa.

Distinção que cede lugar à majestade

A Marquesa está representada com cabelos abundantes, brancos ainda um pouco alourados. Ela engordou, poderíamos dizer que com senso artístico. Ou seja, o desenhista soube representar o envelhecimento e a obesidade dela com muito critério. Notem que ela, de um bibelot, de uma bonequinha de biscuit delicada e leve que era quando moça, passou a ter o ar de uma instituição estável.

O desenho é muito bem feito. Ela está sentada. Denota estabilidade: o corpo ereto, a cabeça e o pescoço também, com um ar que em moça era distinção e o tempo transformou em majestade.

As senhoras daquele tempo, envelhecendo, não faziam regime para emagrecer, eram sensatas. Ela tem o rosto robusto, o busto cheio, mas as pernas e os pés são delicados e leves. Ela, de pé, poderia ainda parecer graciosa. É uma pessoa muito suave.

Ilustrações: J. Pinchon
Ilustrações: J. Pinchon
Ilustrações: J. Pinchon

Ela se encontra em um castelo que possui uma série de torres e torreões, uma construção medieval. Está em companhia de alguns parentes, um dos quais está sentado lendo uma coisa qualquer. Observem o respeito com que ele se dirige a ela e a atitude dela, falando com bondade, como quem dá um conselho, mas na verdade deve estar dando uma ordem. É a preeminência dela.

Atrás está o garçom que parou de servir os convidados para ouvir a Marquesa falar, porque ele admira as coisas que ela diz e o modo de ser dela.

Tranquilidade e pureza dos personagens

Na Europa, na primavera, mas sobretudo no verão, a imobilidade da natureza e do vento é de uma calma e de uma tranquilidade impressionantes. Não há vento e a pessoa pode ficar ao ar livre um tempo enorme, com um ar muito puro e agradável.

Em São Paulo, pelo contrário, venta continuamente, ora mais ora menos, de modo que o paulistano não gos ta de ficar ao ar livre mesmo nos dias muito quentes. Os moços ficam um pouco do lado de fora das casas, mas os mais velhos não, o vento os impede.

Ilustrações: J. Pinchon

No desenho percebe-se a ausência de vento pela imobilidade dos dois arbustozinhos no canto. É uma dessas tardes quentes, plácidas, sem serem tórridas, num castelo de quinhentos, seiscentos, setecentos anos de existência, sofreu batalhas tremendas, mas passou a ser uma moradia de contos de fada. Do lado de fora está a Marquesa tomando lanche e conversando com os seus familiares.

Detenhamos a atenção na Marquesa, porque os dois outros personagens me parecem, francamente, menos felizes e até um pouco caricatos. A Marquesa permanece muito calma. Inclusive, nota-se algo disso nos outros personagens, por quê? Analisando suas fisionomias vemos que não se encontra neles aquela forma de perturbação, de agitação, das pessoas que se entregam aos prazeres impuros. Existe, isto sim, a calma da castidade, que faz com que o indivíduo saiba apreciar, na vida, o que ela tem de bom e de puro.

Ilustrações: J. Pinchon

Imaginem que no terraço do castelo se pusesse uma estampa enorme, representando, por exemplo, uma dançarina de rock and roll ou de qualquer outra porcaria moderna, agitada. Tem-se a impressão de que se profanaria o castelo inteiro. Por quê? Porque ele é sério, digno, feito para as alegrias tranquilas da pureza. Ora, só o puro é verdadeiramente alegre! O impuro pode saracotear, pode rir e divertir-se; alegre, ele não é!

Uma coisa muito bonita nesses livros de Bécassine é a inteira tranquilidade e pureza dos personagens. Se fossem impuros, eles não gozariam desse ambiente do castelo, da natureza nem nada. O impuro não gosta disso.

Amostras da paulatina decadência moral

O desenho seguinte representa uma cena muito frequente em certos jardins ou lugares de Paris. A cidade foi crescendo e os jardins particulares foram desaparecendo, sendo substituídos por áreas habitadas ou por grandes jardins públicos. Inclusive as crianças de muito boa educação eram levadas para esses jardins.

Nesses locais costumava haver cadeiras de um metal muito flexível, nas quais as pessoas podiam se sentar tendo vagamente a ilusão de estarem numa almofada. Existiam jardins para todas as classes sociais. As senhoras de boa sociedade frequentavam alguns; as de média, outros; havia jardins para o povo também. Todos eles passavam horas em público, fazendo as crianças brincar.

