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Ambientes, costumes e uma civilização postos em quadrinhos

Dr. Plinio guardou profundas recordações da viagem a Paris no tempo de sua primeira infância. Anos depois, o gosto pelos ambientes e por sua psicologia, como também pela civilização, fez desabrochar preciosos comentários ao tomar contato com as histórias de Bécassine.

Ilustrações: J. Pinchon

Temos a marquesa dentro de um bonde. Em certo momento, a Madame de Grand-Air perde a fortuna, embora depois vá recuperá-la. No tempo em que tinha riqueza, ela não tomava bonde porque o seu nível não correspondia ao das pessoas que utilizavam esse meio de transporte.

Descrevendo tipos e mentalidades

Dentro dessa cena aparece um homem de cartola, com ares graves, barba e bigode bem arranjados. Seus sapatos falam contra a hipótese de uma roupa suntuosa. Percebam como a calça termina no pé e logo acima está tudo amarfanhado. É um personagem solene, mas tristonho e empobrecido. Vê-se que ele foi mais do que é. Na realidade, ele nunca foi grande coisa, mas quando foi alguma coisinha, tentou aparentar muito mais do que era. Agora está sentado num banco do fundo do bonde, tal qual um juiz no seu tribunal. Também carrega uma bengala, que é um pedaço de pau, sobre a qual coloca as mãos, dando a ideia de estarem enluvadas. Ele põe a mão de um jeito majestoso e permanece alheio àquele ambiente inferior a ele.

À esquerda dele está uma velha cozinheira que vai para a casa da patroa com uma cesta cheia de artigos que comprou. É uma velha bonachona. O seu vestido é próprio de pessoas mais modestas, embora seja quente e de boa qualidade. Ela não usa chapéu, mas uma espécie de touquinha que lhe confere certo realce.

Ilustrações: J. Pinchon

Em todos os lugares há quem queira representar o que não é…

Pelo desenho de Pinchon vê-se que entre os adultos figura uma moça com um vestido ordinário, mas vistoso, novinho, com uma gola branca de renda, dessas rendas comerciais de quinta ordem, mas muito vistosa. Leva também um chapéu com um laço enorme. É Marie Quilouche que ficou moça, a prima-irmã de Bécassine, companheira de brincadeiras, mas perpetuamente mal-humorada e briguenta, sempre de nariz pontudo, devorada pela ambição de subir e, por isso, uma pessoa agitada e atormentada. A Bécassine, no entanto, está ali bonachona, segurando o seu guarda-chuva do modo mais desgracioso possível, com um pano que bem podia servir para lavar pratos, embrulhando o saco que ela leva. Sempre contentona!

Em geral, todas as grandes cidades são o paraíso dos blefadores e aventureiros. As pessoas que não são nada procuram aparentar ter grande personalidade, arranjam uns dinheirinhos e compram roupas ordinárias vistosas, como a da Marie Quilouche.

Em outra cena, Bécassine fala com um homem. Observem que é um indivíduo de quinta ordem, espalhafatoso, ordinário, aventureiro; é um zero. Por estar zangado com ela, por uma razão qualquer, ele toma ares de um Napoleão de sertão, procurando enfrentá-la.

Ilustrações: J. Pinchon

Notem o modo de ele se vestir. Corresponde, em ponto caricato, à moda do tempo: paletó e calças, e estão muito acima do tornozelo, dobradas em cima. Os sapatos são mais ou menos como os de hoje, aparece uma boa parte da meia. As calças quase coladas à perna e o paletó muito abotoado, desenhando muito a cintura. Depois, uma flor enorme, quase se diria um repolho vermelho colocado na lapela; colarinho muito vistoso; costeletas e bigode; um enorme chapéu panamá. Ele está encrespando com Bécassine.

Ingenuidade bretã e teatralidade italiana

Em geral os povos europeus vivem de meter alfinetadas uns nos outros. Os franceses caçoam dos italianos e vice-versa. Assim, em uma das ilustrações vem um debique a um pintor italiano. Ele havia pintado a casa da Madame de Grand-Air. É o tipo do pintor que foi para Paris cheio do estro artístico dos italianos. No desenho ele está com roupa de trabalho, portanto, uma espécie de camisolão apropriado para receber manchas de tinta. Ademais, está com um chapeuzinho que tem uma razão de ser: é para impedir que a tinta caia sobre o cabe lo e produza emaranhados inextricáveis. Na verdade, ele protege pouco, porque o que esse homem tem de cabelo para fora do chapéu é uma coisa fenomenal!

Ilustrações: J. Pinchon

A Bécassine tomou-se de entusiasmo pelo pintor e leva a sério toda a teatralidade dele. E ele está encantado porque, afinal, encontrou alguém a quem possa teatralizar. Vejam os ares de mestre que o pintor toma para explicar uma coisa a ela. Depois dos ares grandiosos, ele acaba tendo uma atitude mais condescendente diante da camponesa, a qual está, ao pé da letra, deslumbrada. Ela não sabe o que dizer de um homem com tanto talento e tanta capacidade!

Contraste entre sociedade orgânica e civilização da massa

O tio Corentin está passeando com a Bécassine, provavelmente numa cidade da própria Bretanha. Mais atrás está um ônibus e, no primeiro plano, um automóvel de modelo arcaico, característico daquele tempo. Diante dele há um policial levantando um bastão, proibindo-os de passar, talvez por alguma questão de trânsito. Tio Corentin era líder de Clocher-les-Bécasses, considerado mais ou menos como o tio da aldeia inteira, portanto, um homem muito imponente. Enfim, é um líder natural que vai à cidade e encontra um líder artificial, o policial.