Ilustrações: J. Pinchon

A Madame de Grand-Air está sentada e foi levando essa criança chamada Loulotte, uma espécie de filha adotiva, porque ela não teve filhos. Todos os sobrinhos dela haviam se casado e ela ficara, em casa, só com o Monsieur de Grand-Air. Ela tratava a criança como se fosse sua filha, e como a Loulotte era muito espevitada, a Marquesa tinha a Bécassine para tomar conta da menina.

Vale a pena prestarmos atenção nas modas. São de antes da Primeira Guerra Mundial ou logo depois desta, portanto, entre os anos 1914 e 1918.

Ilustrações: J. Pinchon

A Madame de Grand-Air em outra figura está meio desgraciosa. Também está representada sentada, conversando com uma pessoa muito mais jovem, bastante enfeitada para os gostos do tempo, mas da mesma categoria da Marquesa. Junto com a moça está uma menina bem arranjadinha, muito fina.

Analisem o chapelão que a moça está portando. É um chapéu azul e branco com uma fita enorme, formando uma espécie de penacho. Ademais, traja um vestido listrado de mangas curtas, com os braços de fora e com ar de uma pessoa muito segura de si e muito importante.

A Madame de Grand-Air está bem menos enfeitada do que quando era moça. Traja um vestido mais simples, pela convenção de que, à medida que a pessoa vai ficando mais velha, na vida quotidiana, deve se vestir de um modo mais modesto, devendo ser uma pessoa que quei ra aparecer pouco, para deixar a parte principal da cena para os mais moços. Entretanto, uma anciã, tanto quanto as circunstâncias permitissem, deveria tender à rainha nas ocasiões de gala.

Ilustrações: J. Pinchon

Tal atitude apresenta um contraste profundo com o modo de ser moderno, no qual as mulheres velhas procuram bancar as moças tanto quanto podem. Uma idosa se respeita facilmente de bom grado. Ora, não há nada de mais lamentável do que uma moça passada…

Notem como a Madame de Grand-Air está toda coberta. Na geração seguinte, os braços já estão de fora. Logo mais as saias começam a se encurtar e, depois, dentro de uns dez anos começam os escândalos morais: o divórcio e daí para frente.

A moral está decaindo. Naquele momento ainda o nível moral era muito mais alto do que se tornou depois. Tomem essa menina e vejam que a saia dela deveria estar mais longa, apesar de que é uma saia comprida para uma menina de hoje. Quando essa menina for moça já não vai usar, nem de longe, a saia comprida dessa senhora que parece ser a mãe dela.

Ilustrações: J. Pinchon

Outra coisa curiosa: os personagens mais velhos são calmos. À medida que os braços e o corpo se vão pondo de fora, surge qualquer coisa de hirto, de tenso, de vibrante, como também de preocupado. Vejam o caráter tranquilo da Madame de Grand-Air e o jeito tenso da outra. É a impureza que vai entrando.

Trato hierárquico carregado de afeto e reciprocidade

Em outra cena, a Madame de Grand-Air está numa ocasião solene. Aqui ela traja um vestido escuro, com uma espécie de voile de cor cinza-esverdeada e um chapéu escuro também. Ela está ornada e vestida com cuidado, mas de um modo bem diferente daquela Marquesa mocinha que vimos no batizado. É a sensatez de não querer esconder a idade.

Aparece também um homem elegante que cumprimenta a Madame de Grand-Air. A figura está ligeiramente caricaturizada. É um homem magro, de corpo pequeno, mas com a cabeça grande; de pé, creio que ele tem a mesma altura da Marquesa. Veste uma roupa azul-claro quase cinza, muito bem passadinha, que está sobrando no corpinho dele; tem o cabelo alinhado de tal modo que parece conhecer o nome de cada fio; o colarinho é muito alto e porta uma gravata na parte baixa do colarinho. Era a moda do tempo, a qual reputo mais feia do que a contemporânea.

O homem se inclina com todo o respeito para beijar a mão da Marquesa. Eu não me lembro mais quem é esse personagem, mas me dá a impressão de não ser da sociedade de Madame de Grand-Air e sim desses homens que dirigem uma grande loja, um grande hotel ou qual quer coisa assim, e se apresenta todo polidozinho para falar com ela.

Notem a atitude da Marquesa diante da reverência dele. Ela o deixa inclinar-se e beijar-lhe a mão. Há qualquer coisa de afável nessa atitude dela que indica que ela recebe essa homenagem com muita bondade, honrando a pessoa que a está homenageando. Esse é o tipo de atitude que o desenhista soube apanhar perfeitamente.