Ilustrações: J. Pinchon

O que vale mais: ser o tio Corentin ou o policial? É claro que vale mais ser o tio Corentin, porque é um produto natural de seu próprio ambiente. Ele não tem um cargo, mas manda pela superioridade de sua micro-personalidade no micro-mundo onde ele floresce. Pouco se importa de ir à cidade vestido com as suas roupas de camponês. É a França antiga da sociedade orgânica, do campo, que vai para a cidade onde encontra o Estado, o poder e o funcionalismo público, cuja função é dizer: “Não pode!”

Habituado a ser tratado com todas as atenções em Clocher-les-Bécasses, ele estranha que esse homem nunca tenha ouvido falar do tio Corentin. E quando vai passar, o policial não manda abrir caminho para ele, mas, tratando todos como iguais diante da lei, ameaça dar uma porretada em sua cabeça. É a lei e o porrete que vão dominar a sociedade orgânica.

Quadrinhos ricos em pormenores

Temos agora um burguês, Monsieur de la Haute-Science, quem escreveu um livro sobre “a influência exercida pelas escamas das sardinhas na arquitetura bretã da Idade Média. É um especialista. Passou a vida inteira estudando esses assuntos. Por causa disso ele está rodeado e bloqueado de papéis. Naturalmente, é um pouco caricaturizado.

Ilustrações: J. Pinchon

Ele lê um livro enorme e, junto de si, há outro de tamanho formidável sobre o qual encontra-se um tinteiro com uma pena, porque naquele tempo ainda não tinham aparecido as canetas-tinteiro. Mais adiante há um rolo com documentos e outra coisa que sai do bolso dele. Além disso, vê-se que ele está instalado com conforto. A lâmpada usada por ele é de querosene, pois a luz aparece embaixo.

Por fim, vemos a história numa usina. Há dois sindicalizados, igualitários, revoltados contra o proprietário. São contra a Madame de Grand-Air e a Bécassine. É a luta social que começa. Ela já vinha de antes, mas toma este aspecto aguerrido e agressivo na França, mais ou menos por essa época.

A Bécassine representa a antiga criadagem, com a naturalidade da sociedade orgânica e campestre, enquanto os outros representam a revolta da sindicalização e a civilização da massa, acumuladas pelas grandes indústrias das cidades enormes, onde eles não são absolutamente nada. A Bécassine procura falar com eles, mas lhe respondem com ódio. A figura está caricaturizada; afinal, trata-se de um álbum para crianças e, portanto, deve ter qualquer coisa um pouco caricatural para divertir, ao mesmo tempo que ensina.

Algum dia comentarei a Bécassine!

Quando, em criança, lia os livros de Bécassine, gostava enormemente! Eu tinha uns doze anos mais ou menos, já havia estado em Paris aos quatro anos de idade e conservava na memória as coisas do mundo da França e da Alemanha que eu vira então. Foram os dois países que conheci. Mas a França me deixou uma recordação mais profunda, porque passei muito mais tempo lá do que na Alemanha.

Ilustrações: J. Pinchon
Ilustrações: J. Pinchon
Ilustrações: J. Pinchon

Em Paris, passamos uns seis meses. Ficamos hospedados num bom hotel chamado Hotel Royal, o qual deixou uma profunda recordação em meu espírito. Quando voltei à França, muitíssimo tempo depois, na década de 1950, procurei por esse hotel, mas como eu nunca fui bom para procurar nada, o resultado foi que não o encontrei. Chegando em casa não falei nada, nem sequer para minha irmã que esteve comigo naquela primeira viagem.

Tempos depois soube que ela, indo a Paris, procurou o hotel e, sendo muito mais esperta do que eu, o encontrou. Com efeito, aquilo tudo deixou em nossa memória uma impressão profunda: os hóspedes, os quartos, a governanta que tivemos lá.

Ilustrações: J. Pinchon
Dr. Plinio durante uma conferência em maio de 1980

Ilustrações: J. Pinchon
Plinio e Rosée em Paris

Encantavam-me uma porção de aspectos do hotel, das pessoas, da cidade e conservei-os na memória. Quando lia a Bécassine, lembrava-me do que tinha visto em Paris, representando os “ambientes e costumes”1 que começavam a germinar na minha cabeça. O gosto pelo ambiente e por sua psicologia, como também pela civilização. Eu não me dava conta, mas aquilo estava no meu feitio nativo e eu procurava alimentar, desde logo, com as minhas observações.

Os comentários sobre a Bécassine e o ambiente dela, com a segurança com que os faço, naquele tempo eu não ousaria fazer. De um lado, porque eu era menino e não sabia me exprimir como hoje, mas, de outro, poucas pessoas compreenderiam tais apreciações, pois poucos admitiriam que, de fato, tantos princípios estivessem inseridos nesses desenhos. Tomavam a história como um brinquedo para distrair crianças, não se podia aprofundar. E fiquei com a seguinte ideia na cabeça: a Bécassine é um verdadeiro monumento!

Muitos anos depois, na década de 1950 ou 1960, se a minha memória não me falha, deitei novamente a mão num livro de Bécassine e pensei: “Dia virá em que comentarei a Bécassine num auditório nosso.” Pois bem, essa longa esperança se realizou, embora sendo eu mais velho do que a Madame de Grand-Air. Tenho muito gosto em vê-la realizada em conferências como esta.

(Extraído de conferência de 30/5/1980)

1) Referência à seção Ambientes, Costumes, Civilizações que Dr. Plinio escreveria durante vários anos na revista Catolicismo.

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