Os criados da Marquesa

Em uma das cenas a Bécassine está sendo apresentada por Madame de Grand-Air à criadagem. Pela narração de Caumery, a Marquesa morava num enorme castelo. Vejam quantos criados para servi-la! E a Bécassine ia ser mais uma! Todos estão em fila numa atitude reverente diante da Marquesa. Todos muito característicos.

A figura central é o cozinheiro, vestido todo de branco e com a touca na mão, porque na presença da Madame de Grand-Air ninguém usa chapéu. À direita dele está uma arrumadeira vestida de preto, com avental branco limpíssimo e uma espécie de touquinha no alto da cabeça. Aparece também o chauffeur com seu traje característico.

Ilustrações: J. Pinchon

Entretanto, há algumas diferenças: o cozinheiro é um gordalhão, um homem que gosta de comer o que faz. A empregada, pelo contrário, é magérrima e dada a elegante, porque ela está cônscia de ser uma criada de Paris, a capital da elegância, do bom tom, da graça feminina; é evidente que ela faz regime para emagrecer. Para entender a pretensão de elegância dela, comparem a altura da saia com a das outras empregadas. As outras criadas são camponesonas dedicadas a servir na casa da Madame de Grand-Air. Ela não, pois é dada a elegantota. Se ela não exercesse essa função seria balconista numa casa ou loja de meio luxo, é para o que ela daria, naturalmente.

Ilustrações: J. Pinchon

Vê-se que a outra criada gosta de comer, é gordalhona como o cozinheiro. Embora se vista com um traje muito semelhante ao da outra, não tem pretensões de elegância, é apenas uma camponesona vestida também com traje de arrumadeira, mas é menos pretensiosa. Por exemplo, o avental dela é muito maior, ela não se incomoda de parecer criada. Na outra, o igualitarismo está um pouco presente. A nota da servidão, que é o avental, tende a diminuir como a nota da pureza, que é a saia, tende também a se encolher. No fundo, transparecem as molas da Revolução: orgulho e sensualidade.

Logo está o maître d’hôtel. Atualmente só os restaurants tem maître, quando o têm. Naquele tempo as grandes casas particulares chamavam-se hôtel. E nele havia um maître d’hôtel, o qual dirigia todo o serviço da copa. Ele deveria ter um ar muito imponente, porque aparecia para as visitas e para as pessoas de fora, por isso se vestiam com mais cuidado do que os outros.

O maître é um homem alourado, com topetão abundante. Tem o ar de um homem que gostaria de ser marquês. Ele não tem revolta contra o marquês, pelo contrário, o admira e procura ser um reflexo dele no mundo dos empregados. A prova do espírito disciplinado dele é o modo de ele estar perfilado e pronto a inclinar-se diante de uma ordem da Madame de Grand-Air.

Ilustrações: J. Pinchon

Percebe-se que o quadro está bem dividido: os criados de aparato para cá e os da intimidade para lá. Mas, diante da Marquesa, todo o mundo toma uma posição submissa.

Analisemos agora a Madame de Grand-Air. Está vestida com distinção, mas é um vestido azul simples, para usar dentro de casa. Ela está dando instruções à criadagem. A Bécassine, entretanto, nem olha para eles, pois está olhando, cheia de entusiasmo, para a Marquesa.

Afabilidade da criadagem

Depois que a nobre sai, eles perdem aquele ar composto que tinham diante dela. Ora, afetuosamente, estão desejando as boas-vindas para Bécassine.

Há uma diferença entre eles, todos amáveis agradando a Bécassine, e o jeito dela, meio bobão, com o traje de camponesa da Bretanha. Ela está com a fisionomia pasma e a posição das mãos é de quem não sabe agradecer tanta amabilidade. Contudo, está alegre e sempre muito tranquila. Aliás, para educar uma criança na tranquilidade a presença de Bécassine seria incomparável!

Neste outro desenho, afigura-se uma mesa enorme com uma toalha de linho que chega até ao chão. Deve ser a mesa dos criados, na qual reina a fartura e a animação. O cozinheiro está com o seu gorrão, não o tirou. Todos os empregados estão com o seu traje de serviço. Percebam como é a França: na mesa sentam-se intercalados um homem e uma mulher, como se fosse uma refeição de sociedade e todos eles não são senão empregados.

A meu ver, não tem igual a Pinchon para saber desenhar e caracterizar cenas. Ele é um verdadeiro sociólogo! Eu sustento o seguinte: há certas coisas que quem não sabe desenhar não sabe exprimir. Não há palavra nem vocábulo capaz de demonstrar aquilo que foi diretamente visto.

(Extraído de conferência de 30/5/1980)

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